terça-feira, 31 de agosto de 2010

O Estrangeiro

Camus, Albert. O Estrangeiro, Ed. Círculo do Livro S.A.; 1982, São Paulo/SP; 124 páginas.

Dados da obra:

O romance conta a história de um narrador personagem, Meursault, um homem que comete um assassinato e é julgado por esse ato. A ação desenrola-se na Argélia, na época em que ainda era colônia francesa, país onde Camus viveu grande parte da sua vida. O romance foi traduzido em 40 línguas e uma adaptação cinematográfica foi realizada por Luchino Visconti em 1967.

Breve relato do autor:

Albert Camus foi um escritor e filósofo francês nascido na Argélia. Na sua terra natal viveu sob o signo da guerra, fome e miséria, elementos que, aliados ao sol, formam alguns dos pilares que orientaram o desenvolvimento do pensamento do escritor.

Passagens:

"... Fechei as janelas e, ao voltar, vi no espelho um canto da mesa com a lamparina de álcool entre pedaços de pão. Pensei que passara mais um domingo, que mamãe agora já estava enterrada, que ia retomar o trabalho, e que afinal, nada mudara."

"... De tanto conviverem juntos, os dois num pequeno quarto, o velho Salamano acabou ficando parecido com o cão. Tem crostas avermelhadas no rosto e o cabelo amarelo e ralo. Quanto ao cão, assimilou do dono uma espécie de aspecto encurvado, o focinho para a frente e o pescoço esticado. Parecem ser da mesma raça e, no entanto, detestam-se..."

"... Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruía o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então, atirei quatro vezes ainda no corpo já inerte, em que as balas se enterravam sem que se desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça."

"Evidentemente, não se pode ser sempre racional. Em outras ocasiões, por exemplo, eu fazia projetos de lei. Reformava as penalidades. Observara que o essencial era dar ao condenado uma oportunidade. Uma só oportunidade em mil – isso bastaria para resolver muita coisa. Parecia-me, assim, que se podia encontrar uma composição química, cuja absorção mataria o paciente (eu pensava: o paciente) em noventa por cento dos casos. Este estaria a par de tal possibilidade, era esta a condição. Sim, porque, pensando bem, ao ponderar sobre as coisas com calma, eu constatava que o defeito da guilhotina era não haver nenhuma oportunidade, absolutamente nenhuma. A morte do paciente, em suma, fora decidida de uma vez por todas. Era um caso encerrado, um acerto preestabelecido, um acordo selado e em relação ao qual não se podia voltar atrás..."

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Juca Mulato - Parte 2

A Mandinga


Juca Mulato apeia.

É macabro o pardieiro

Junto à porta cochila o negro feiticeiro.
A pele molambenta o esqueleto disfarça.
Há uma faísca má nessa pupila garça,
quieta, dormente, como as águas estagnadas.

Fuma: a fumaça o envolve em curvas baforadas.
Cuspinha, coça a perna onde a sarna esfarinha
a pele, pachorrento inda uma vez cuspinha.
Com o seu sinistro olhar o feiticeiro mede-o.

– Olha, Roque, você me vai dar um remédio.
Eu quero me curar do mal que me atormenta.

– Tenho ramos de arruda, urtigas, água benta,
uma infusão que cura a espinhela e a maleita,
figa para evitar tudo que é coisa feita...
com uma agulha e um cabelo, enroscado a capricho,
à mulher sem amor faço criar rabicho.

Olho um rastro, depois de rezar um bocado
vou direitinho atrás do cavalo roubado.
Com umas ervas que sei, eu faço, de repente,
do caiçara mais mole um caboclo valente!
Dize, Juca Mulato, o mal que te tortura.

– Roque eu mesmo não sei se este mal tem cura...

– Sei rezas com que venço a qualquer mau olhado;
breves para deixar todo o corpo fechado.
Não há faca que o vare e nem ponta de espinho;
fica o corpo tal qual o corpo do Dioguinho...
Mas de onde vem o mal que tanto te abateu?

– Ele vem de um olhar que nunca será meu...
Como está para o sol a luz morta da estrela,
a luz do próprio sol está para o olhar dela...
Parece o seu fulgor, quando o fito direito,
uma faca que alguém enterra no meu peito,
veneno que se bebe em rútilos cristais,
e sabendo que mata, eu quero beber mais...

– Eu já compreendo o mal que teu peito povoa.
De quem é esse olhar?

– Da filha da patroa.

– Juca Mulato! Esquece o olhar inatingível!
Não há cura, ai de ti! para o amor impossível
Arranco a lepra ao corpo; estirpo da alma o tédio;
só para o mal de amor nunca encontrei remédio...
Como queres possuir o límpído olhar dela?
Tu és tal qual um sapo a querer uma estrela...
A peçonha da cobra eu curo...
Quem souber cure o veneno que há no olhar de uma mulher!
Vencendo o teu amor, tu vences teu tormento.
Isso conseguirás só pelo esquecimento.
Esquecer um amor dói tanto que parece
que a gente vai matando um filho que estremece
ouvindo, com terror, no peito, este estribilho:
"Tu não sabes, cruel, que matas o teu filho?"
E quando se estrangula, aos seus gemidos loucos,
a gente quer que viva e vai matando aos poucos!
Foge! Arrasta contigo essa tortura imensa,
que o remédio é pior do que a própria doença,
pois, para se curar um amor tal qual esse...

– Que me resta fazer?


– Juca Mulato: esquece!

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Juca Mulato

Picchia, Menotti Del. Juca Mulato. Ed. de Ouro; 40ª edição; 95 páginas.

Dados da obra:

Juca Mulato é o caboclo simples que se apaixona pela filha do fazendeiro, num amor impossível pelo desnível social. Menotti se traduz numa linguagem colorida e sensual, buscando exaltar o mestiço brasileiro, por meio da poesia contida na obra.

Breve relato do autor:

Paulo Menotti Del Pcchia nasceu em São Paulo em 1892. Foi poeta, jornalista, tabelião, advogado, político, romancista, cronista, pintor e ensaísta brasileiro. Teve destacada atuação no movimento modernista.

Passagens:

Fascinação IV

"Tenho uma santa em casa, o seu

olhar encanta.

O olhar dela é, porém, igualzinho

ao da santa.

Quando rezo nem sei à dúbia luz

da vela

se me dirijo à santa ou se me

dirijo à ela

Esse olhar que, de meigo, é como

o olhar da corça,

tem, na própria fraqueza, a sua

própria força.

Quando o fito a minha alma enche-se

da incerteza,

que há na canoa sem dono à flor

da correnteza

Ele é tal qual o sol que indiferente

e mudo

sem saber quem aclara

anda aclarando tudo...

Mas no olhar que o fitou brilha,

constantemente

um relfexo de luz ambicionada e ausente

Eu nunca vi o mar, mas vendo

esse olhar penso

num barco que se afasta, onde

se agita um lenço...

Ou no doido terror que, em

meio de procelas,

há num casco sem leme ou

num barco sem velas...

Creio ver o meu vulto em

teus olhos tão vagos

como as sombras que espelha a

água morna de um lago

Eu bem sei que, tal qual na

líquida planície,

o meu vulto não vai além da superfície.

Fica à tona, a boiar nessa

pupila absorta

com na água parada alguma

folha morta..."



"... Por isso o que vale ir fugitivo e

a esmo

buscar a mesma dor que trazes

em ti mesmo?

Tu queres esquecer? Não fujas ao

tormento...

Só por meio da dor se alcança o

esquecimento.

Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,

que na terra natal, a própria dor

dói menos...

E fica, que é melhor morrer

(ai, bem sei eu!)

no pedaço de chão em que

a gente nasceu"

(trecho de "A voz das coisas")

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Olhai os Lírios do Campo

Verissímo, Érico. Olhai os Lírios do Campo. Editora Globo; 1980 - Porto Alegre/RS; 290 páginas.

Dados da obra:

O livro narra a história de Eugênio Fontes, um homem que com sacrifício formou-se em Medicina. Na faculdade ele conhece e se apaixona por Olívia, com quem teve uma filha, mas, ambicioso, acaba se casando com uma mulher rica, Eunice.

Nesse romance, o autor compõe um painel de tipos humanos onde o conflito segurança x felicidade está sempre em evidência.


Breve relato do autor:

Érico Veríssimo nasceu na cidade de Cruz Alta, Rio Grande do Sul. Com quase 20 livros publicados – alguns traduzidos para o francês, inglês, alemão, italiano, espanhol e norueguês, apresenta-se antes de mais nada como um "contador de histórias".

Passagens:

"Nossa filha fez dois anos ontem. Já fala, faz perguntas e já sabe ficar parada, de cabecinha torta, pensando ninguém sabe em quê. Tenho de lhe explicar que ela também tem um pai, como as outras meninas. Anamaria indaga coisas sobre esse pai que nunca viu mas que já principia a amar. Para ela pois tu existes à maneira de Deus: tua filha não te vê mas sabe que 'és', sente em mim e de certo modo nela própria a tua existência. Por que será que ainda há homens que não acreditam em Deus? O simples milagre de existir é uma afirmação de Deus".
(carta de Olívia)

"–... A Olivia tinha razão... Felicidade é a certeza de que nossa vida não está se passando inutilmente... Como agora eu vejo claro! É preciso o contraste... Como é que eu podia aproveitar bem uma hora de conversas e brinquedo com a Anamaria se antes não tivesse passado muitas horas aqui curando as mazelas dos outros e pensando nas minhas próprias mazelas?"
(fala de Eugênio)

"– É curioso como eu penso agora nessas coisas. Antigamente só pensava em mim mesmo. vivia como cego. Foi Olívia quem me fez enxergar claro. Ela me fez ver que a felicidade não é o sucesso, o conforto. Uma simples frase me deixou pensando: 'Considerai os lírios do campo. Eles não fiam nem tecem e no entanto nem Salomão em toda sua glória se cobriu como um deles'."
(fala de Eugênio)

"Se naquele instante – refletiu Eugênio – caísse na terra um habitante de Marte, havia de ficar embasbacado ao verificar que num dia tão maravilhosamente belo e macio, de sol tão dourado, os homens em sua maioria estavam metidos em escritórios, oficinas e fábricas... E se perguntasse a qualquer um deles: 'Homem, por que trabalhas com tanta fúria durante as horas do sol?' – ouviria esta resposta singular: 'Para ganhar a vida'. E no entanto a vida ali estava a se oferecer toda, numa gratuidade milagrosa. Os homens viviam tão ofuscados por desejos ambiciosos que nem sequer davam por ela. Nem com todas as conquistas da inteligência tinham descoberto um meio de trabalhar menos e viver mais. Agitavam-se na terra e não se conheciam uns aos outros, não se amavam como deviam. A competição os transformavam em inimigos. E havia muitos séculos tinham crucificado um profeta que se esforçava por lhes mostrar que eles eram irmãos, apenas e sempre irmãos."

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Ex-libris

"Até hoje, influenciada pelas lombadas forradas de tecido que me cercavam trinta anos atrás, estou certa de que Sófocles é terracota, Proust é cinza, Conrad é canela, Wilde é verde-limão, Poe é azul da Prússia, Auden é índigo e Roald Dahl é malva".

"Minha filha está com sete anos, e alguns outros pais de alunos da segunda série se queixam de que seus filhos não leem por prazer. Quando visito suas casas, o quarto das crianças se encontra atulhado de livros caros, mas o dos pais está vazio. Essas crianças não veem os pais lendo, como acontecia comigo a cada dia da minha infância. Já quando entro num apartamento com livros nas estantes, nas mesas de cabeceira, no chão e na pia do banheiro, aí eu sei o que veria se abrisse a porta onde se lê PRIVATIVO - ADULTOS AFASTEM-SE: uma criança jogada na cama lendo".

"Quando se lê em silência, só o escritor tem um desempenho. ao se ler em voz alta, o desempenho é uma colaboração. Um dos parceiros fornece as palavras e o outro, o ritmo.
(...)
Heine lia Don Quixote para as árvores e flores no Palace Garden de Dusseldorf. Lamb acreditava que era um crime ler Shakespeare e Milton em silêncio, mesmo que não tivesse ninguém para ouvir."

"– Passei a sentir que um livro sem lar é uma coisa sem sentido, disse Alan, e, numa livraria, é tudo o que se tem.
Ele continua falando a respeito dos livros de John Clive, o historiador, depois de sua morte:
– Levamos os livros para a loja e o dividimos por assuntos – história na parede da esquerda, literatura na da direita, filosofia na sala de trás – e de alguma forma, de repente, eles não eram mais de John Clive. Desmembrar sua biblioteca foi como cremar um corpo e espalhar as cinzas ao vento. Senti muita tristeza. E percebi que os livros adquirem seu valor a partir da maneira como coexistem com os outros que a pessoa tem, e que, quando perdem seu contexto, perdem o significado."


(Ex-libris - Confissões de uma leitora comum, de Anne Fadiman - Jorge Zahar Editora - 2002)