quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A mulher que matou os peixes

Lispector, Clarice. A mulher que matou os peixes. Editora Sabiá Ltda. Rio de Janeiro / RJ; 1968; 64 páginas.

Dados da obra:

Com muita delicadeza e sensibilidade, Clarice Lispector narra a história em que confessa ter matado, sem querer, os peixinhos de seu filho, e pede perdão por isso. Antes de contar o fato como realmente aconteceu ela fala sobre todos os bichos de estimação que já viveram em sua casa, convidados ou não, além de outros animais de amigos e conhecidos. Por essa história a criança compreende que a mãe também erra, como todos os seres humanos.

Breve relato da autora:

Clarice Lispector, cujo nome de batismo é Haia Pinkhasovna Lispector, nasceu na Ucrânia, mas chegou ao Brasil quando tinha dois meses, por isso é considerada uma escritora e jornalista brasileira. Por iniciativa de seu pai, à exceção de Tania – irmã, todos mudaram de nome em terras brasileiras.

Passagens:

“Vocês ficaram tristes com essa história: Vou fazer um pedido para vocês: todas as vezes que vocês se sentirem solitários, isto é, sozinhos, procurem uma pessoa para conversar. Escolham uma pessoa grande que seja muito boa para crianças e que entenda que às vezes um menino ou uma menina estão sofrendo. Ás vezes de pura saudade, como os periquitos australianos. Conheço uma moça que toca piano muito bem nos teatros. Essa moça ganhou de presente no dia do seu aniversário um periquito australiano. Só ganhou a fêmea. O pior é que as pessoas que dão um periquito australiano têm que comprar dois: um macho e uma fêmea que, por causa da raça deles, são tão amorosos que passam o dia se beijando e não podem ser separados. A periquita até adoeceu de tanta saudade do macho dela.”

“Eu fico muito ofendida quando um bicho tem medo de mi, pois sou corajosa e protejo os animais. Quem de vocês tiver medo, eu cuido e consolo. Porque sei o que é o medo que as crianças têm porque já fui criança. Até hoje ainda tenho medo de certas coisas.”

“Devem ter passado fome, igual a gente. Mas nós falamos e reclamamos, o cachorro late, o gato mia, todos os animais falam por sons. Mas o peixe é tão mudo como uma árvore e não tinha voz para reclamar e me chamar. E quando fui ver, estavam parados, magros, vermelhinhos – e infelizmente já mortos de fome.”

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Rimbaud

White, Edmund. Rimbaud: a vida dupla de um rebelde. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2010; 190 páginas.

Dados da obra:

Ensaio bibliográfico que refaz o trajeto de Arthur Rimbaud, da infância sob a vigília de uma mãe dominadora à descoberta da boemia parisiense, da paixão tórrida pelo também poeta Paul Verlaine, ao tráfico de armas no continente africano.

Breve relato do autor:

Edmund White é um romancista, escritor de contos e crítico literário, nascido em Cincinnati, Ohio, nos Estados Unidos. Sua obra mais conhecida é, provavelmente, A vida privada de um rapaz, o primeiro volume de uma trilogia autobiográfica que tem continuação com Um belo quarto vazio e Sinfonia a despedida.

Passagens:

“Alguma coisa naquele professor sem papas na língua deve ter atraído o jovem Rimbaud – e assim que ouviu falar da biblioteca de Izambard o menino também se sentiu fortemente atraído por ela. Izambard tinha uma grande coleção de todos os livros mais recentes de poesia francesa e de revistas literárias, bem como muito dos clássicos, e estava disposto a emprestar aqueles volumes ao ávido aluno. Numa cidade pequena, e numa época anterior à difusão das bibliotecas públicas, a simples possibilidade de pôr a mão em livros podia ser um problema quase intransponível.”

“Tal como diversos escritores daquela época (incluindo Marx um pouco antes), Rimbaud adquiriu um ‘bilhete de leitor’ no Museu Britânico. Assim como os escritores picaretas retratados no romance New Grub Street (1891), de George Gissing, sobre a empobrecida classe dos escrevinhadores, Rimbaud passava seus dias na biblioteca pública, onde o calor e a luz eram de graça – um pouco como os cafés de Paris, onde se podia ficar sentado sem ser perturbado ao preço de uma xícara de café. Além disso, Rimbaud podia mergulhar nas amplas coleções de livros do Museu Britânico – incluindo livros escritos pelos communards e indisponíveis na França. Tentou consultar livros pornográficos em francês de autoria do marquês de Sade, mas não lhe deram permissão – tais livros só eram acessíveis a uns poucos ‘especialistas’”.

“Rimbaud sempre insistira com Verlaine para que escrevesse em versos de onze sílabas, o que confere ao poema um andamento estranho, trôpego, que um poeta suave (como Verlaine) ou alquímico (como Rimbaud) poderia disfarçar tensionando o pensamento ou a sintaxe. Por estranho que pareça, tanto Rimbaud quanto Verlaine, nessa fase inicial de separação, aceitaram o desafio do verso de onze sílabas, como se permanecessem fiéis um ao outro na própria pulsação da poesia, muito mais profunda do que as imagens ou o tema.”

“Embora tivesse dado as costas de vez à literatura, Rimbaud permanecia obcecado por livros. Tal como os dois comoventes mas absurdos autodidatas do ‘romance tragicômico’ de Flaubert, Buvard e Pécuchet, Rimbaud queria aprender tudo de cada área de conhecimento prático. Fez vir da França livros sobre metalurgia, hidráulica, funcionamento de barcos a vapor, arquitetura naval, mineralogia, como instalar um depósito de madeira, um guia de bolso sobre carpintaria, alvenaria e assim com diante... Ele, que tinha desejado transformar o mundo por meio da alquimia da linguagem, estava agora reduzido a estudar as verdadeiras técnicas práticas. E, no entanto, o objetivo – saber tudo e controlar tudo – permanecia o mesmo.”

“Verlaine, apesar da falta de contato com Rimbaud, permaneceu fiel a seu gênio. Em 1883, publicou três livretos chamados Les poetes maudits sobre Rimbaud, Mallarmé e Tristan Corbière. Todos os três, hoje reconhecidos entre os maiores de seu tempo, eram desconhecidos quando Verlaine decidiu escrever sobre eles. O texto dedicado a Rimbaud era especialmente corajoso, já que deve ter trazido à tona os escândalos do passado: o julgamento, a prisão, suas relações imorais com Rimbaud, o divórcio. Amargurado e furioso com Rimbaud nos anos de 1875 a 1880, Verlaine agora só falava dele com afeto e admiração. No panfleto, Verlaine reproduzia vários poemas de Rimbaud, que muitos do meio literário parisiense estava lendo pela primeira vez. Ficaram estupefactos. Conforme escreveu Edmond Lepelletier, ninguém tinha lembranças muito favoráveis do garoto que tinham conhecido quinze anos antes. Tudo o que recordavam eram seus modos grosseiros e que se tinha em alta conta: “As citações feitas por Verlaine foram como uma revelação”. Sem os esforços de Verlaine, Rimbaud seria apenas uma nota de rodapé na história de um movimento literário esquecido, o Zutismo.”

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A Ilha de Nim

Orr,Wendy. A Ilha de Nim. Brinque-Book; São Paulo / SP; 2008; 72 páginas.

Dados da obra:

Nim é uma menina que vive feliz em uma ilha no meio do grande mar azul, com seu pai Jack, um iguana-marinho chamado Fred, uma leoa-marinha conhecida como Selkie, uma tartaruga de nome Chica e uma antena parabólica para seu e-mail. Um belo dia Jack viaja e desaparece com seu barco a vela, obrigando Nim a ser mais valente do que nunca e contar ainda mais com a ajuda de seus velhos e novos amigos.

Breve relato da autora:

Wendy Orr é uma autora de origem canadense, com vários títulos infantis e juvenis publicados. Cresceu com vários animais de estimação, em diferentes lugares da América do Norte e da França.
O livro conta com ilustrações de Kerry Millard, canadense, que cresceu cercada de todo tipo de animais. Tornou-se veterinária e mais tarde começou nova carreira como ilustradora, cartunista e autora premiada.

Passagens:

“O que Nim mais gostava ao fazer pão era de observar a massa que havia feito com farinha seca de trigo, fermento e água transformar-se em pão quentinho. ‘Ciência’, Jack dizia, mas Nim achava que era magia.
Nesse dia não era nada.
Nesse dia, quando o pão borbulhou e inchou no meio, ela nem sorriu. Quando o pegou rapidinho com seu espeto de bambu e o arrumou de volta na folha de bananeira, era apenas pão, porque fazer pão era o que Nim tinha que fazer nesse dia. E se ela fizesse tudo o que tinha para fazer, Jack voltaria para casa à noite e tudo ficaria bem.”

“De repente, ela estava cansada demais para qualquer outra coisa. Fez um sanduíche de banana e se aninhou na rocha entre Selkie e Fred para ler o último capítulo do livro.
Quando terminou ficou feliz e triste ao mesmo tempo, porque o final a fez sentir-se aquecida e sorridente, mas ela não queria dizer adeus às pessoas do livro.
– Vou ler outra vez! – decidiu, e leu o título em voz alta, como se nunca o tivesse visto antes: A Loucura da Montanha, por Alex Rover.”

“Quando a manhã esquentou, eles ficaram descansando nos bancos rasos de areia da Praia da Tartaruga. Chica estava cansada porque tinha nadado centenas de quilômetros e botado noventa e nove ovos. Nim estava cansada porque tinha ficado acordada até tarde vendo Chica botar os ovos. Selkie estava cansada porque tinha ficado preocupada por Nim ter ido dormir tão tarde. Fred não estava cansado, mas ele não se importava de ficar com preguiça se todos estavam.“

“O caniço era de bambu, forte e elástico. Fora feito por Jack para o aniversário de Nim, e ele é que a tinha ensinado a jogar a linha em um arco que assobiava – a melhor parte de uma pescaria, Nim achava.
Era por isso que ela detestava pegar um peixe logo de cara: era como terminar um jogo de bola depois da primeira jogada. Sete tentativas desta vez, e então um peixe prateado dançou na ponta da sua linha. Era bom de comer, do tamanho certo... – Lamento, Peixe – disse Nim, e rapidamente o matou. Essa era a parte de que não gostava.”

“Alex olhou pela janela. Do quadragésimo quarto andar, podia ver a uma longa distância, porém, por mais que se esforçasse, não conseguia ver a Enseada do Buraco da Fechadura ou um Herói em uma jangada de coco.
E só por um momento, Alex desejou ser uma pessoa que fazia coisas em vez de escrever sobre elas... Que pudesse velejar pelos mares ou viver alegremente em uma ilha tropical.
Mas Alexandra Rover era uma sonhadora, não uma ‘fazedora’. Estava presa a um lugar como um trem em um trilho, fazia parte da cidade como o relógio da estação.”

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Blecaute

Paiva, Marcelo Rubens. Blecaute. Editora Brasiliense; São Paulo / SP; 1990; 208 páginas.
Dados da obra:

O enredo se passa em São Paulo, onde dois rapazes e uma garota, de volta de uma expedição que fizeram a uma caverna do Vale do Ribeira, percebem a cidade deserta, ou melhor, com pessoas, mas estas se encontram duras, como que cobertas por uma capa plástica. Cada uma parada conforme a atividade que estivesse executando no momento em que aconteceu essa espécie de “blecaute”, paralisando tudo, para sempre. Sozinhos em meio a uma São Paulo caótica, os três personagens – Rindu (narrador), Martina e Mário – tentam sobreviver, buscando entender o que aconteceu à cidade e descobrindo que a situação se estendia ainda a outras regiões do estado, do país, do mundo.

Breve relato do autor:

Marcelo Rubens Paiva é um escritor, autor teatral e jornalista brasileiro. Aos 20 anos de idade , sofreu um acidente que o deixou tetraplégico. Hoje, com muita fisioterapia, voltou a locomover as mãos e os braços.

Passagens:

“Não fico mais aflito por saber que nada sei. O que é? De quê? De onde veio? Para onde? São perguntas cujas respostas não me interessam. O tempo não precisa ser medido; essa frase tem ficado muito tempo na minha cabeça. Não existe diferença entre verdade e mentira, nem a possibilidade de encontrar o bem e o mal; não sei por que catso comecei a pensar nisso. Não fico alegre, nem triste. Há muito não dou uma risada, nem choro. As palavras não significam nada. Meu corpo se curvou para a frente, cansado, desiludido. Não consigo entender nada. E isso não me comove mais. Os homens fizeram a sua própria história, mas não imaginaram onde iriam desembocar.”

“No princípio, o Céu e a Terra eram fenômenos divinos; e só. Em seguida, a Razão, a Ciência encontrou teorias que os definissem. A luta da humanidade era explicar o inexplicável. Hoje... meu corpo se curvou para a frente, cansado, desiludido. Dane-se! Me lembro de uma música que falava ‘tudo, tudo, tudo vai dar certo...’ e acho engraçado. Nada deu certo. Já me falaram de uma nova Era. Já me falaram do universo em expansão. Mas nada deu certo. Nada.
Começou há muito tempo. Sei lá, há uma porrada de tempo.”

“Era estranho andar por São Paulo à noite, sem nenhum teatro ou cinema ou restaurante ou bar ou uma porra qualquer para ir. Era estranho não ver os milhares de carros levando casais a um programa misterioso, não ver uma garota expondo o corpo numa pista de dança qualquer. Onde estavam os mistérios de uma esquina mal iluminada, o beco sem saída, o mendigo tropeçando nos próprios calcanhares de bêbado, o balcão de bar, o travesti de bunda de fora, o chofer de táxi sonolento, o adolescente fumando nervoso? Onde estavam as peregrinações da vida e da morte? Onde estava a noite?”

“O roubo do cotidiano dos outros virou rotina. Entramos em milhares de filmes, peças e shows atrás de figuras anônimas. Vários vernissages, exposições, festas sem despertarmos a menor suspeita. Era como se não tivéssemos personalidade, gosto ou objetivo. Entregávamos uma noite inteira aos outros. A regra era: escolhido o carro, teríamos de segui-lo sem objeções. Doce sabor de não ter destino...”

“Faça um pedido. Qualquer um. O que a madame quer explodir? É só acender o pavio e bum. Vamos, escolha, vai te fazer bem.
Ela relutou no começo. Mas ficou pensando, pensando, até seus olhos adquirirem outro brilho. Abriu um largo sorriso e perguntou maliciosamente:
– Posso destruir o que quiser?
– Claro. É só escolher – Mário respondeu.
Ela exagerou. Foi longe demais.
– Quero derrubar a antena da Rede Globo na Avenida Paulista.”

“Quando recuperei um pouco as forças, passei o dia limpando a casa, na medida do possível; quase tudo fora destruído. Instalei outra TV e outro aparelho de vídeo. Joguei fora os móveis quebrados. Varri todo o chão. Uma vez, prometi nunca abandonar Mário. Uma vez, senti muito medo de perdê-lo, senti medo de ele morrer. ‘Estragou tudo, eu e você’, ele me disse. Enchi o gerador elétrico com óleo diesel. O blecaute iria chegar, com certeza.
Á noite, fumei um no terraço olhando para o vazio. A cidade estava silenciosa. Vazia. Mário fora embora e eu percebi que estava com medo. E se ele nunca mais voltar? E se ele morrer? Mario estava indo embora e eu ali, olhando para o vazio... Maldito vazio!”

“Uma placa totalmente enferrujada indicava São Paulo a poucos quilômetros. Não me emocionei. Não senti nada. Há tanto tempo sozinho, pulando de cidade em cidade. Congelei qualquer tipo de sentimento. A história da minha vida? Ah, isso faz muito tempo... Por que voltava depois de tantos anos? Sei lá? Acelerei a motocicleta no viaduto de entrada. Foi nesta cidade que tive o contato com o fim. Foi nesta cidade que para mim tudo começou. A terra que cobria o asfalto era um pouco perigosa. Mas não me importava. Há muito não me importava com nada. Talvez tivesse voltado por causa dela. Martina. Ainda estaria viva? Sozinha todos esses anos... Há muito não via um rosto humano vivo. Há muito não ouvia uma palavra. Ainda estaria viva? Nova Iorque, Washington, Los Angeles, México, ninguém, ninguém. Sozinho esse tempo todo. Sei lá.”

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Marcelino Pedregulho

Sempé, Jean-Jacques. Marcelino Pedregulho; CosacNaify; São Paulo / SP; 2009; 122 páginas.

Dados da obra:

Primeiro livro em português de Sempé, conta a história de uma grande e sincera amizade que nasce a partir das diferenças. Marcelino Pedregulho é um menino que enrubesce sem nenhum motivo. Todos o acham muito diferente, então ele se isola das outras crianças para poder brincar em paz. Até que conhece um vizinho muito estranho: Renê Rocha, o garoto violinista que espirra todo o tempo, mesmo sem estar resfriado.

Breve relato do autor:

Jean-Jacques Sempé é um dos mestres do cartum francês, referência mundial ao lado de nomes como Steinberg. Se distinguiu principalmente pela ilustração da série o Le Petit Nicolas (no Brasil, O Pequeno Nicolau).

Passagens:

“O pequeno Marcelino Pedregulho poderia ter sido uma criança alegre como tantas outras. Infelizmente sofria de uma doença esquisita: ele ruborizava. Ficava vermelho por um sim ou por um não. Felizmente, você me diria, Marcelino não era o único a ficar vermelho: todas as crianças ruborizam quando levam uma bronca ou fazem uma besteira. O que era perturbador, no caso de Marcelino, é que ele enrubescia sem nenhum motivo. Isso acontecia quando ele menos esperava.”

“Num dia em que voltava para casa, ruborizando de vez em quando... Ele escutou um barulho que parecia um espirro... Era Renê Rocha, seu novo vizinho. O pequeno Renê Rocha era um menino encantador, violinista sensível, excelente aluno que, desde a mais tenra infância, sofria de uma doença curiosa: ele espirrava toda hora, sem que jamais tivesse ficado resfriado...
... Naquela noite, eles nem conseguiram piscar os olhos, de tão contentes que estavam por terem se encontrado... Eles se tornaram inseparáveis...”

“Se eu quisesse que todo mundo ficasse triste, contaria que os dois amigos, presos às suas obrigações, não se reviram mais. De fato, é o que acontece na maioria das vezes. A gente reencontra um amigo, fica supercontente, faz planos. E depois, a gente não se vê mais. Porque não temos tempo, porque moramos longe um do outro, porque temos um monte de trabalho. Por mil motivos. Mas Marcelino e Renê se reviram.”

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Lendo Lolita em Teerã

Nafisi, Azar. Lendo Lolita em Teerã. Edições Best Bolso; Rio de Janeiro / RJ; 2009; 418 páginas.

Dados da obra:
Neste livro, Azar Nafisi nos conduz à intimidade da vida de oito mulheres que precisam encontrar-se secretamente para explorar a literatura ocidental proibida em seu país. Durante dois anos, antes de deixar o Irã, em 1997, Nafisi e mais sete jovens liam em conjunto Orgulho e Preconceito, Madame Bovary, Lolita e outras obras clássicas sob censura literária. A narrativa de Nafisi remonta aos primeiros dias da revolução islâmica liderada pelo aiatolá Khomeini (1979), quando ela começou a lecionar na Universidade de Teerã.

Breve relato da autora:

Azar Nafisi é professora e escritora iraniana, que reside nos Estados Unidos desde 1997, quando emigrou do Irã. Seu campo é a literatura de língua inglesa.

Passagens:

“Expliquei-lhes o objetivo das aulas: ler, discutir, permitir ser tocada pelas obras de ficção. Cada uma delas teria um diário pessoal, no qual deveria registrar suas reações aos romances, e também o modo pelo qual essas obras e as discussões que suscitavam estavam relacionadas com suas experiências pessoais e sociais. Disse-lhes que as escolhera para essas aulas porque pareciam dedicadas ao estudo da literatura. Mencionei que um dos critérios para a escolha dos livros tinha sido a fé deles no poder crítico e quase mágico da literatura, lembrei-lhes de que Nabokov, aos 19 anos, não permitiu que o som das balas o distraísse durante a Revolução Russa. Ele continuou a escrever seus solitários poemas enquanto ouvia o estrondo das armas e via as lutas sangrentas de sua janela. Veremos, eu disse, se setenta anos depois, nossa fé nos recompensará, transformando a realidade sombria criada por esta outra revolução.”

“Na verdade, upsilamba era uma das imaginárias criações de Nabokov, possivelmente uma palavra que inventou a partir de upsilom, vigésima letra do alfabeto grego, e lambda, a décima primeira. Então naquele nosso primeiro dia de aula em minha casa, deixamos nossas mentes brincarem novamente e inventamos novos significados para nós mesmas...
... Upsilamba se tornou parte do nosso crescente arquivo de palavras e expressões codificadas, um arquivo que cresceu com o tempo até que gradualmente criamos uma linguagem secreta própria. Aquela palavra se tornou um símbolo, um sinal de uma vaga sensação de alegria, o formigamento na espinha que Nabokov esperava que seus leitores sentissem ao ler ficção; era essa sensação que separava os bons leitores, como ele os chamava, dos leitores comuns. Upsilamba também se tornou a palavra-código que abria a caverna secreta da memória.”

“Fui deitar perturbada, depois da nossa primeira discussão sobre Lolita, pensando na pergunta de Mitra. Por que Lolita e Madame Bovary nos davam tanta alegria? Havia algo errado com esses romances ou conosco? Na quinta-feira seguinte eu havia formulado meus pensamentos, e não via a hora de compartilhá-los com minha turma.
Nabokov chama todo romance de conto de fadas, eu diria. E acrescentaria: primeiro deixe-me relembrá-las de que os contos de fadas são repletos e bruxas ameaçadoras que comem crianças, de madrastas malévolas que envenenam suas lindas enteadas, de pais fracos que deixam seus filhos abandonados nas florestas. Mas a mágica vem do poder do bem, aquela força que nos diz que não devemos nos submeter às limitações e às restrições que nos são impostas pelo Senhor Destino, como Nabokov o chamava. Todo conto de fadas oferece o potencial para superar os limites e, assim, eles oferecem liberdades que a realidade nos nega. Em todas as grandes obras de ficção, independente da impiedosa, sinistra ou implacável afirmação da vida contra a transitoriedade daquela vida, um desafio essencial. Essa afirmação está na maneira que o autor controla a realidade, recontando-a do seu próprio modo, criando, assim, um mundo novo. Declararia com pompa: toda grande obra de arte é um celebração, um ato de insubordinação contra as traições, os horrores e as infidelidades da vida. A perfeição e a beleza da forma se rebelam contra a feiura e a miséria do tema. É por isso que amamos Madame Bovary e choramos por Emma, por isso que lemos Lolita avidamente, enquanto nosso coração se parte de dor por sua heroína órfã e desafiadora, pequena, vulgar e poética.”

“Perguntei aos meus alunos em nosso primeiro dia de aula, o que eles achavam que a ficção poderia proporcionar, porque, afinal, alguém deveria se preocupar em ler ficção. Foi um modo diferente de iniciar uma aula, mas consegui prender a atenção da turma. Expliquei que iríamos ler e discutir diferentes autores durante aquele semestre, mas que todos os autores escolhidos tinham a subversão como algo em comum. Alguns deles, como Gorki e Gold, eram abertamente subversivos em seus objetivos políticos; outros como Fitzgerald e Mark Twain, eram, na minha opinião, ainda mais subversivos, embora isso não fosse óbvio. Disse aos alunos que frequentemente voltaríamos ao termo subversão, pois minha compreensão desse termo era diferente da sua definição habitual. Escrevi no quadro uma das minhas frases favoritas do pensador e filósofo alemão Theodor Adorno: ‘a mais elevada forma de moralidade é não se sentir em casa em sua própria casa’. Expliquei-lhes que a maioria das grandes obras da imaginação pretendia nos fazer sentir como estrangeiros em nossa própria casa. A melhor ficção sempre nos força a questionar aquilo que temos como certo. Ela questiona as tradições e as expectativas, quando estas parecem ser imutáveis. Disse-lhes que gostaria que eles observassem de que modo essas obras os perturbavam, produziram desconforto, fizeram com que analisassem o mundo à sua volta, como Alice no país da maravilhas, através de diferentes olhares.”

“A aptidão de Razieh para a beleza era extraordinária. Ela disse: sabe, toda a minha vida eu passei na pobreza. Eu precisava roubar livros e entrar sorrateiramente nas salas de cinemas – mas, meu Deus, como eu amava aqueles livros! Não creio que nenhuma criança rica jamais tenha gostado de Rebecca ou... E o vento levou como eu, quando pedia emprestadas as edições traduzidas nas casas onde minha mãe trabalhava. Mas no caso de James – ele é diferente de todos os demais escritores que já tenha lido. Acho que estou apaixonada, completou rindo.”

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O Vampiro de Curitiba

Trevisan, Dalton. O Vampiro de Curitiba. Editora Record; Rio de Janeiro / RJ; 1983, 107 páginas.

Dados da obra:

O livro traz histórias curtas, com linguagem leve e concisa, que giram em torno de um personagem, Nelsinho, rapaz que perambula pela cidade, no caso Curitiba, em busca de amor e sexo. Dessa forma ele encontra viúvas, velhinhas, moças, prostitutas, não importa, em todas elas busca o consolo do qual precisa.

Breve relato do autor:

Dalton Trevisan é um escritor brasileiro, reconhecido como um importante contista da literatura brasileira por grande parte dos críticos do país.

Passagens:

“Aos trancos, arrastou-se o elevador ao segundo andar. Não fosse herói de caráter, esquecia o embrulho ali na porta e adeus, dona Alice. Gemeu baixinho – afinal, a primeira professora da gente, ensinara-o a ler, escrever o nome, as quatro operações – e apertou a campanhia. Nenhum som do outro lado. Sabia o que era uma antiga professora, acha você o eterno menino de calça curta. Impossível dar o recado e despedir-se: o pacote era a maçã no primeiro dia de aula. Não o largaria sem que aceitasse um cafezinho e ouvisse os queixumes de solteirona. Vou tocar outra vez e, se não atender, caio fora. Apalpou o objeto – fofo, um cachecol? –, decidiu abandoná-lo na parta. Era tarde: chinelos cansados arrastavam-se em surdina. Duas voltas n fechadura – solteirona guardada a sete chaves.”

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Coração de tinta

Funke, Cornelia. Coração de Tinta. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2006; 456 páginas.

Dados da obra:

Literatura infanto-juvenil cuja história gira em torno do encadernador Mo, cuja habilidade é dar vida aos personagens dos livros quando lido em voz alta. Mas, ao fazer isso, acaba colocando sua vida e a vida da esposa e da filha, Meggie, em perigo, por causa do vilão sanguinário, Capricórnio, que sai da obra Coração de Tinta. A intenção do bandido é fazer com que Mo traga do livro um malvado ainda mais terrível que ele.
O livro venceu o prêmio BookSense Book of the Year Children's Literature de 2004. E faz parte de uma trilogia, que segue com Sangue de Tinta e Morte de Tinta.

Breve relato da autora:

Cornelia Funke é uma escritora alemã de literatura infantojuvenil. Sua fama internacional surgiu com a novela de fantasia O Cavaleiro do Dragão, continuando com O Senhor dos Ladrões e depois com a trilogia Mundo de Tinta.

Passagens:

“Como a chuva não a deixava dormir, ela se sentou, esfregou os olhos e pegou o livro. As páginas farfalhavam cheias de promessas quando ela o abriu. Meggie achava que esses primeiros sussurros soavam de maneira diferente em cada livro, conforme ela soubesse ou não o que ele lhe contaria.”

“A luz do quarto de Mo estava acesa. Era comum ele ficar lendo até altas horas da noite. Meggie herdara do pai a paixão pelos livros. Quando ela tinha um sonho ruim e ia se refugiar junto dele, não havia nada melhor para fazê-la adormecer do que a respiração calma de Mo ao seu lado virando as páginas de um livro. Nada espantava mais rápido os sonhos ruins do que o barulho das folhas impressas.”

“– Mo, por favor! Venha comigo.
Ele não estava acreditando, mas foi atrás dela. Meggie o puxava com tanta impaciência que ele deu uma topada com o dedão do pé numa pilha de livros. E no que mais poderia ser? Havia livros espalhados por toda a casa. Eles não ficavam apenas nas estantes, como na casa das outras pessoas. Não, ali eles se empilhavam de baixo das mesas, em cima das cadeiras, nos cantos dos quartos. Havia livros na cozinha e no banheiro, em cima da televisão e dentro do guarda-roupa, pilhas pequenas, pilhas altas, livros grossos e finos, velhos e novos... livros. Eles acolhiam Meggie de páginas abertas, na mesa do café da manhã, espantavam o tédio nos dias cinzentas – e de vez em quando alguém tropeçava neles.”

“Na porta da oficina de Mo havia uma placa uma pequena placa de latão. Meggie sabia d cor as palavras que estavam escritas ali. Aos cinco anos ela aprendera a ler com aquelas letras antigas e enfeitadas:
Alguns livros devem ser degustados,
Outros são devorados,
Apenas poucos são mastigados
E digeridos totalmente.”

“– Mas como fazem essas crianças sem livros de histórias? – perguntou Naftali.
E Reb Zebulun respondeu:
– Elas têm que se conformar. Livros de histórias não são como pão. Pode-se viver sem eles.
– Eu não poderia viver sem eles – disse Naftali”
(Isaac B. Singer – Naftali, o contador de histórias, e seu cavalo Sun)

“... É bom ter os próprios livros quando se está num lugar estranho, Mo dizia. Ele mesmo sempre levava pelo menos uma dúzia.
... Quando você leva um livro numa viagem, dissera Mo quando ela pôs o primeiro no baú, acontece uma coisa estranha: o livro começa a colecionar lembranças. Depois basta abri-lo, e você já está de novo no lugar onde leu. Tudo volta, já nas primeiras palavras: as imagens, os cheiros, o sorvete que você tomou enquanto lia... Acredite, os livros são como papel pega-moscas. Não existe nada melhor para guardar lembranças do que páginas impressas.”

“Meggie sentou-se no banco atrás da casa, ao lado do qual ainda estavam fincadas as tochas queimadas de Dedo Empoeirado. Ela nunca hesitara tanto antes de abrir um livro. Tinha medo do que a esperava dentro dele. Era uma sensação totalmente nova. Nunca antes tivera medo do que um livro lhe contaria, ao contrário, na maior parte das vezes estava tão ansiosa por se deixar levar para um mundo desconhecido e inexplorado que começava a ler nas ocasiões mais inadequadas. Muitas vezes, no café da manhã, ela e Mo ficavam lendo, os dois, e várias vezes aconteceu de ela chegar atrasada à escola. Ela também lia com o livro debaixo da carteira da escola, no ponto do ônibus, em visitas a parentes, tarde d noite debaixo do cobertor, até que Mo tirava o livro dela e a ameaçava recolher todos os outros que tinha em seu quarto para que ela finalmente pudesse dormir o suficiente. Naturalmente ele nunca faria isso, e sabia que ela sabia que não, mas depois dessas advertências, ela punha o livro debaixo do travesseiro, lá pelas nove horas, e o deixava continuar a fluir em seus sonhos, para que Mo não deixasse de ter a sensação de ser realmente um bom pai.”

“– Por todas as letras do alfabeto! – sussurrou Fenoglio quando andava junto com Meggie pela nave central da igreja, com Basta em seus calcanhares. – Ele é exatamente como eu o imaginei. ‘Pálido como um copo de leite’, sim, acho que foram essas as palavras que usei.
Ele começou a andar mais depressa, como se não aguentasse esperar para ver de perto sua criatura...
... Fenoglio não desgrudava os olhos de Capricórnio por um só instante. Ele o observava como um artista que, depois de longos anos, revê um quadro que pintou. E, a julgar pela expressão do seu rosto, estava gostando do que via. Meggie não conseguia ver nenhum vestígio de medo em seus olhos, apenas uma curiosidade quase incrédula e satisfação, satisfação consigo mesmo. Capricórnio não gostou desse olhar, como Meggie também notou. Ele não estava acostumado ser encarado tão destemidamente, como fazia o velho escritor.
– Basta me contou algumas coisas estranhas a seu respeito, senhor...
– Fenoglio.
Meggie observou o rosto de Capricórnio. Ele teria lido alguma vez o nome que ficava na capa de Coração de Tinta, logo embaixo do título?
– Até mesmo a voz dele é como imaginei! Fenoglio sussurrou para Meggie.
Ele parecia encantado como uma criança diante da jaula do leão.”

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O ano do pensamento mágico

Didion, Joan. O ano do pensamento mágico. Nova Fronteira. São Paulo / SP; 2006; 221 páginas.

Dados da obra:

Ensaio pessoal que narra o período de um ano que se seguiu à morte de seu marido, o também escritor John Gregory Dunne, e a doença de sua única filha. O livro revela uma experiência pessoal e, ao mesmo tempo, universal. É um livro sobre a superação e sobre a nossa necessidade de atravessar - racionalmente ou não - momentos em que tudo o que conhecíamos e amávamos deixa de existir.

Breve relato da autora:

Joan Didion é uma escritora norte- americana cujos trabalhos como jornalista, ensaísta e romancista a tornaram muito reconhecida tanto nos Estados Unidos quanto em outros países para os quais ela foi traduzida. Didion colabora freqüentemente no The New York Review of Books e na revista The New Yorker.

Passagens:

“... A minha vida inteira eu passei esperando (temendo, suspeitando, prevendo) por aquelas mortes... Depois da morte da minha mãe, recebi uma carta de um amigo de Chicago, um ex-missionário da organização Maryknoll, que teve uma intuição muito precisa sobre o que eu senti. A morte de um dos pais, ele escreveu, ‘apesar de estar preparados e apesar da nossa experiência, mexe em coisas muito profundas dentro de nós, desencadeando reações que nos surpreendem e que podem liberar lembranças e sentimentos que pensávamos estar enterrados há muito tempo. Nesse período indeterminado que chamamos de luto, é como se estivéssemos num submarino silencioso no fundo do mar, sofrendo a pressão da profundidade. Ás vezes estamos perto, às vezes estamos longe, sempre mergulhados em recordações’ .”

“A gente não estava se divertindo, ele havia recentemente comentado. Eu mencionava as exceções (mas a gente não fez isso, a gente não fez aquilo?), mas eu também sabia o que ele estava querendo dizer. Ele queria dizer não apenas fazer as coisas só porque se esperava que a gente as fizesse ou porque sempre as tinha feito ou porque deveríamos fazê-las, mas porque a gente tinha vontade de fazê-las. Ele queria dizer desejar. Ele queria dizer viver.”

“Nunca vi nenhum ser selvagem / sentir pena de si mesmo”, escreveu D.H. Lawrence, numa citação de quatro linhas, muito explorada que, após ser examinada, revela um significado tendencioso. “Um passarinho cai morto, gelado, de um galho / sem nunca ter sentido pena de si mesmo.”

“Isso pode ser o que D. H. Lawrence gostaria (ou o que nós gostaríamos) de acreditar, com relação a seres selvagens, mas temos que levar em consideração os golfinhos que se recusam a comer após a morte do companheiro. Temos que levar em consideração os gansos, que procuram pelo companheiro perdido até ficarem desorientados e morrerem. Na verdade, os que estão afligidos pela perda têm motivos prementes, às vezes até uma necessidade urgente, de sentir pena de si próprios. Os maridos vão embora, as esposas vão embora, os divórcios acontecem, mas esses maridos e mulheres deixam atrás deles uma teia de associações intactas e amargas. São os que sobreviveram a uma morte é que são realmente deixados sozinhos.”

“Nós não somos criaturas selvagens idealizadas.
Somos seres mortais e imperfeitos conscientes da mortalidade, apesar de ficarmos empurrando-a adiante, o que acaba não funcionando devido às nossas próprias complicações. Quando choramos nossas perdas, ficamos tão transtornados que a gente chora, para o bem ou para o mal, também por nós mesmos. Pelo que nós éramos. Pelo que não somos mais. Pelo que um dia não seremos de modo algum.”

“Somente após ter lido o laudo da autópsia, comecei a acreditar no que haviam me dito várias vezes: nada do que ele ou eu pudéssemos ter feito ou deixado de fazer causaria ou teria evitado a morte de John. Ele tinha recebido de herança um coração fraco que ia acabar matando-o. A data na qual o coração o mataria já havia sido, devido a muitas intervenções médicas, adiada. Quando aquele dia finalmente chegou, não havia nada que eu pudesse fazer em casa que desse a ele mais um dia que fosse – eu não tinha um desfibrilador portátil, nem um equipamento de RCP, nada sequer parecido com um kit completo para problemas cardíacos, nem as instalações necessárias para executar uma cardioversão, nem a medicação intravenosa necessária.”

“Eu não queria terminar o ano porque sei que, à medida que os dias passam e janeiro se torna fevereiro, e depois se torna verão, certas coisas vão acontecer. A imagem que tenho do John na hora da morte vai se tornar menos imediata, menos curta. Vai se tornar algo que aconteceu em outro ano. A minha sensação do John, do John vivo, vai se tornar mais remota, até ser “embaçada”, amaciada, transmutada em qualquer coisa que sirva melhor à minha vida sem ele. Na realidade, isso já está começando a acontecer. O ano todo, fiquei marcando o tempo pelo calendário do ano passado: o que a gente estava fazendo nesse mesmo dia do ano passado; onde é que a gente jantou; foi esse o dia em que, no ano anterior, fomos para Honolulu... Percebi hoje, pela primeira vez, que a minha memória desse mesmo dia, um ano antes é uma memória que não envolve John. O dia de hoje, há um ano, era 31 de dezembro de 2003. John não viu esse dia no ano passado. Ele tinha morrido.”

“Eu sei que tentamos manter vivos os mortos. Tentamos mantê-los vivos para mantê-los conosco.
Sei também que, se a gente vai continuar vivo, chega uma hora em que a gente tem que abandonar os mortos, deixá-los ir, mantê-los mortos.
Deixar que eles se tornem uma fotografia em cima da mesa.
Deixar que eles se tornem um nome nas contas do inventário.
Soltar-se deles na água.
Saber disso não torna mais fácil soltar-se do John na água.”

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O caçador de pipas

Hosseini, Khaled. O caçador de pipas. Editora Nova Fronteira; São Paulo / SP; 2005. 368 páginas.

Dados da obra:

Este romance conta a história da amizade de Amir e Hassan, dois meninos quase da mesma idade, que vivem vidas muito diferentes no Afeganistão da década de 1970. Amir é rico e bem-nascido, um pouco covarde, e sempre em busca da aprovação de seu próprio pai. Hassan, que não sabe ler nem escrever, é conhecido por coragem e bondade. Durante um campeonato de pipas, no inverno de 1975, que Hassan dá a Amir a chance de ser um grande homem, mas ele não enxerga sua redenção. Após desperdiçar a última chance, Amir vai para os Estados Unidos, fugindo da invasão soviética ao Afeganistão, mas vinte anos depois Hassan e a pipa azul o fazem voltar à sua terra natal para acertar contas com o passado.

Breve relato do autor:

Khaled Hosseini é um romancista e médico afegão, com naturalização estadunidense. Apesar do sucesso com a literatura, Hosseini continua praticando medicina.

Passagens:

“... Era muito estranho ver Ali feliz, ou triste, pois, no seu rosto enrijecido, apenas os olhos castanhos e oblíquos brilhavam com um sorriso ou se umedeciam com a tristeza. Dizem que os olhos são as janelas da alma. Isso nunca foi tão verdadeiro como no caso de Ali, que só podia se revelar através deles.”

“Hassan e eu mamamos no mesmo peito. Demos os nossos primeiros passos na mesma grama do mesmo quintal. E, sob o mesmo teto, dissemos nossas primeiras palavras.
A minha foi baba.
A dele, Amir. O meu nome.
Olhando para trás, agora, fico pensando que os alicerces do que aconteceu no inverno de 1975 – e de tudo o que veio depois – já estavam contidos nessas primeiras palavras.”

“Hassan e eu nos entreolhamos. E caímos na gargalhada. Aquele pirralho indiano logo, logo aprenderia o que os britânicos aprenderam no começo do século, e os russos viriam a descobrir em fins da década de 1980: que os afegãos são um povo independente. Cultivam os costumes, mas abominam as regras.”

“Lembrei de algo que meu pai tinha dito uma vez sobre os pashtuns. ‘Podemos ser cabeças-duras, e sei muito bem que somos orgulhosos demais. Na hora da necessidade, porém, pode acreditar: não há ninguém melhor para se ter ao nosso lado que um pashtun’.”

“Mas não era só porque tinha conseguido uma plateia para os seus monólogos sobre doenças que ela me tratava daquele jeito. Estou convencido de que, se eu pegasse um rifle e começasse uma escalada assassina, ainda assim continuaria a contar com o amor incondicional de Khala Jamila. Porque tinha livrado o seu coração da mais grave das doenças. Tinha eliminado o maior medo de todas as mães afegãs: o de que nenhum khastegar respeitável viesse pedir a mão de sua filha em casamento. Que sua filha fosse envelhecer sozinha, sem marido, sem filhos. E toda mulher precisa de um marido. Mesmo que ele faça calar a canção que existe nela.”

“Pelo que vejo, os Estados Unidos infundiram em você o otimismo que fez deles um grande país. Isso é ótimo. Nós, os afegãos, somos um povo melancólico, não somos? Quase sempre ficamos chafurdando em ghamkhori e autopiedade. Damo-nos por vencidos diante das perdas, do sofrimento; aceitamos tudo isso como um fato da vida ou chegamos até considerá-lo algo necessário. Zendagi migzara, como dizemos, a vida continua...”

“Como pôde mentir para mim durante todos esses anos? E também para Hassan? Quando eu era pequeno, ele me pôs no colo, olhou bem dentro dos meus olhos e disse; ‘Existe apenas um pecado, um só. E esse pecado é roubar... Quando você mente está roubando de alguém o direito de saber a verdade!’ Não foram essas as palavras que ele me disse? E agora 15 anos depois de eu o ter enterrado, acabo descobrindo que baba era um ladrão. Um ladrão da pior espécie, porque as coisas que roubou eram sagradas: de mim, o direito a ter um irmão; de Hassan, a própria identidade; e de Ali, a honra. Sua nang. Seu namoos.”

“Ri. Em parte, por causa da piada; em parte por ver que o humor afegão não mudava nunca. Guerras foram travadas, a internet foi inventada e um robô tinha circulado pela superfície de Marte, mas, no Afeganistão, as pessoas continuavam a contar piadas sobre o mulá Nasruddin.”

“... Se ajeitou atrás de Hassan. Este não lutou. Nem mesmo se lamentou. Virou a cabeça lentamente e pude ver o seu rosto de relance. O que vi, ali, foi resignação. Era um olhar que eu já tinha visto antes. O olhar de um cordeiro.”

“Ele já estava dobrando a esquina, com as botas de borracha levantando neve do chão. Parou e se virou. Pôs as mãos em concha junto da boca.
– Por você faria mil vezes! – disse ele. E deu aquele sorriso de Hassan, desaparecendo então na esquina. Só voltei a vê-lo sorrir assim tão descontraído 26 anos mais tarde, olhando uma foto Polaroid desbotada.”

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Colbert, David. O Mundo Mágico de Harry Potter. Editora Sextante; São Paulo / SP; 2001; 192 páginas.

Dados do livro:

Nesta obra, o autor procura as referências sobre mitos, lendas e textos literários que a escritora J. K. Rowling utiliza para compor as histórias do bruxinho Harry Potter. Ele desvenda as pistas deixadas ao longo das histórias pela escritora, além de mostrar a origem das criaturas mágicas. Apresenta histórias de alquimistas e feiticeiros reais e imaginários, por meio de escritores como Dickens, Shakespeare, Flaubert, Tolkien e Ovídio.

Passagens:

“Em uma entrevista, Rowling confirmou que os dementadores representam a doença mental conhecida como depressão: É exatamente o que eles são. Foi uma coisa inteiramente consciente e totalmente tirada da minha experiência. A depressão foi a coisa mais desagradável que vivenciei. É uma impossibilidade de imaginar que você algum dia será uma pessoa alegre novamente. A ausência de esperança. Um sentimento de apatia muito diferente da tristeza. A tristeza machuca, mas é um sentimento saudável, uma coisa necessária. Depressão é outra história.”

“Os espelhos são, principalmente, reflexos de nós mesmos, para o Bem e para o Mal. É por isso que podem se tornar perigosos. O Espelho de Ojesed em A Pedra é um bom exemplo deste tipo de espelho. Era um magnífico espelho, da altura do teto, com uma moldura em talha dourada. No seu topo havia a seguinte inscrição: Oãça rocu esme ojesed osamo tso rueso ortso moãn, o que evidentemente é o reflexo no espelho de: Não mostro seu rosto mas o desejo em seu coração.

“A fênix é um pássaro mágico. Vive por muitos séculos – alguns dizem que por mais de quinhentos anos. O poeta latino Ovídio escreveu:

Quantas criaturas sobre a Terra
Tiveram sua primeira existência sob outra forma?
No entanto, existe uma que é como sempre foi,
Renascida sempre, como se não tivesse idade, no decorrer dos anos.
É o pássaro assírio ao qual chamam fênix.
Ele não come as semente comuns, nem folhas,
Mas bebe do suco das ervas mais raras, com sua ardência adocicada.
Quando completa quinhentos anos de existência,
Carrega seu ninho para o alto de uma palmeira ondulante
E, com delicadeza e capricho, suas garras preparam o leito
Com cascas de árvore e especiarias, mirra e canela,
E morre enquanto a fumaça do incenso carrega sua alma para o alto.
Então, do seu peito – assim conta a lenda –,
Uma pequena fênix se ergue
Para viver, assim dizem, outros quinhentos anos
.”

“Mas algumas pessoas dizem que Hogwarts é diferente da maioria dos internatos. É uma escola onde se tem prazer de estar: a comida é deliciosa, e Harry dorme numa cama de quatro colunas. É tolerante: mesmo que a desobediência possa custar à casa do aluno a perda de alguns pontos, os professores são indulgentes. E, acima de tudo, Dumbledore a torna um lugar onde prevalece a justiça.”

“Dentro das paredes de Hogwarts, a liderança de Dumbledore gerou um ideal atraente. O mal não deve ser afastado medrosamente, nem mesmo enfrentado com força e coragem. Deve ser contraposto pela compaixão. Mais de uma vez, Dumbledore já demonstrou sua forte crença na possibilidade de recuperação de bruxos corrompidos pelo mal.
Cada um dos quatro fundadores de Hogwarts tem qualidades individuais que formam um todo equilibrado. Mesmo a ambição de Slytherin pode ser direcionada para o bem, uma vez contrabalançada com as características demonstradas pelas outras casas. É parte da realidade, parte de todo indivíduo – assim como Harry tem um pouco de Voldemort em si. Tentar eliminar isso seria tolo e, também, impossível.”

“Na mitologia grega, Cassandra era uma vidente – podia prever o futuro. Recebeu esse Dom do deus Apolo, que a amava. Ele lhe prometera o dom da profecia se ela retribuísse seus sentimentos. Mas, depois de se tornar clarividente, ela mudou de ideia, e Apolo, enfurecido, amaldiçoou-a. Sua condenação foi que ninguém jamais acreditasse em suas palavras, o que trouxe a Cassandra muito sofrimento.”

“No passado, alguns bruxos fizeram varas de madeira do sabugueiro, que é considerada especialmente dotada de magia. Aqueles que praticam a magia negra usam, com frequência, o cipreste, que é associado à morte. No entanto, J. K Rowling nos conta que a varinha de Voldemort é feita de teixo. E isso também faz sentido. O teixo tem imenso poder sobrenatural. Houve tempo em que o teixo era uma das poucas árvores que permaneciam sempre verdes, na Inglaterra, e assim tornou-se símbolo tanto da morte, quanto do renascimento – a mesma imortalidade que Voldemort desesperadamente deseja.”

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Fantástica viagem

Camargo, Zeca. A Fantástica Volta ao Mundo. Editora Globo; São Paulo / SP; 2004; 408 páginas.

Dados da obra:

Registros e bastidores de viagem por Zeca Camargo, revelando aquilo que o telespectador não viu na televisão. Foram quatro meses longe de casa, mais de 100 mil quilômetros percorridos em 54 trajetos de avião. Dezessete exuberantes países visitados ao redor do planeta. Da concepção do projeto aos obstáculos práticos para a produção, o autor conta a história (e as histórias) de sua experiência de jornalismo itinerante as grandes surpresas, os personagens mais marcantes, as impressões de um brasileiro ao conhecer lugares e culturas tão diferentes.

Breve relato do autor:

Zeca Camargo (nome de batismo: José Carlos Brito de Ávila Camargo) é apresentador e jornalista. Editor-chefe e apresentador do Fantástico, da Rede Globo.

Passagens:

“Chegar a um dos lugares mais lindos do mundo tem um preço. No nosso caso, aterrissar na Nova Zelândia nos custou um dia. Um dia mesmo, desses de calendário. É até estranho falar, mas, depois dessa viagem, vai ficar faltando, para sempre, um dia na minha vida.
Nada de dramas... Mas eu queria deixar claro que saí de Honolulu às 23h55 do dia 31 de maio, peguei no sono, voei por nove horas e acordei em Auckland, Nova Zelândia, às 7h15 da manhã DO DIA 02 DE JUNHO!! Esse é um assunto que eu adoro, mas é meio complicado de entender. A noção da linha do tempo parece às vezes abstrata demais para o nosso pensamento.
Também não é muito simples explicar, mas vamos tentar.
Cruzamos a linha do tempo, certo? Ela fica bem no oceano Pacífico, escolhida arbitrariamente, talvez por ser uma faixa do planeta que não atravessa muitas porções de terra – vai saber! Enfim, não importa se é dia ou noite, cruzou a linha, você muda de dia. A oeste dessa linha é amanhã; a leste, é ontem. E “hoje” é sempre o lado onde você está. Confuso? Então recomendo a leitura do genial A ilha do dia anterior, de Umberto Eco.”

(sobre cangurus)
“Felizmente, eles logo se mostraram carinhosos. De perto, aquelas coisas fofinhas eram até meio... bem feias. Ou melhor, esquisitas. Experimente ficar olhando para um bicho desses sem se comover. Ele é totalmente desproporcional: um focinho comprido, um olho grande demais, um rabo que mais parece um contrapeso, patas dianteiras que lembram garras – e aquela bolsa! As coisas parecem que não se encaixam. Mas o que estou fazendo aqui, na verdade, é disfarçando o fato de que me apaixonei pelo bicho”.

“Um exemplo é Bayon, para pegar um dos mais famosos e mais visitados templos do complexo de Angkor. Suas torres de pedra, cada uma com quatro faces de um Buda sorridente olhando para os pontos cardeais, são a coisa mais próxima de um jogo de espelhos – sem usar sequer um reflexo de vidro. Todos os rostos com a mesma serenidade, sem sequer esbarrar na monotonia. Você se fixa em um e imediatamente sua atenção é roubada por outro. É como se alguém estivesse jogando fliperama com seus olhos. São inúmeras possibilidades de você ficar cara a cara com o Buda, e, não importa quanto tempo você fique passeando nessas torres, a sensação é a de que ficou faltando ver alguma parte delas.” (Camboja)

“...Quer dizer, eu já tinha aprendido a me apaixonar por Bangcoc. Assim como em Angkor eu desejava ter mil olhos, esse é o lugar onde eu gostaria de ter mil narizes! Para um país que nem estava no nosso roteiro oficial, peço licença aqui para uma breve declaração de amor a uma cidade.
Não conheço outro lugar onde você pode ter um banquete olfativo que salta do cheiro de fritura para o de jasmim, depois de fumaça, em seguida goiaba, suor, perfume de grife falsificado, peixe, sabão em pó, lichia, fruta podre, sabonete barato, água parada, manga, cachorro molhado, jasmim de novo e mais uns dois ou três aromas que seu nariz tem trabalho pra reconhecer – e tudo no mesmo quarteirão!”

“Tashkent correspondeu ao que eu mais ou menos imaginava de uma cidade soviética pós-URSS. Uma vastidão oca, aquela arquitetura monumental, salpicada com pessoas tristes nas calçadas – que pareciam ainda mais tristes por serem tão bonitas. Entre todos os tipos étnicos que encontramos nessa volta ao mundo, o uzbeque foi um dos mais interessantes, Traços mongóis, olhos claros, cabelos escuros, um porte alto – tudo ajudava a formar rostos que eu não tinha encontrado em nenhum outro lugar. A natureza era ainda mais generosa com os homens, uma vez que as mulheres, maltratadas talvez pelo modo de vida, passavam por um estranho processo de envelhecimento, que as faziam saltar dos quinze para os 55 anos sem transição. E mesmo assim elas irradiavam beleza estranha.”

Para sempre Lilya...
É devastador. Em brevíssimas linhas, é a história de uma adolescente abandonada pela mãe numa pequena cidade do interior da Rússia. A mãe vai para os Estados Unidos com um cara que arrumou numa agência de casamentos, promete que vai voltar para buscar a filha – e não dá mais notícias. Lilya amarga durante semanas (talvez meses) a miséria do local onde vive, até cair no conto de um namorado que quer levá-la para a Suécia – um golpe para que ela se transforme numa espécie de escrava (sexual) em outra cidade do interior, agora sueco. É muito triste. Muito triste. E lá estava eu passeando em Tashkent, me lembrando disso.
Eu adorei o Uzbequistão. Sério... Mas tem alguma coisa, alguma coisa que não sei definir, que está nas pessoas que você encontra na calçada, que está nas janelas que revelam vultos quando você passa, até nas portas do metrô que, num movimento fantasmagórico, abrem e fecham sozinhas com o vento do trem que passa lá embaixo – tem alguma coisa que me fez lembrar esse filme.
O mundo – é duro reconhecer – é feito também de um monte de lugares tristes.”

“Há algum tempo já vinha reparando num fenômeno engraçado que acontecia com relação aos meus registros e lembranças. A velocidade com que as coisas iam se sucedendo acabava comprimindo tudo na memória. Situações vividas há um bom tempo, lá no início, acabavam voltando como novas. Às vezes eu perdia a certeza do país onde determinado fato tinha acontecido (era fácil saber onde ficava o palácio do marajá; mas em que cidade mesmo foi que aquele motorista de táxi se recusou a nos dar troco?). Mesmo agora, a reconstrução da cronologia dos fatos é tarefa difícil. Imagino, novamente, que a rapidez dos eventos – e a falta de tempo para digeri-los – seja a grande responsável por isso. Era uma sensação desconfortável, sim, ainda mais levando-se em conta que teríamos umas boas semanas pela frente. Mas era algo impossível de contornar.”

terça-feira, 5 de outubro de 2010

O guia dos curiosinhos

Duarte, Marcelo. O Guia dos Curiosinhos – Super-heróis. Panda Books; São Paulo / SP; 2006; 80 páginas.

Dados da obra:

O Guia dos Curiosinhos – Super-heróis ensina como criar seu personagem (incluindo um grito de guerra), que disfarce usar e como guardar sua identidade. Além disso, traz informações e curiosidades dos super-heróis que já existem.

Breve relato do autor:

Marcelo Duarte é jornalista e fundador da Panda Books. Atua na ESPN Brasil e escreve todas as semanas a página Curiosidade no Jornal da Tarde.

Passagens:

“Será que os super-heróis usam máscaras só para esconder sua verdadeira identidade? A resposta é não. Elas têm também um outro significado. Nas culturas primitivas, a máscara tinha sentido simbólico e era usada em rituais religiosos. Usar uma máscara significava assumir a natureza de um deus ou espírito. Foi no teatro da Antiguidade que a máscara perdeu seu sentido religioso. A máscara cômica e a máscara trágica formam o símbolo do teatro.”

“O que quer dizer SHAZAM?
É uma palavra composta com as iniciais dos nomes de seis personagens da mitologia grega: S de Salomão (sabedoria), H de Hércules (força), A de Atlas (vigor), Z de Zeus (poder), outro A de Aquiles (coragem) e M de Mercúrio (velocidade). Gritando a palavra, Billy Batson provocava um trovão e se transformava no Capitão Marvel. Ele recebia seus poderes do mago Shazam, que tinha combatido o mal no planeta por 3 mil anos.”

“Ninguém pode saber que você é um super-herói. Que tal arrumar um emprego? E daí que você não tem idade? Note que a profissão de jornalista é a preferida entre os heróis. Clark Kent, o Super-Homem, trabalhava no jornal O Planeta Diário, enquanto Peter Parker, o Homem Aranha, era fotógrafo free-lancer do Clarin Diário. O Besouro Verde era proprietário de A Sentinela Diária, Tintin e Peninha (o Morcego Vermelho) também trabalhavam na imprensa.”

“A turma de Power Rangers usa medalhões para morfar. Cada um invoca a força de um dinossauro: Jason (vermelho; tiranossauro), Zack (preto; mastodonte), Trini (amarelo; tigre-dentes-de-sabre), Billy (azul; tricerátopes), Kimberly (rosa; pterodátilo) e Tommy (verde; dragão). Mais tarde, Jason, Trini e Zack foram substituídos por Rocky, Adam e Aisha. O Ranger Verde trocou de uniforme e ficou branco.”

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A casa de papel

Domínguez, Carlos María. A Casa de Papel. Editora Francis; 2006; 104 páginas.

Dados da obra:

Na primavera de 1998, Bluma Lennon, uma professora de Cambridge, está lendo um livro de poemas de Emily Dickinson quando é atropelada. Após a sua morte, um colega e ex-amante recebe um exemplar de A linha da sombra, de Joseph Conrad, em que Bluma escrevera uma misteriosa dedicatória e que lhe era agora devolvido. Intrigado, ele parte numa busca que o leva a Buenos Aires com o objetivo de procurar pistas sobre a identidade e o destino de um obscuro, mas dedicado bibliófilo e a sua intrigante ligação com Bluma. A casa de papel é uma fábula sedutora sobre o amor desmesurado pelas bibliotecas e pela literatura.

Breve relato do autor:

Carlos María Dominguez nasceu em 1955, em Buenos Aires, na Argentina. Desde 1989 vive em Montevidéu, onde trabalha como jornalista. Publicou dois romances e uma biografia do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti.

Passagens:

“Os livros mudam o destino das pessoas. Uns leram O tigre da Malásia e se transformaram em professores de literatura em remotas universidades. Sidarta levou milhares de jovens ao hinduísmo, Hemingway transformou-os em esportistas, Dumas transformou a vida de milhares de mulheres e não poucas foram salvas do suicídio por manuais de cozinha. Bluma foi sua vítima.
Mas não a única. O velho professor de línguas antigas Leonard Wood ficou hemiplégico ao receber na cabeça cinco tomos da Enciclopédia britânica, que se soltaram de uma prateleira de sua estante; meu amigo Richard quebrou uma perna ao tentar alcançar Absalão, Absalão!, de William Faulkner, mal localizado numa prateleira que o levou a cair da escada. Outro amigo de Buenos Aires pegou tuberculose nos porões de um arquivo público e conheci um cachorro chileno que morreu de indigestão com Os irmãos Karamázov, depois de devorar suas páginas numa tarde de fúria.”

“Todos os anos dou de presente não menos que cinquenta exemplares aos meus alunos, mas não consigo deixar de adicionar uma nova estante, outra fileira dupla; avançam pela casa, silenciosos, inocentes. Não consigo detê-los.
Perguntei-me muitas vezes por que conservo livros que só num futuro remoto poderiam auxiliar-me, títulos afastados dos percursos mais habituais, aqueles que li uma vez e não voltarão a abrir suas páginas em muitos anos. Talvez nunca! Mas como desfazer-me, por exemplo, de O chamado da selva sem apagar um dos tijolos da minha infância, o Zorba, que selou com um choro minha adolescência, A vigésima Quinta hora, e tantos outros há anos relegados às prateleiras mais altas, inteiros, sem dúvida, e mudos, na sagrada fidelidade que nós atribuímos.”

“Frequentemente, é mais difícil desfazer-se de um livro do que obtê-lo. Aderem-se a nós com um pacto de necessidade e esquecimento, tal como se fossem testemunhas de um momento de nossas vidas ao qual não regressaremos. Mas, enquanto permanecerem ali, acreditamos somá-los. Vi que muitos marcam o dia, o mês e o ano da leitura; traçam um discreto calendário. Outros escrevem seu nome na primeira página, antes de emprestá-los, anotam numa agenda o destinatário e acrescentam a data. Vi tomos carimbados, como os das bibliotecas públicas, ou com um delicado cartão do proprietário deslizado para o seu interior. Ninguém quer extraviar um livro. Preferimos perder um anel, um relógio, o guarda-chuva do que o livro cujas páginas já não leremos mas que conservam, na sonoridade de seu título, uma antiga e talvez perdida emoção.”

“– Para dizer a verdade, já não conto mais. Mas presumo que em torno de dezoito mil. Desde que me lembro, comecei a comprar um livro ou outro. A biblioteca que se forma é uma vida. Nunca, digamos, uma soma de livros soltos.
– Explique melhor essa ideia – pedi-lhe.
– O senhor os acumula nas prateleiras e parece uma soma, mas, se me permite, trata-se de uma ilusão. Seguimos certos assuntos e, ao fim de um tempo, acabamos por definir mundos; por desenhar, se prefere, o percurso de uma viagem, com a vantagem de que conservamos suas marcas...”

“Já fazia dois meses, haviam me dito, que Carlos se dava o gosto de ler os franceses do século XIX à luz de velas, para o que utilizava um candelabro de prata. Tempos atrás, havíamos conversado sobre isso, porque também eu desfruto ler Goethe enquanto uma ópera de Wagner toca no aparelho de som ou, digamos, acompanhar Baudelaire com Debussy. É parte da viagem e posso lhe assegurar que o gozo é superior, em todos os sentidos...”

“E novamente me suplicou que lhe prometesse não deixá-lo em terra. Tive firmeza suficiente para não lhe prometer nada, embora mais tarde tenha me parecido criminosa essa firmeza, pois já havia tomada uma resolução, havia dito o capitão diante do marinheiro que delirava na liteira do camarote, presa de um pânico contagioso. Parecia-me ouvir nessas suas palavras o apelo tácito que, de um modo ou de outro, o livro me havia feito desde o início.”

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

A água e a galinha

Boff, Leonardo. A água e a galinha. Editora Vozes; São Paulo / SP; 2003; 208 páginas.

Dados da obra:

O livro apresenta uma metáfora da condição humana através da história de uma águia que, tendo sido capturada por um camponês, era criada junto às galinhas. Com o passar dos anos ela vai se acostumando a essa condição e passa a acreditar que era uma galinha de verdade, até o dia que aparece um naturalista e a faz enxergar quem ela realmente era.

Breve relato do autor:

Leonardo Boff, pseudônimo de Genézio Darci Boff é um teólogo brasileiro, escritor e professor universitário, expoente da Teologia da Libertação no Brasil. Foi membro da Ordem dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos.

Passagens:

“Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam. Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão de mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura.”

“A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências têm, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação. Sendo assim, fica evidente que cada leitor é coautor. Porque cada um lê e relê com os olhos que têm. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita.”

“Dentre todos os animais não havia nenhum que pudesse ser para Adão um interlocutor adequado. Então Deus criou Eva a partir do lado de Adão. Comumente se fala de forma errônea que Deus criou Eva da costela de Adão. Em hebraico se usa a palavra zela que significa propriamente lado e não costela. É uma metáfora para significar que Eva foi tirada não da cabeça de Adão, para ser sua senhora. Nem dos pés, para ser sua escrava. Mas do seu lado, do lado do coração, para ser sua companheira. Ela sim é e poderá ser a interlocutora de Adão, conforme ele mesmo exclama ao vê-la diante de si: ‘eis o osso dos meus ossos, a carne da minha carne...’ por isso o homem-varão deixará o pai e a mãe e se unirá à sua mulher; serão uma só carne (Gênesis, 2, 23-24).”

“– ... Os olhos são tudo para uma águia. Seu olhar penetrante vê oito vezes mais que o olho humano. A retina é em parte monocular, orientada para coisas de perto, e em parte binocular, dirigida para as coisas de longe. Vê e controla tudo porque consegue girar a cabeça em 180º. Discerne o focinho de um coelho que espia da toca ou uma gazela no meio dos arbustos a mais de 1.600 metros de distância. Então arremete como uma flecha.”

“Ai de nós, se nos contentarmos em ser somente galinhas, se permitirmos que nos reduzam a simples galinhas: encerrados em nosso pequeno mundo, de interesses feitos e de parcos desejos, com um horizonte que não vai além de cerca mais próxima. Não disse o poeta Fernando Pessoa: ‘eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho de minha altura’.”

“O que efetivamente conta não são as coisas que nos acontecem. Mas, sobretudo, a nossa reação frente a elas. Nessa reação irrompe a força irradiadora dos arquétipos...”

“No processo de resgate e de realização de sua identidade, a águia viveu todas as estações desta jornada. Realizou plenamente o arquétipo herói/heroína: do aguente, do caminhante, do lutador, do mártir, do sábio e do mago. No termo do caminho encontrou o céu, o lar e a pátria da identidade.”

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O monge e o executivo

Hunter, James C. O Monge e o Executivo - Uma história sobre a essência da liderança, Editora Sextante; Rio de Janeiro / RJ; 2004; 144 páginas.

Dados da obra:

Leonard Hoffman, um famoso empresário que abandonou sua brilhante carreira para se tornar monge em um mosteiro beneditino, é o personagem central desta envolvente história criada por James C. Hunter para ensinar de forma clara e agradável os princípios fundamentais dos verdadeiros líderes.

Breve relato do autor:

James C. Hunter é consultor-chefe norte-americano da empresa J.D. Hunter Associates, LLC, uma empresa estadunidense de consultoria de relações de trabalho e treinamento, instrutor e palestrante na área de liderança funcional e organização de grupos comunitários.

Passagens:

“Era Len Hoffman, mais velho do que na foto da Internet, com o rosto enrugado, maçãs do rosto salientes, queixo e nariz proeminentes e cabelos brancos um pouco compridos. Um corpo firme e enxuto, a face ligeiramente rosada. Mas o que mais me impressionou foram seus olhos. Claros, penetrantes, de um azul profundo. Eram os olhos mais acolhedores e cheios de compaixão que eu já vira. O rosto enrugado e os cabelos brancos eram de um velho, mas os olhos e o espírito cintilavam e emanavam uma energia que eu só experimentara quando criança.”

“– Quando você interrompe as pessoas no meio de uma frase, John, você envia algumas mensagens negativas. Número um, se você me interrompeu, é porque não estava prestando muita atenção ao que eu dizia, já que sua cabeça estava ocupada com a resposta. Número dois, se você se recusa a me ouvir, não está valorizando a minha opinião. Finalmente, você deve acreditar que o que tem a dizer é muito mais importante do que o que eu tenho a dizer. John, essas mensagens são desrespeitosas, e como líder você não pode enviá-las.”

“...Simeão continuou. – Por isso, é importante que desafiemos continuamente os paradigmas a respeito de nós mesmos, do mundo em torno de nós, de nossas organizações e das outras pessoas. Lembrem-se de que o mundo exterior entra em nossa consciência através dos filtros de nossos paradigmas. E nossos paradigmas nem sempre são corretos.
Eu acrescentei: – Li em algum lugar que não vemos o mundo como ele é, mas como nós somos. O mundo parece muito diferente dependendo de nossa perspectiva. Ele parece diferente se sou rico ou pobre, doente ou saudável, jovem ou velho, negro ou branco...”

“Bem, não conheço ninguém, vivo ou morto, que possa chegar perto de Jesus Cristo na personificação dessa descrição. Vamos olhar os fatos. Hoje, mais de dois bilhões de pessoas, um terço dos seres humanos deste planeta, se dizem cristãos. A segunda maior religião do mundo, o islamismo, é menos da metade menor do que o cristianismo. Dois dos maiores dias santos deste país, Natal e Páscoa, são baseados em eventos da vida de Jesus, e nosso calendário até conta os anos a partir do nascimento dele, há dois mil anos. Não me importa se você é budista, hinduísta, ateu ou da ‘igreja da moda’, ninguém pode negar que Jesus Cristo influenciou bilhões, hoje e ao longo da História. Ninguém está próximo do segundo lugar.”

“...Se bem me lembro, uma dessas palavras era eros, da qual se deriva a palavra erótico, e significa sentimentos baseados em atração sexual e desejo ardente. Outra palavra grega para amor, storgé, é afeição, especialmente com a família e entre os seus membros. Nem eros nem storgé aparecem nas escrituras do Novo Testamento. Outra palavra grega para amor era philos, ou fraternidade, amor recíproco. Uma espécie de amor condicional, do tipo ‘você me faz o bem e eu faço o bem a você’. Finalmente, os gregos usavam o substantivo agapé e o verbo correspondente agapaó para descrever um amor incondicional, baseado no comportamento com os outros, sem exigir nada em troca. É o amor da escolha deliberada. Quando Jesus fala de amor no Novo Testamento, usa a palavra agapé, um amor traduzido pelo comportamento e pela escolha, não o sentimento do amor.”

“– Precisamos uns dos outros – a enfermeira disse tranquilamente. – Os arrogantes e orgulhosos fingem que não precisam. O individualismo que predomina em nosso país é mentiroso e cria a ilusão de que não somos e não devemos ser dependentes de outras pessoas. Que piada! Um par de mãos me tirou do útero de minha mãe ao nascer, outro trocou minhas fraldas, me alimentou, me nutriu, outra ainda me ensinou a ler e escrever. Agora, outros pares de mãos cultivam minha comida, entregam minha correspondência, coletam meu lixo, fornecem-me eletricidade, protegem minha cidade, defendem minha nação. Um par de mãos cuidará de mim e me confortará quando eu ficar doente e velha, e, por fim, outro par de mãos me levará de volta a terra quando eu morrer.”

“– Eu defino motivação como qualquer comunicação que influencie as escolhas. Como líderes, podemos fornecer todas as condições, mas são as pessoas que devem fazer as próprias escolhas para mudar. Lembrem-se do princípio do jardim. Não fazemos o crescimento ocorrer. O melhor que podemos fazer é fornecer o ambiente certo e provocar um questionamento que leve as pessoas a se analisarem para poderem fazer suas escolhas, mudar e crescer.”

“– Mas – o pregador alegou – se admitimos que o conceito de causa e efeito é verdadeiro, chegamos ao paradoxo da criação do mundo, não é mesmo? Isto é, se levarmos o universo de volta ao primeiro segundo do tempo, a fração de segundo que precedeu a grande explosão, qual seria a causa? O que criou o primeiro átomo de hélio, hidrogênio ou o que seja? O paradoxo é que em algum lugar ao longo do caminho algo deve ter vindo do nada. Nós religiosos acreditamos que Deus é a primeira causa

“– Eu falo de alegria, Greg, não de felicidade, porque felicidade é baseada em acontecimentos. Se coisas boas acontecem, estou feliz. Se acontecem coisas más, estou infeliz. A alegria é um sentimento muito mais profundo, que não depende de circunstâncias externas. A maioria dos grandes líderes que se apoiaram na autoridade tem falado dessa alegria – Buda, Jesus Cristo, Gandhi, Martin Luther King, até Madre Teresa. Alegria é satisfação interior e a convicção de saber que você está verdadeiramente em sintonia com os princípios profundos e permanentes da vida. Servir aos outros nos livra das algemas do ego e da concentração em nós mesmos que destroem a alegria de viver.”

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A invenção de Morel

Bioy Casares, Adolfo. A Invenção de Morel. Editora Rocco; São Paulo / SP; 1986; 136 páginas.

Dados da obra:

Na trama, o leitor acompanha a trajetória de um homem que, condenado por motivos políticos, foge para uma ilha deserta do Pacífico conhecida por ser foco de uma epidemia letal. Lá encontra máquinas misteriosas e um grupo de turistas, que se diverte sem tomar conhecimento de sua presença. O refugiado apaixona-se por uma das mulheres do grupo e então descobre Morel, inventor de uma máquina de imagens que reproduz realidades passadas.

Breve relato do autor:

Foi um escritor argentino. Sua obra mais conhecida é La invención de Morel. A narrativa de Adolfo Bioy Casares criou um mundo de ambientes fantásticos regidos por uma lógica peculiar e marcados por um realismo de grande verossimilhança.

Passagens:

“Agora, a mulher do lenço me é imprescindível. Talvez todo esse escrúpulo de não esperar seja um pouco ridículo. Nada esperar da vida, para não arriscá-la; fazer-se de morto, para não morrer. De repente, isto me pareceu um letargo horrível, inquietíssimo; quero que termine. Depois da fuga, depois de ter vivido sem ligar para o cansaço que me destruía, alcancei a calma; minhas decisões talvez me devolvam a esse passado ou aos juízes; prefiro-os a este longo purgatório.”

“... Que devo pensar? Sem dúvida é uma mulher detestável. Mas, que será que ela quer? Talvez brinque comigo e com o barbudo; mas também é possível que o barbudo não seja mais do que uma ênfase no seu prescindir de mim, e um sinal de que esse prescindir atingiu o seu ponto máximo e chega ao fim.”

“Havia muito que pensava nisto, de modo que já estava um pouco farto e continuei com menos lógica: não morrera enquanto não tinham aparecido os intrusos; na solidão, é impossível estar morto. Para ressuscitar, devo suprimir as testemunhas. Será um extermínio fácil. Não existo: não suspeitarão de sua destruição.”

“Tive uma surpresa: depois de muito trabalho, ao congregar harmonicamente esses dados, encontrei-me com pessoas reconstituídas, que desapareciam se eu desligava o aparelho projetor, só viviam os momentos passados quando da tomada de cena e, ao terminá-los, voltavam a repeti-los, como se fossem partes de um disco ou filme que, ao terminar, voltasse a começar, mas que não se podiam distinguir das pessoas vivas (veem-se como que circulando em outro mundo, fortuitamente abordado pelo nosso). Se conferirmos consciência, e tudo o que nos distingue dos objetos, às pessoas que nos rodeiam, não poderemos negá-la às criadas pelos meus aparelhos, com nenhum argumento válido e exclusivo.”

“Congregados os sentidos, surge a alma. Era preciso esperá-la. Madeleine existia para a vista, Madeleine exista para o ouvido, Madeleine existia para o paladar, Madeleine existia para o olfato, Madeleine existia para o tato: Madeleine existia.”

“Por acaso, recordei que o fundamento do horror, que alguns povos sentem, de que se verem representados em imagens, é a crença de que, ao se formar a imagem de uma pessoa, a alma passa para a imagem e a pessoa morre.”

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Joe Gould

Mitchell, Joseph. O Segredo de Joe Gould. Companhia das Letras; São Paulo /SP; 2003; 160 páginas.

Dados da obra:

A reportagem 'O segredo de Joe Gould', de 1964, conta a história de um homem que vivia como um mendigo – perambulando pelo Greenwich Village bairro boêmio de Nova York – e planejava publicar um livro monumental: 'História oral do nosso tempo'. É um exemplo de Jornalismo Literário.

Breve relato do autor:

Colaborador da revista 'The New Yorker', Mitchell foi um dos maiores jornalistas norte-americanos do século XX. Ficou conhecido por seus retratos cuidadosamente escritos de excêntricos e pessoas à margem da sociedade.

Passagens:

“Gould sofre de memória perfeita e de vez em quando resolve anotar em minúcias tudo que fez de relativa importância num determinado período do passado recente, que pode ser um dia, uma semana ou um mês. Às vezes escreve um capítulo em que monotonamente amaldiçoa alguém ou uma instituição. Volta e meia divaga sobre temas como a pulga de albergue, o espaguete, o zíper como sinal da decadência da civilização, a dentadura postiça, a insanidade, o sistema de júri, o remorso, a comida de lanchonete e o efeito castrador da máquina de escrever sobre a literatura. ‘William Shakespeare não ficava martelando um maldito troço nojento de 95 dólares, e Joe Gould também não fica’, escreveu.”

“Até hoje não li mais nada de Joe Gould, escreveu (Saroyan) entre outras coisas. No entanto, ele continua sendo para mim um dos poucos autores americanos autênticos e originais. Ele era fácil e despojado, e quase tudo o que se escrevia no país era difícil e empolado. Nada tinha a ver com nada; tudo era burilado demais; tudo era miserável; tudo era meio doentio; tudo era literário; e não se conseguia dizer nada com simplicidade. Toda a literatura americana tentava se encaixar numa forma ou noutra, e nenhum escritor, exceto Joe Gould, demonstrava imaginação suficiente para compreender que, quando o ruim chegou ao pior, não havia mais necessidade de forma nenhuma. Não era preciso colocar o que se tinha a dizer num poema, num ensaio, num conto, numa novela. Bastava dizer.”

“Certa manhã do verão de 1917, depois de trabalhar como repórter por um ano, estava tomando sol (e tentando superar uma ressaca) nos fundos da chefatura de polícia, quando lhe ocorreu a ideia da História Oral. Imediatamente abandonou o emprego e começou a escrever. Num momento de exaltação declarou: ‘Desde essa manhã fatídica, a História Oral tem sido minha corda e minha forca, minha cama e minha comida, minha esposa e minha puta, minha ferida e o sal em cima dela, meu uísque e minha aspirina, minha rocha e minha salvação. É a única coisa que tem algum valor para mim. O resto é lixo’.”

“... até chegar a Nova York sempre se sentiu deslocado. ‘Em minha cidade natal, nunca me senti à vontade’, escreveu certa vez. ‘Eu destoava. Nem em minha própria casa eu me sentia em casa. Em Nova York, principalmente no Greenwich Village, entre os maníacos, os desajustados, os que têm só um pulmão, os que já foram alguma coisa na vida, os que poderiam ter sido, os que gostariam de ser, os que nunca serão e os que só Deus sabe, sempre me senti à vontade’.”

”Fomos para a mesa e a garçonete trouxe o café de Gould. Servido nunca caneca branca e grossa, estilo taberna, o café estava tão quente que fumegava. Mesmo assim, Gould inclinou a caneca ligeiramente em sua direção, sem levantá-la da mesa, debruçou-se e se pôs a tomar o café em pequenos goles cautelosos e rápidos, como um passarinho, entremeando-os de gemidos que indicavam prazer ou alívio, e quase de imediato seu rosto recuperou a cor, seus olhos se tornaram mais brilhantes e o movimento involuntário da boca desapareceu. Eu nunca tinha visto um café provocar em alguém uma reação tão instantânea e visível; provavelmente um conhaque não teria feito mais por ele, nem um dose de cocaína, nem uma tenda de oxigênio, nem uma transfusão de sangue. Gould tomou a caneca inteira dessa forma e depois se aprumou, pendeu a cabeça para um lado e olhou para mim.”

“...No trem, a caminho de Nova York, senti tanta saudade de Norwood que precisei me controlar para não descer e voltar atrás. Mesmo hoje ainda sofro, às vezes, com saudade de Norwood. Um cheiro azedo, como o de um porão onde um velho italiano esteja fabricando vinho, lá no setor italiano do Village, me lembra os curtumes e desperta a saudade. Essa é uma das piores coisas que descobri sobre as emoções humanas e como elas podem ser muito traiçoeiras – o fato de que é possível odiar um lugar de todo o coração e com toda a alma e ainda sentir saudade. Sem falar que é possível odiar uma pessoa de todo o coração e com toda a alma e ainda suspirar por ela.”

“...Eu considero o mais são dos homens aquele que melhor compreende o trágico isolamento da humanidade e prossegue calmamente na busca de seus propósitos essenciais”, escreveu. “Acho que penso dessa forma porque sofro de delírio de grandeza. Acho que sou Joe Gould.”

“... “O pessoal do Minetta me trata bem agora, mas pode se cansar de mim a qualquer momento e me enxotar, e, se fizer isso, eu não vou gostar de ir lá perguntar se chegou carta para mim.” E então disse uma coisa que me deixou sem palavras: ‘Escute aqui, foi você que começou tudo isto. Eu não procurei você. Você é que me procurou. Você queria escrever um artigo sobre mim e escreveu e agora tem de arcar com as consequências’.”

“Eu estava furioso. Assim que Pearce saiu, voltei-me para Gould. ‘Você me disse que levou braçadas da História Oral a catorze editoras’, falei. ‘Por que diabos teve todo esse trabalho se havia decidido no fundo de você mesmo que a História Oral seria uma obra póstuma? Estou começando a crer que a História Oral não existe’. Essa frase saiu de meu inconsciente, e eu não tinha muita noção do que estava dizendo – só estava desabafando minha raiva –, mas no momento seguinte, ao olhar para Gould, tive certeza de que havia descoberto a verdade sobre a História Oral.
‘Meu Deus!’, exclamei. ‘Ela não existe’. Eu estava estarrecido. ‘A História Oral não existe. Não existe’
Encarei Gould, e ele me encarou. Seu rosto não tinha expressão nenhuma.”

“Voltei para minha sala, sentei-me e apoiei os cotovelos na escrivaninha e a cabeça nas mãos. Sempre tive horror de ver alguém desmascarado, flagrado numa mentira ou pego com a boca na botija, e agora, com tempo para refletir, senti vergonha de mim mesmo por ter perdido a calma e me enfurecido com Gould. A raiva começou a se dissipar, e eu fui ficando deprimido. Gould me enganara – não havia muita dúvida em relação a isso –, assim como enganara inúmeras pessoas ao longo dos anos. Havia me engabelado, assim como havia engabelado inúmeras pessoas. No entanto não precisei refletir muito sobre o assunto para chegar à conclusão de que ele não andara discorrendo sobre a História Oral todos aqueles anos e fazendo grandes declarações sobre sua extensão, seu volume, sua importância para a posteridade e comparando-a com obras como A história do declínio e queda do Império Romano só para enganar gente como eu, mas também para enganar a si próprio. Com certeza descobrira, muito tempo atrás, que não tinha o gênio, o talento ou, talvez, a segurança, o empenho, a determinação para produzir uma obra tão imensa e grandiosa como imaginara e se contentara com escrever os tais capítulos de ensaios. Escrever e reescrever. E, ou por ser preguiçoso demais, ou por ser perfeccionista demais, nem esses capítulos conseguira terminar. Contudo, em boa parte do tempo provavelmente acreditava, de modo nebuloso, iludindo-se e protegendo a si mesmo, que a História Oral de fato existia – os capítulos orais e os capítulos de ensaios. A parte oral podia não estar no papel, mas ele a tinha inteira na cabeça e um dia qualquer começaria a escrevê-la.”

“Passei mais de um ano pensando nesse romance. Sempre que tinha uma folga, punha-me a escrevê-lo mentalmente. Ás vezes, numa viagem de metrô, escrevia três ou quatro capítulos. Quase todo dia descartava e criava personagens. Mas a verdade é que nunca escrevi de fato uma só palavra. O tempo passou, outros assuntos me ocuparam. E, mesmo assim, durante alguns anos eu frequentemente devaneava, e nesses devaneios terminava de escrever meu romance e o via publicado. Via o frontispício. Via a capa – verde com letras douradas. Essas lembranças me causaram um constrangimento quase insuportável, e passei a me sentir cada vez mais solidário com Gould.”

“Desde sua criação, em 1925, a New Yorker cultivava manias que desafiavam todo bom senso editorial. Por exemplo: tanto na gestão de Haroldo Ross, seu fundador e editor até 1951, como na de William Shawn, à frente da publicação de 1951 a 1987, a New Yorker manteve o princípio de jamais pautar seus escritores. Num livro-homenagem a Shawn, Remembering mr. Shawn´s “New Yorker”, o escritor Ved Mehta cita o próprio Shawn a esse respeito: `Somos uma revista de escritores e de artistas gráficos, e é fundamental que nossos colaboradores possam escrever e desenhar o que bem entenderem. Um dos problemas com a encomenda de matérias é que elas transformam colaboradores em empregados.”

“...Como escreveu o poeta e ensaísta Joseph Brodsky, outro colaborador da revista, entre os anjos não existe hierarquia. A partir de certo grau de excelência é bobagem comparar escritores para determinar quem é superior a quem. O melhor elogio que se pode fazer a Mitchell é dizer que até hoje ele representa o paradigma da grande tradição do jornalismo literário americano. É o exemplo a ser seguido. Mitchell é o escritor dos escritores. Quem entende do riscado gostaria de ser igual.”

“... A revista de Haroldo Ross e William Shawn criara as condições institucionais para o tipo de jornalismo praticado por ele. Só ela combinava quatro predicados essenciais: tempo (para apurar e escrever), espaço (quando a matéria era grande demais, o editor simplesmente dividia o artigo em duas ou mais partes), apoio financeiro e liberdade editorial. Mitchell podia levar dois anos escrevendo a matéria que bem quisesse. O salário pingava todo mês.”