quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O monge e o executivo

Hunter, James C. O Monge e o Executivo - Uma história sobre a essência da liderança, Editora Sextante; Rio de Janeiro / RJ; 2004; 144 páginas.

Dados da obra:

Leonard Hoffman, um famoso empresário que abandonou sua brilhante carreira para se tornar monge em um mosteiro beneditino, é o personagem central desta envolvente história criada por James C. Hunter para ensinar de forma clara e agradável os princípios fundamentais dos verdadeiros líderes.

Breve relato do autor:

James C. Hunter é consultor-chefe norte-americano da empresa J.D. Hunter Associates, LLC, uma empresa estadunidense de consultoria de relações de trabalho e treinamento, instrutor e palestrante na área de liderança funcional e organização de grupos comunitários.

Passagens:

“Era Len Hoffman, mais velho do que na foto da Internet, com o rosto enrugado, maçãs do rosto salientes, queixo e nariz proeminentes e cabelos brancos um pouco compridos. Um corpo firme e enxuto, a face ligeiramente rosada. Mas o que mais me impressionou foram seus olhos. Claros, penetrantes, de um azul profundo. Eram os olhos mais acolhedores e cheios de compaixão que eu já vira. O rosto enrugado e os cabelos brancos eram de um velho, mas os olhos e o espírito cintilavam e emanavam uma energia que eu só experimentara quando criança.”

“– Quando você interrompe as pessoas no meio de uma frase, John, você envia algumas mensagens negativas. Número um, se você me interrompeu, é porque não estava prestando muita atenção ao que eu dizia, já que sua cabeça estava ocupada com a resposta. Número dois, se você se recusa a me ouvir, não está valorizando a minha opinião. Finalmente, você deve acreditar que o que tem a dizer é muito mais importante do que o que eu tenho a dizer. John, essas mensagens são desrespeitosas, e como líder você não pode enviá-las.”

“...Simeão continuou. – Por isso, é importante que desafiemos continuamente os paradigmas a respeito de nós mesmos, do mundo em torno de nós, de nossas organizações e das outras pessoas. Lembrem-se de que o mundo exterior entra em nossa consciência através dos filtros de nossos paradigmas. E nossos paradigmas nem sempre são corretos.
Eu acrescentei: – Li em algum lugar que não vemos o mundo como ele é, mas como nós somos. O mundo parece muito diferente dependendo de nossa perspectiva. Ele parece diferente se sou rico ou pobre, doente ou saudável, jovem ou velho, negro ou branco...”

“Bem, não conheço ninguém, vivo ou morto, que possa chegar perto de Jesus Cristo na personificação dessa descrição. Vamos olhar os fatos. Hoje, mais de dois bilhões de pessoas, um terço dos seres humanos deste planeta, se dizem cristãos. A segunda maior religião do mundo, o islamismo, é menos da metade menor do que o cristianismo. Dois dos maiores dias santos deste país, Natal e Páscoa, são baseados em eventos da vida de Jesus, e nosso calendário até conta os anos a partir do nascimento dele, há dois mil anos. Não me importa se você é budista, hinduísta, ateu ou da ‘igreja da moda’, ninguém pode negar que Jesus Cristo influenciou bilhões, hoje e ao longo da História. Ninguém está próximo do segundo lugar.”

“...Se bem me lembro, uma dessas palavras era eros, da qual se deriva a palavra erótico, e significa sentimentos baseados em atração sexual e desejo ardente. Outra palavra grega para amor, storgé, é afeição, especialmente com a família e entre os seus membros. Nem eros nem storgé aparecem nas escrituras do Novo Testamento. Outra palavra grega para amor era philos, ou fraternidade, amor recíproco. Uma espécie de amor condicional, do tipo ‘você me faz o bem e eu faço o bem a você’. Finalmente, os gregos usavam o substantivo agapé e o verbo correspondente agapaó para descrever um amor incondicional, baseado no comportamento com os outros, sem exigir nada em troca. É o amor da escolha deliberada. Quando Jesus fala de amor no Novo Testamento, usa a palavra agapé, um amor traduzido pelo comportamento e pela escolha, não o sentimento do amor.”

“– Precisamos uns dos outros – a enfermeira disse tranquilamente. – Os arrogantes e orgulhosos fingem que não precisam. O individualismo que predomina em nosso país é mentiroso e cria a ilusão de que não somos e não devemos ser dependentes de outras pessoas. Que piada! Um par de mãos me tirou do útero de minha mãe ao nascer, outro trocou minhas fraldas, me alimentou, me nutriu, outra ainda me ensinou a ler e escrever. Agora, outros pares de mãos cultivam minha comida, entregam minha correspondência, coletam meu lixo, fornecem-me eletricidade, protegem minha cidade, defendem minha nação. Um par de mãos cuidará de mim e me confortará quando eu ficar doente e velha, e, por fim, outro par de mãos me levará de volta a terra quando eu morrer.”

“– Eu defino motivação como qualquer comunicação que influencie as escolhas. Como líderes, podemos fornecer todas as condições, mas são as pessoas que devem fazer as próprias escolhas para mudar. Lembrem-se do princípio do jardim. Não fazemos o crescimento ocorrer. O melhor que podemos fazer é fornecer o ambiente certo e provocar um questionamento que leve as pessoas a se analisarem para poderem fazer suas escolhas, mudar e crescer.”

“– Mas – o pregador alegou – se admitimos que o conceito de causa e efeito é verdadeiro, chegamos ao paradoxo da criação do mundo, não é mesmo? Isto é, se levarmos o universo de volta ao primeiro segundo do tempo, a fração de segundo que precedeu a grande explosão, qual seria a causa? O que criou o primeiro átomo de hélio, hidrogênio ou o que seja? O paradoxo é que em algum lugar ao longo do caminho algo deve ter vindo do nada. Nós religiosos acreditamos que Deus é a primeira causa

“– Eu falo de alegria, Greg, não de felicidade, porque felicidade é baseada em acontecimentos. Se coisas boas acontecem, estou feliz. Se acontecem coisas más, estou infeliz. A alegria é um sentimento muito mais profundo, que não depende de circunstâncias externas. A maioria dos grandes líderes que se apoiaram na autoridade tem falado dessa alegria – Buda, Jesus Cristo, Gandhi, Martin Luther King, até Madre Teresa. Alegria é satisfação interior e a convicção de saber que você está verdadeiramente em sintonia com os princípios profundos e permanentes da vida. Servir aos outros nos livra das algemas do ego e da concentração em nós mesmos que destroem a alegria de viver.”

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A invenção de Morel

Bioy Casares, Adolfo. A Invenção de Morel. Editora Rocco; São Paulo / SP; 1986; 136 páginas.

Dados da obra:

Na trama, o leitor acompanha a trajetória de um homem que, condenado por motivos políticos, foge para uma ilha deserta do Pacífico conhecida por ser foco de uma epidemia letal. Lá encontra máquinas misteriosas e um grupo de turistas, que se diverte sem tomar conhecimento de sua presença. O refugiado apaixona-se por uma das mulheres do grupo e então descobre Morel, inventor de uma máquina de imagens que reproduz realidades passadas.

Breve relato do autor:

Foi um escritor argentino. Sua obra mais conhecida é La invención de Morel. A narrativa de Adolfo Bioy Casares criou um mundo de ambientes fantásticos regidos por uma lógica peculiar e marcados por um realismo de grande verossimilhança.

Passagens:

“Agora, a mulher do lenço me é imprescindível. Talvez todo esse escrúpulo de não esperar seja um pouco ridículo. Nada esperar da vida, para não arriscá-la; fazer-se de morto, para não morrer. De repente, isto me pareceu um letargo horrível, inquietíssimo; quero que termine. Depois da fuga, depois de ter vivido sem ligar para o cansaço que me destruía, alcancei a calma; minhas decisões talvez me devolvam a esse passado ou aos juízes; prefiro-os a este longo purgatório.”

“... Que devo pensar? Sem dúvida é uma mulher detestável. Mas, que será que ela quer? Talvez brinque comigo e com o barbudo; mas também é possível que o barbudo não seja mais do que uma ênfase no seu prescindir de mim, e um sinal de que esse prescindir atingiu o seu ponto máximo e chega ao fim.”

“Havia muito que pensava nisto, de modo que já estava um pouco farto e continuei com menos lógica: não morrera enquanto não tinham aparecido os intrusos; na solidão, é impossível estar morto. Para ressuscitar, devo suprimir as testemunhas. Será um extermínio fácil. Não existo: não suspeitarão de sua destruição.”

“Tive uma surpresa: depois de muito trabalho, ao congregar harmonicamente esses dados, encontrei-me com pessoas reconstituídas, que desapareciam se eu desligava o aparelho projetor, só viviam os momentos passados quando da tomada de cena e, ao terminá-los, voltavam a repeti-los, como se fossem partes de um disco ou filme que, ao terminar, voltasse a começar, mas que não se podiam distinguir das pessoas vivas (veem-se como que circulando em outro mundo, fortuitamente abordado pelo nosso). Se conferirmos consciência, e tudo o que nos distingue dos objetos, às pessoas que nos rodeiam, não poderemos negá-la às criadas pelos meus aparelhos, com nenhum argumento válido e exclusivo.”

“Congregados os sentidos, surge a alma. Era preciso esperá-la. Madeleine existia para a vista, Madeleine exista para o ouvido, Madeleine existia para o paladar, Madeleine existia para o olfato, Madeleine existia para o tato: Madeleine existia.”

“Por acaso, recordei que o fundamento do horror, que alguns povos sentem, de que se verem representados em imagens, é a crença de que, ao se formar a imagem de uma pessoa, a alma passa para a imagem e a pessoa morre.”

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Joe Gould

Mitchell, Joseph. O Segredo de Joe Gould. Companhia das Letras; São Paulo /SP; 2003; 160 páginas.

Dados da obra:

A reportagem 'O segredo de Joe Gould', de 1964, conta a história de um homem que vivia como um mendigo – perambulando pelo Greenwich Village bairro boêmio de Nova York – e planejava publicar um livro monumental: 'História oral do nosso tempo'. É um exemplo de Jornalismo Literário.

Breve relato do autor:

Colaborador da revista 'The New Yorker', Mitchell foi um dos maiores jornalistas norte-americanos do século XX. Ficou conhecido por seus retratos cuidadosamente escritos de excêntricos e pessoas à margem da sociedade.

Passagens:

“Gould sofre de memória perfeita e de vez em quando resolve anotar em minúcias tudo que fez de relativa importância num determinado período do passado recente, que pode ser um dia, uma semana ou um mês. Às vezes escreve um capítulo em que monotonamente amaldiçoa alguém ou uma instituição. Volta e meia divaga sobre temas como a pulga de albergue, o espaguete, o zíper como sinal da decadência da civilização, a dentadura postiça, a insanidade, o sistema de júri, o remorso, a comida de lanchonete e o efeito castrador da máquina de escrever sobre a literatura. ‘William Shakespeare não ficava martelando um maldito troço nojento de 95 dólares, e Joe Gould também não fica’, escreveu.”

“Até hoje não li mais nada de Joe Gould, escreveu (Saroyan) entre outras coisas. No entanto, ele continua sendo para mim um dos poucos autores americanos autênticos e originais. Ele era fácil e despojado, e quase tudo o que se escrevia no país era difícil e empolado. Nada tinha a ver com nada; tudo era burilado demais; tudo era miserável; tudo era meio doentio; tudo era literário; e não se conseguia dizer nada com simplicidade. Toda a literatura americana tentava se encaixar numa forma ou noutra, e nenhum escritor, exceto Joe Gould, demonstrava imaginação suficiente para compreender que, quando o ruim chegou ao pior, não havia mais necessidade de forma nenhuma. Não era preciso colocar o que se tinha a dizer num poema, num ensaio, num conto, numa novela. Bastava dizer.”

“Certa manhã do verão de 1917, depois de trabalhar como repórter por um ano, estava tomando sol (e tentando superar uma ressaca) nos fundos da chefatura de polícia, quando lhe ocorreu a ideia da História Oral. Imediatamente abandonou o emprego e começou a escrever. Num momento de exaltação declarou: ‘Desde essa manhã fatídica, a História Oral tem sido minha corda e minha forca, minha cama e minha comida, minha esposa e minha puta, minha ferida e o sal em cima dela, meu uísque e minha aspirina, minha rocha e minha salvação. É a única coisa que tem algum valor para mim. O resto é lixo’.”

“... até chegar a Nova York sempre se sentiu deslocado. ‘Em minha cidade natal, nunca me senti à vontade’, escreveu certa vez. ‘Eu destoava. Nem em minha própria casa eu me sentia em casa. Em Nova York, principalmente no Greenwich Village, entre os maníacos, os desajustados, os que têm só um pulmão, os que já foram alguma coisa na vida, os que poderiam ter sido, os que gostariam de ser, os que nunca serão e os que só Deus sabe, sempre me senti à vontade’.”

”Fomos para a mesa e a garçonete trouxe o café de Gould. Servido nunca caneca branca e grossa, estilo taberna, o café estava tão quente que fumegava. Mesmo assim, Gould inclinou a caneca ligeiramente em sua direção, sem levantá-la da mesa, debruçou-se e se pôs a tomar o café em pequenos goles cautelosos e rápidos, como um passarinho, entremeando-os de gemidos que indicavam prazer ou alívio, e quase de imediato seu rosto recuperou a cor, seus olhos se tornaram mais brilhantes e o movimento involuntário da boca desapareceu. Eu nunca tinha visto um café provocar em alguém uma reação tão instantânea e visível; provavelmente um conhaque não teria feito mais por ele, nem um dose de cocaína, nem uma tenda de oxigênio, nem uma transfusão de sangue. Gould tomou a caneca inteira dessa forma e depois se aprumou, pendeu a cabeça para um lado e olhou para mim.”

“...No trem, a caminho de Nova York, senti tanta saudade de Norwood que precisei me controlar para não descer e voltar atrás. Mesmo hoje ainda sofro, às vezes, com saudade de Norwood. Um cheiro azedo, como o de um porão onde um velho italiano esteja fabricando vinho, lá no setor italiano do Village, me lembra os curtumes e desperta a saudade. Essa é uma das piores coisas que descobri sobre as emoções humanas e como elas podem ser muito traiçoeiras – o fato de que é possível odiar um lugar de todo o coração e com toda a alma e ainda sentir saudade. Sem falar que é possível odiar uma pessoa de todo o coração e com toda a alma e ainda suspirar por ela.”

“...Eu considero o mais são dos homens aquele que melhor compreende o trágico isolamento da humanidade e prossegue calmamente na busca de seus propósitos essenciais”, escreveu. “Acho que penso dessa forma porque sofro de delírio de grandeza. Acho que sou Joe Gould.”

“... “O pessoal do Minetta me trata bem agora, mas pode se cansar de mim a qualquer momento e me enxotar, e, se fizer isso, eu não vou gostar de ir lá perguntar se chegou carta para mim.” E então disse uma coisa que me deixou sem palavras: ‘Escute aqui, foi você que começou tudo isto. Eu não procurei você. Você é que me procurou. Você queria escrever um artigo sobre mim e escreveu e agora tem de arcar com as consequências’.”

“Eu estava furioso. Assim que Pearce saiu, voltei-me para Gould. ‘Você me disse que levou braçadas da História Oral a catorze editoras’, falei. ‘Por que diabos teve todo esse trabalho se havia decidido no fundo de você mesmo que a História Oral seria uma obra póstuma? Estou começando a crer que a História Oral não existe’. Essa frase saiu de meu inconsciente, e eu não tinha muita noção do que estava dizendo – só estava desabafando minha raiva –, mas no momento seguinte, ao olhar para Gould, tive certeza de que havia descoberto a verdade sobre a História Oral.
‘Meu Deus!’, exclamei. ‘Ela não existe’. Eu estava estarrecido. ‘A História Oral não existe. Não existe’
Encarei Gould, e ele me encarou. Seu rosto não tinha expressão nenhuma.”

“Voltei para minha sala, sentei-me e apoiei os cotovelos na escrivaninha e a cabeça nas mãos. Sempre tive horror de ver alguém desmascarado, flagrado numa mentira ou pego com a boca na botija, e agora, com tempo para refletir, senti vergonha de mim mesmo por ter perdido a calma e me enfurecido com Gould. A raiva começou a se dissipar, e eu fui ficando deprimido. Gould me enganara – não havia muita dúvida em relação a isso –, assim como enganara inúmeras pessoas ao longo dos anos. Havia me engabelado, assim como havia engabelado inúmeras pessoas. No entanto não precisei refletir muito sobre o assunto para chegar à conclusão de que ele não andara discorrendo sobre a História Oral todos aqueles anos e fazendo grandes declarações sobre sua extensão, seu volume, sua importância para a posteridade e comparando-a com obras como A história do declínio e queda do Império Romano só para enganar gente como eu, mas também para enganar a si próprio. Com certeza descobrira, muito tempo atrás, que não tinha o gênio, o talento ou, talvez, a segurança, o empenho, a determinação para produzir uma obra tão imensa e grandiosa como imaginara e se contentara com escrever os tais capítulos de ensaios. Escrever e reescrever. E, ou por ser preguiçoso demais, ou por ser perfeccionista demais, nem esses capítulos conseguira terminar. Contudo, em boa parte do tempo provavelmente acreditava, de modo nebuloso, iludindo-se e protegendo a si mesmo, que a História Oral de fato existia – os capítulos orais e os capítulos de ensaios. A parte oral podia não estar no papel, mas ele a tinha inteira na cabeça e um dia qualquer começaria a escrevê-la.”

“Passei mais de um ano pensando nesse romance. Sempre que tinha uma folga, punha-me a escrevê-lo mentalmente. Ás vezes, numa viagem de metrô, escrevia três ou quatro capítulos. Quase todo dia descartava e criava personagens. Mas a verdade é que nunca escrevi de fato uma só palavra. O tempo passou, outros assuntos me ocuparam. E, mesmo assim, durante alguns anos eu frequentemente devaneava, e nesses devaneios terminava de escrever meu romance e o via publicado. Via o frontispício. Via a capa – verde com letras douradas. Essas lembranças me causaram um constrangimento quase insuportável, e passei a me sentir cada vez mais solidário com Gould.”

“Desde sua criação, em 1925, a New Yorker cultivava manias que desafiavam todo bom senso editorial. Por exemplo: tanto na gestão de Haroldo Ross, seu fundador e editor até 1951, como na de William Shawn, à frente da publicação de 1951 a 1987, a New Yorker manteve o princípio de jamais pautar seus escritores. Num livro-homenagem a Shawn, Remembering mr. Shawn´s “New Yorker”, o escritor Ved Mehta cita o próprio Shawn a esse respeito: `Somos uma revista de escritores e de artistas gráficos, e é fundamental que nossos colaboradores possam escrever e desenhar o que bem entenderem. Um dos problemas com a encomenda de matérias é que elas transformam colaboradores em empregados.”

“...Como escreveu o poeta e ensaísta Joseph Brodsky, outro colaborador da revista, entre os anjos não existe hierarquia. A partir de certo grau de excelência é bobagem comparar escritores para determinar quem é superior a quem. O melhor elogio que se pode fazer a Mitchell é dizer que até hoje ele representa o paradigma da grande tradição do jornalismo literário americano. É o exemplo a ser seguido. Mitchell é o escritor dos escritores. Quem entende do riscado gostaria de ser igual.”

“... A revista de Haroldo Ross e William Shawn criara as condições institucionais para o tipo de jornalismo praticado por ele. Só ela combinava quatro predicados essenciais: tempo (para apurar e escrever), espaço (quando a matéria era grande demais, o editor simplesmente dividia o artigo em duas ou mais partes), apoio financeiro e liberdade editorial. Mitchell podia levar dois anos escrevendo a matéria que bem quisesse. O salário pingava todo mês.”

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Harry Potter 1

Rowling, J. K. Harry Potter e a Pedra Filosofal. Editora Rocco; São Paulo / SP; 1997; 263 páginas.

Dados da obra:

É o primeiro livro da série, em que o leitor é apresentado a Harry, filho de Tiago e Lílian Potter, feiticeiros que foram assassinados por um poderosíssimo bruxo, quando ele ainda era um bebê. Com isso, o menino acaba sendo levado para a casa dos tios, sendo maltratado por estes. No dia de seu aniversário de 11 anos, sua vida muda ao descobrir sua verdadeira história e seu destino: ser um aprendiz de feiticeiro até o dia em que terá que enfrentar a pior força do mal, o homem que assassinou seus pais, o terrível Lorde das Trevas.

Breve relato da autora:

Joane Kathleen Rowling, ou simplesmente JK Rowling é uma escritora britânica de ficção, autora dos sete livros da famosa e premiada série Harry Potter e de três outros pequenos livros relacionados ao mundo dele.

Passagens:

“Você não vai querer isso, é muito seco. Ela não tem muito tempo – acrescentou depressa. – Você sabe, somos cinco.
– Tome, como um pastelão – disse Harry, que nunca tivera nada para dividir com alguém antes, aliás, nem ninguém com quem dividir. Era uma sensação gostosa, sentar-se ali com Rony, acabar com todas as tortas e bolos de Harry (os sanduíches ficaram esquecidos).”

“– Vocês estão aqui para aprender a ciência sutil e a arte exata do preparo de poções – começou. Falava pouco acima de um sussurro, mas eles não perderam nenhuma palavra. Como a Profa. Minerva, Snape tinha o dom de manter uma classe silenciosa sem esforço. – Como aqui não fazemos gestos tolos, muitos de vocês podem pensar que isto não é mágica. Não espero que vocês realmente entendam a beleza de um caldeirão cozinhando em fogo lento, com a fumaça a tremeluzir, o delicado poder dos líquidos que fluem pelas veias humanas e enfeitiçam a mente, confundem os sentidos... Posso ensinar-lhes a engarrafar fama, a cozinhar glória, até zumbificar, se não forem o bando de cabeças-ocas que geralmente me mandam ensinar.”

“A sala comunal estava cheia e barulhenta. Todo o mundo estava comendo o jantar que fora mandado para lá. Hermione, porém, estava parada sozinha do lado da porta, esperando por eles Houve um silêncio constrangido. Depois, sem se olharem, todos disseram ‘Obrigado’ e correram para apanhar os pratos.
Mas daquele momento em diante, Hermione Granger tornou-se amiga dos dois. Há coisas que não se pode fazer junto sem acabar gostando um do outro, e derrubar um trasgo montanhês de quase quatro metros de altura é uma dessas coisas.”

“Harry pensou. Então respondeu lentamente:
– Ele nos mostra o que desejamos... seja o que for que desejemos...
– Sim e não – disse Dumbledore. – Mostra-nos nada mais nem menos do que o desejo mais íntimo, mais desesperado de nossos corações. Você, que nunca conheceu sua família, a vê de pé à sua volta. Ronald Weasley, que sempre teve os irmãos a lhe fazerem sombra, vê-se sozinho, melhor que todos os irmãos. Porém, o espelho não nos dá nem o conhecimento nem a verdade. Já houve homens que definharam diante dele, fascinados pelo que viram, ou enlouqueceram sem saber se o que o espelho mostrava era real ou sequer possível.”

“– Harry Potter, você sabe para que se usa o sangue de unicórnio?
– Não – disse Harry surpreendido pela estranha pergunta. – Só usamos o chifre e a cauda na aula de Poções.
– Porque é uma coisa monstruosa matar um unicórnio. Só alguém que não tem nada a perder e tudo a ganhar cometeria um crime desses. O sangue do unicórnio mantém a pessoa viva, mesmo quando ela está à beira da morte, mas a um preço terrível. Ela matou algo puro e indefeso para se salvar e só terá uma semivida, uma vida amaldiçoada, do momento que o sangue lhe tocar os lábios.”

“– E DAÍ? – gritou Harry. – Vocês não percebem? Se Snape apanhar a pedra, Voldemort vai voltar! Vocês não ouviram contar como era quando ele estava tentando conquistar o poder? Não vai haver Hogwarts para nos expulsar! Ele vai arrasar Hogwarts, ou transformá-la numa escola de magia negra! Perder pontos não importa mais, vocês não entendem? Acham que ele vai deixar vocês e suas famílias em paz, se Grifinória ganhar o campeonato das casas? Se eu for pego antes de conseguir a pedra, bem, vou ter que voltar para os Dursley e esperar Voldemort me encontrar lá. É só uma questão de morrer um pouquinho depois do que teria morrido, porque eu nunca vou me aliar aos partidários da magia negra! Vou entrar naquele alçapão hoje à noite e nada que vocês dois disserem vai me impedir! Voldemort matou meus pais, estão lembrados?”

“Alguém que estivesse do lado de fora do salão principal poderia ter pensado que ocorrera uma explosão, tão alta foi a barulheira que irrompeu na mesa da Grifinória. Harry, Rony e Hermione se levantaram para gritar e dar vivas enquanto Neville, branco de susto, desaparecia debaixo de uma montanha de gente que o abraçava. Jamais ganhara um único ponto para Grifinória antes. Harry, ainda gritando, cutucou Rony nas costelas indicando Malfoy, que não poderia ter feito uma cara mais perplexa e horrorizada se tivesse acabado de ser encantado com o Feitiço do Corpo Preso.”

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A sangue frio

Capote, Truman. A Sangue Frio. Editor Victor Civita; São Paulo / SP; 1975; 416 páginas.

Dados da obra:

Publicado em 1966, A Sangue Frio é a história real do brutal assassinato de uma família na cidade de Holcomb, localizada no interior do estado do Kansas, nos EUA, da ideia inicial do crime até a execução dos assassinos. O livro é um marco no jornalismo literário. Para escrevê-lo, Capote mergulhou fundo na história e conviveu com os assassinos, conseguindo extrair destes a confissão do crime.

Breve relato do autor:

Truman Streckfus Persons, mais conhecido como Truman Capote foi um escritor norte-americano e pioneiro do jornalismo literário.

Passagens:

“Nomes assinalados a tinta povoavam o mapa. Cozumel, uma ilha na costa do Iucatã, onde, conforme lera numa revista para homens, as pessoas poderiam ‘tirar a roupa, rir descansadas, viver como um marajá e ter todas as mulheres que quisessem com apenas cinquenta dólares por mês!’ ... Acapulco significava pescaria em alto-mar, cassinos, mulheres ricas e nervosas; Sierra Madre era ouro e outro era O Tesouro de Sierra Madre, filme que já vira oito vezes.”

“...Estudando outras fotografias do local do crime, Dewey descobria outros detalhes que pareciam apoiar sua teoria do assassino ocasionalmente levado por impulsos de consideração. ‘Ou’, quase nunca conseguia a palavra desejada, ‘cheio de cuidados’. Aquelas cobertas. Que tipo de pessoa faria isso: amarrar duas mulheres, como Bonnie e a menina foram amarradas, e então erguer as cobertas, aconchegá-las dentro delas, quase como a desejar uma boa noite e que dormissem bem? Ou o travesseiro debaixo da cabeça de Kenyon... Primeiro pensei que o travesseiro tivesse sido colocado para fazer da cabeça um alvo melhor. Agora acho que não, foi pelo mesmo motivo que puseram a caixa no chão: para dar mais conforto às vítimas.”

“Nossa, que frio! Papai e eu dormíamos abraçados, envoltos em cobertores e peles de urso. Antes que o sol raiasse, de manhã, eu arrumava café, biscoitos e mel, carne frita. Depois a gente ia cavar a vida. Teria sido bom, se eu não tivesse crescido. Quanto mais velho ficava, menos apreciava papai. Sabia tudo, por um lado, mas por outro não sabia nada. Papai não sabia nada de uma porção de coisas a meu respeito. Não compreendia um til. Como eu consegui tocar logo da primeira vez que peguei numa gaita. E guitarra também. Eu tinha um jeito enorme para música. Papai não reconhecia isso. Nem se importava. Eu gostava de ler. Melhorar meu vocabulário. Compunha canções...”

“... Dissera que tinha medo de Perry, e tinha: mas seria de Perry apenas ou seria de uma configuração de que ele era apenas parte no destino terrível que coubera aos quatro filhos de Florence Buckskin e Tex John Smith? O mais velho – o irmão que amara – matara-se com um tiro. Fern caíra, ou se jogara, de uma janela. E Perry entregara-se à violência: um criminoso. Portanto, num certo sentido, era ela a única sobrevivente e o que a atormentava era pensar que, com o tempo, ela, também, seria arrastada: enlouqueceria, contrairia uma doença incurável, ou perderia tudo que amava num incêndio: lar, marido, filhos”.

“... Até a morte de Nancy não apreciara Sue, nunca se sentira à vontade com ela. Ela era diferente – levava a sério mesmo coisas que as moças não deveriam levar a sério: pintura, poemas, a música que tocava no piano. E, é claro, tinha ciúmes dela; sua posição, no conceito de Nancy, embora fosse de outro tipo, havia sido idêntica à dele, no mínimo. Mas por isso mesmo ela compreendia sua perda. Sem Sue, sem a sua presença quase constante, como poderia ter suportado aquela avalancha de choques – o crime, suas entrevistas com o Sr. Dewey, a ironia patética de ser o principal suspeito?
Depois de um mês, a amizade esfriou. Bobby passou a frequentar menos a pequena e acolhedora sala de visitas dos Kidwell e, quando ia, Sue não parecia tão acolhedora. O mal estava em que ambos se esforçavam a lamentar e lembrar aquilo que, na realidade, queriam esquecer...”

“...O potencial assassino pode ser ativado, especialmente se algum desequilíbrio já se encontra presente, quando a futura vítima é inconscientemente percebida como figura-chave de alguma configuração traumática de seu passado. O comportamento, ou mesmo a simples presença desta figura, acrescenta uma tensão ao equilíbrio de forças que resulta numa súbita e extrema descarga de violência, semelhante à explosão de uma espoleta numa carga de dinamite...”

“...Três dos assassinatos de Smith, obviamente, foram motivados pela lógica: Nancy, Kenyon e a mãe deles tinham de ser mortos porque o Sr. Clutter fora morto. Mas o Dr. Satten argumenta que, do ponto de vista psicológico, só o primeiro assassinato conta, e que, quando Smith atacou o Sr. Clutter, estava em ‘eclipse mental’, dentro de uma profunda escuridão esquizofrênica, pois não era um homem de carne e osso que ‘se descobrira subitamente destruindo’, mas uma ‘figura-chave em alguma configuração dramática em seu passado’: o pai?, as freiras no orfanato que o ridicularizavam e surravam? O sargento tão odiado? O encarregado do livramento condicional que lhe dera ordens de ‘não aparecer no Kansas?’ Um deles, ou todos eles”.

“Na confissão, Smith dissera: ‘Não queria fazer mal. Me parecia um cavalheiro muito distinto. De fala macia. Até a hora de cortar o pescoço dele eu achava isso’. Ou então para o amigo Don Cullivan: ‘Não foi nada que os Clutter tivessem feito. Nunca me fizeram nada. Como os outros fizeram. Como fizeram comigo a vida inteira. Vai ver os Clutter é que tinham de pagar por tudo’.”

“– Mas pra idade dele nunca conheci ninguém tão inteligente. Uma verdadeira enciclopédia ambulante. Quando aquele menino lia um livro era pra valer. Claro que não sabia nada da vida. Eu sou um cara ignorante, menos no que diz respeito à vida. Já andei em cada rua que não era brincadeira não. Já vi homem branco ser açoitado. Vi criança nascer. Vi uma garota com menos de catorze anos ir pra cama com três caras ao mesmo tempo e merecer o dinheiro tirado deles todos. Uma vez caí de um navio a cinco milhas da costa: nadei cinco milhas vendo minha vida passar diante de mim a cada braçada. Uma vez apertei a mão do Presidente Truman no saguão do Hotel Muehlebach. Harry S. Truman. Quando trabalhava pro hospital dirigindo ambulância, vi todos os lados da vida – coisas de fazer um cachorro vomitar. Mas Andy? Não sabia nada: a não ser o que lia nos livros.”

“Passo, laço, máscaras. Mas antes de lhe ajeitarem a máscara, o prisioneiro cuspiu fora o chiclete na mão estendida do capelão. Dewey fechou os olhos. Manteve-os fechados até que ouviu o baque surdo anunciando um pescoço quebrado por corda. Como a maior parte dos agentes da lei dos Estados Unidos, Dewey tem certeza de que a pena de morte é um meio de intimidação ao crime violento. A execução anterior não o perturbara, pois nunca dera muita importância a Hickock, que lhe parecia apenas ‘um ladrãozinho ordinário’ que saíra da sua categoria, vazio, não valia nada. Mas Smith, embora fosse o verdadeiro assassino, despertava outra espécie de reação, pois Perry possuía a aura do animal ferido, da criatura exilada que o detetive não podia menosprezar. Lembrou-se do primeiro encontro com Perry, na sala de interrogatórios em Las Vegas: o menino-homem, quase anão, sentado na cadeira de metal, os pés em botas mal tocando no solo.
E foi o que viu, quando abriu de novo os olhos: os mesmos pés infantis, tortos, balançando.”

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Harry Potter 6

Rowling, J. K. Harry Potter e o Enigma do Príncipe. Editora Rocco; São Paulo / SP; 2005; 512 páginas.

Dados da obra:

Considerado, por alguns, o mais sombrio da série, o livro dá continuidade à saga de Harry Potter, que acabou de completar 16 anos, partindo assim para o sexto ano na escola de Hogwarts. Animado e ansioso, Harry terá aulas particulares com Dubledore.

Breve relato da autora:

Joane Kathleen Rowling, ou simplesmente JK Rowling é uma escritora britânica de ficção, autora dos sete livros da famosa e premiada série Harry Potter e de três outros pequenos livros relacionados ao mundo dele.

Passagens:

“– Mas enquanto estava na casa dos Dursley – interrompeu Harry, sua voz tornando-se mais firme – percebi que não posso me isolar de tudo, senão vou ficar maluco. Sirius não teria gostado disso, não é? De qualquer jeito, a vida é curta demais... vê a Madame Bones, vê a Emelina Vance... eu poderia ser o próximo, não é? Mas, se eu for – disse com ferocidade, agora encarando os olhos azuis de Dumbledore, brilhando à luz da varinha –, vou fazer questão de levar comigo o maior número de Comensais da Morte que puder, e Voldemort também, se tiver forças.”

“Era bem estranho, visto que tinha sido um Comensal da Morte disfarçado quem dissera pela primeira vez que Harry daria um bom auror, que a ideia o tivesse conquistado e ele não conseguisse realmente pensar em outra profissão futura. Além disso, tinha lhe parecido o destino certo para ele desde que ouvira a profecia há um mês... nenhum poderá viver enquanto o outro sobreviver... não estaria assim cumprindo a profecia e dando a si mesmo a melhor chance de sobreviver, se entrasse para o grupo de bruxos altamente treinados cuja função era encontrar e matar Voldemort? ”

“A infância de Neville fora arruinada por Voldemort tal como a de Harry, mas o amigo não fazia a menor ideia de como chegara perto de ter o destino dele. A profecia poderia ter se referido a qualquer um dos dois, contudo, por razões próprias e insondáveis, Voldemort preferira acreditar que se referia a Harry.
Se Voldemort tivesse escolhido Neville, ele é quem estaria sentado diante de Harry com a cicatriz em forma de raio e o peso da profecia... ou será que não? Será que a mãe de Neville teria morrido para salvá-lo, como Lílian morrera por Harry? Com certeza que sim... mas e se não tivesse conseguido se interpor entre Voldemort e o filho? Então, será que não haveria ‘Eleito’ algum? Só um banco vazio onde Neville se sentava agora e um Harry sem cicatriz que teria recebido um beijo de despedida de sua mãe e não da de Rony? “

“– As pessoas acreditam que você é o ‘Eleito’, entende? Acham que você é um herói, o que é claro, você é, Harry, eleito ou não! Quantas vezes você enfrentou Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado até agora? Bem, seja como for – ele prosseguiu sem esperar resposta –, a questão é que você é um símbolo de esperança para muitos, Harry. A ideia de que tem alguém de sentinela que talvez possa, ou até talvez esteja destinado a destruir Aquele-que-Não-Deve-Ser-Nomeado... bem é natural que isto revigore as pessoas. E não posso deixar de sentir que, quando perceber isto, você talvez considere, bem, quase como um dever, apoiar o Ministério e dar alento a todos.”

“– Dumbledore nos contou como você salvou Rony com o bezoar – soluçou a bruxa. – Ah, Harry, que podemos dizer? Você salvou Gina... salvou Arthur... agora salvou Rony...
– Não precisa... eu não... – murmurou Harry sem jeito.
– Parece que metade da nossa família lhe deve a vida, agora que paro para pensar – falou o sr. Weasley com a voz embargada. – Bem, só o que posso dizer é que foi um dia de sorte para os Weasley quando Rony resolveu sentar no seu compartimento no Expresso de Hogwarts, Harry.”

“A expressão de Voldemort não se alterou ao responder:
– A grandeza inspira a inveja, a inveja engendra o despeito, o despeito produz a mentira. Você deve saber disso, Dumbledore.”

.”– Acho que sim – respondeu Dumbledore. – Sem as Horcruxes, Voldemort será um homem mortal, com uma alma mutilada e diminuída. Mas não se esqueça jamais que, embora a alma dele esteja irrecuperavelmente danificada, seu cérebro e seus poderes mágicos permanecem intactos. Serão necessários perícia e poder incomuns para matar um bruxo como Voldemort, mesmo sem as Horcruxes.”

“– Isso mesmo... apenas amor. Mas, Harry, nunca esqueça que os dizeres da profecia só têm significação porque Voldemort fez com que tivessem. Eu lhe disse isto no final do ano passado. Voldemort destacou você como a pessoa que ofereceria maior perigo para ele; e, ao fazer isso, transformou-o na pessoa que ofereceria maior perigo para ele!”

“– Claro que sim! – exclamou Dumbledore. – A profecia não significa que você tem de fazer nada, entende! Mas a profecia levou Lord Voldemort a marcá-lo como seu igual... em outras palavras, você é livre para escolher o próprio caminho, livre para dar as costas à profecia! Voldemort, no entanto, continua a valorizar a profecia. E continuará a persegui-lo... o que de, fato, transforma em certeza que...
– Que um de nós vai acabar matando o outro – completou Harry. – Eu sei.”

“O garoto percebera que não havia esperança no instante em que o Feitiço do Corpo Preso que Dumbledore lançara sobre ele cessara; percebera que aquilo só poderia ter acontecido porque quem lançara o feitiço estava morto; contudo, ainda não tinha se preparado para vê-lo ali, de braços e pernas abertos, quebrado: o maior bruxo que Harry conhecera ou jamais conheceria.”

“Ao Lorde das Trevas
Sei que há muito estarei morto quando ler isto, mas quero que saiba que fui eu quem descobriu o seu segredo. Roubei a Horcrux verdadeira e pretendo destruí-la assim que puder. Enfrento a morte na esperança de que, quando você encontrar um adversário à altura, terá se tornado outra vez mortal. R.A.B”

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Harry Potter 5

Rowling, J. K. Harry Potter e a Ordem da Fênix. Editora Rocco; São Paulo / SP; 2003; 704 páginas.

Dados da obra:

Quinto livro da série, Harry Potter e a Ordem da Fênix é uma obra marcada pela tensão e pela complexidade. Potter já é um adolescente e aos poucos vai amadurecendo, tem crises e ataques de mau humor. O título faz menção a uma sociedade secreta envolvendo parte dos professores da Escola de Magia. Hogwarts se transforma em um horror e Harry terá de enfrentar as investidas de Voldemort sem a proteção de Dumbledore, já que o diretor é afastado da escola.

Breve relato da autora:

Joane Kathleen Rowling, ou simplesmente JK Rowling é uma escritora britânica de ficção, autora dos sete livros da famosa e premiada série Harry Potter e de três outros pequenos livros relacionados ao mundo dele.

Passagens:

“Era estranho estar parado ali na cozinha cirurgicamente limpa da tia Petúnia, ao lado de uma geladeira de último tipo e uma enorme tela de televisão, conversando calmamente com o tio sobre Lord Voldemort. A chegada de dementadores a Little Whinging parecia ter rompido o grande muro invisível que separava o mundo implacavelmente não-mágico da rua dos Alfeneiros e o mundo além. As duas vidas de Harry de alguma forma haviam se fundido e tudo virara de cabeça para baixo; os Dursley estavam pedindo detalhes sobre o mundo mágico, e a Sra. Figg conhecia Dumbledore; os dementadores estavam circulando por Little Whinging, e ele talvez nunca mais voltasse a Hogwarts. Sua cabeça latejou com mais força, doendo ainda mais.”

“Cada pensamento amargurado e cheio de rancor que Harry tivera no último mês foi saindo de dentro dele; sua frustração com a falta de notícias, a mágoa de que todos tinham estado juntos sem ele, sua fúria por estar sendo seguido e ninguém lhe informar – todos os sentimentos de que sentia uma certa vergonha extravasaram. Edwiges assustou-se com a gritaria e tornou a voar para cima do armário; Pichitinho, alarmado, soltou vários pios e voou ainda mais depressa ao redor das cabeças dos garotos.”

“Harry amarrou a cara e enterrou-a nas mãos. Não podia mentir para si mesmo; se tivesse sabido que o distintivo de monitor estava a caminho, teria esperado que viesse para ele e não para Rony. Será que isto o fazia tão arrogante quanto Draco Malfoy? Será que se achava superior a todos? Será que realmente acreditava que era melhor do que Rony?
Bom, Rony e Hermione estiveram comigo na maior parte do tempo, disse a voz na cabeça de Harry.
Mas não o tempo todo, argumentou Harry. Eles não lutaram contra Quirrell. Eles não enfrentaram o Riddle nem o basilisco. Eles não se livraram dos dementadores na noite em que Sirius fugiu. Eles não estiveram no cemitério, na noite em que Voldemort voltou...”
Mas talvez, disse a vozinha com imparcialidade, talvez Dumbledore não escolha os monitores porque eles vivam se metendo em situações perigosas... talvez ele os escolha por outras razões... Rony deve ter alguma coisa que você não tem...”

“Rony não pedira a Dumbledore para lhe dar o distintivo de monitor. Não era culpa de Rony. Será que ele, Harry, o melhor amigo de Rony no mundo, ia ficar emburrado porque não ganhara um distintivo, ia rir com os gêmeos às costas do amigo, estragar, para Rony, este momento em que, pela primeira vez, ele levava a melhor sobre Harry em alguma coisa?”

“Era estranho como os pertences dos dois pareciam ter-se espalhado desde que haviam chegado ali. Levaram quase a tarde inteira para reunir os livros e outras coisas largadas pela casa e guardá-las de volta nos malões de escola. Harry reparou que o amigo não parava de mexer no distintivo, primeiro colocou-o sobre a mesa-de-cabeceira, depois guardou-o no bolso da jeans, por fim tirou-o e ajeitou-o sobre as vestes dobradas, como se quisesse ver o efeito do vermelho sobre o negro. Somente quando Fred e Jorge apareceram e se ofereceram para prendê-lo à testa dele com um Feitiço Adesivo Permanente, é que ele o embrulhou carinhosamente nas meias castanhas e trancou-o no malão.”

“Harry não disse nada. Atirou a varinha sobre a sua mesa-de-cabeceira, despiu as vestes, enfiou-as com raiva no malão e vestiu o pijama. Estava farto daquilo; farto de ser a pessoa para quem todos olham e de quem falam o tempo todo. Se algum deles soubesse, se algum deles tivesse a mais pálida ideia do que era se sentir a pessoa a quem todas aquelas coisas aconteciam... A Sra. Finningan não fazia ideia, aquela burra, pensou com ferocidade.”

“Conhecera essa sala à época dos seus três ocupantes anteriores. Quando Gilderoy Lockhart a usara, tinha as paredes cobertas de fotos dele sorridente. Quando Lupin a ocupara, parecia que a pessoa ia deparar com alguma fascinante criatura das trevas em uma gaiola ou em um tanque, se aparecesse para visitá-lo. Na época do Moody impostor, a sala se enchera de instrumentos e artefatos para a detecção de malfeitos e dissimulações.
Agora, porém, estava completamente irreconhecível. As superfícies tinham sido protegidas por capas de rendas e tecidos. Havia vários vasos de flores secas, cada um sobre um paninho, e, em uma parede, havia uma coleção de pratos decorativos, estampados com enormes gatos em tecnicolor, cada um com uma laço diferente ao pescoço. Eram tão hediondos que Harry ficou mirando-os, paralisado, até a Profª Umbridge tornar a falar.”

“A mãe de Neville viera andando lentamente pela enfermaria de camisola. Já não tinha o rosto cheio e feliz que Harry vira na velha fotografia de Moody com os participantes da Ordem da Fênix inicial. Seu rosto estava fino e cansado agora, os olhos pareciam grandes demais e seus cabelos tinham ficado brancos, ralos e sem vida. Ela não pareceria querer falar, ou talvez não fosse capaz, mas fez gestos tímidos em direção a Neville, segurando alguma coisa na mão estendida.”

“– Somente os trouxas falam de ler mentes. A mente não é um livro que se abre quando se quer e se examina ao bel-prazer. Os pensamentos não estão gravados no interior do crânio, para serem examinados por qualquer invasor. A mente é algo complexo e multiestratificado, Potter, ou pelo menos a maioria das mentes é. – Deu um sorrisinho. – Mas é verdade que aqueles que dominam a Legilimência são capazes, sob determinadas condições, de penetrar as mentes de suas vítimas e interpretar suas conclusões corretamente. O Lorde das Trevas, por exemplo, quase sempre sabe quando alguém está mentindo para ele. Somente os peritos em Oclumência podem ocultar os sentimentos e lembranças que contradiriam a mentira, e conseguem dizer falsidades em sua presença sem serem apanhados.”

“Mas uma parte dele compreendia, mesmo enquanto lutava para se desvencilhar de Lupin, que Sirius nunca o deixara esperando antes... Sempre arriscara tudo para ver Harry, para ajudá-lo... se não saía do arco quando gritava por ele como se sua vida dependesse disso, a única explicação possível era que não podia voltar... era que realmente estava...”

“A sensação de culpa que enchia o peito de Harry como um parasita monstruoso e pesado agora se torcia e virava. Harry não conseguia suportar isso, não conseguia mais suportar ser quem era... nunca se sentira tão encurralado dentro do próprio corpo, nunca desejara tão intensamente poder ser outra pessoa, qualquer pessoa, ou...”

“Harry deu as costas ao diretor e ficou olhando decidido pela janela. Via o campo de quadribol ao longe. Sirius aparecera ali uma vez, disfarçado de cachorro preto e peludo, para poder vê-lo jogar... provavelmente viera ver se o filho era tão bom quanto o pai fora... Harry nunca lhe perguntara...”

“Aquele com o poder de vencer o Lorde das Trevas se aproxima... nascido dos que o desafiaram três vezes, nascido ao terminar o sétimo mês... e o Lorde das Trevas o marcará como seu igual, mas ele terá um poder que o Lorde das Trevas desconhece... e um dos dois deverá morrer na mão do outro pois nenhum poderá viver enquanto o outro sobreviver... aquele com o poder de vencer o Lorde das Trevas nascerá quando o sétimo mês terminar...”

“– Há uma sala no Departamento de Mistérios – interrompeu-o Dumbledore – que está sempre trancada. Contém uma força mais maravilhosa e mais terrível do que a morte, do que a inteligência humana, do que as forças da natureza. E talvez seja também o mais misterioso dos muitos objetos de estudo que são guardados lá. É o poder guardado naquela sala que você possui em grande quantidade, e que Voldemort não possui. Esse poder o levou a tentar salvar Sirius hoje à noite. Esse poder também o salvou de ser possuído por Voldemort, porque ele não poderia suportar residir em um corpo tomado por uma força que ele detesta. No fim, não teve importância que você não pudesse fechar sua mente. Foi o seu coração que o salvou.”

“Talvez a razão pela qual queria estar só fosse a sensação de isolamento desde a sua conversa com Dumbledore. Uma barreira invisível o separava do resto do mundo. Era – e sempre fora – um homem marcado. Apenas nunca entendera realmente o que isto significava...
E, no entanto, sentado ali à beira do lago, com o peso terrível da dor a oprimi-lo, com a perda de Sirius ainda tão sangrenta e recente em seu peito, ele não conseguia sentir nenhum grande temor. Fazia um dia ensolarado, os jardins à sua volta estavam cheios de gente que ria e, embora se sentisse distante deles como se pertencesse a uma raça à parte, ainda era muito difícil acreditar que sua vida tinha de incluir o assassinato ou nele terminar...
Ficou sentado ali muito tempo, contemplando a água, tentando não pensar no padrinho, nem lembrar que fora na outra margem diretamente oposta que Sirius uma vez tombara, tentando afastar cem Dementadores...
O sol já se pusera quando ele percebeu que sentia frio. Levantou-se e voltou ao castelo, enxugando o rosto na manga pelo caminho.”

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A revolução dos bichos

Orwell, George. A revolução dos bichos. Editora Globo; São Paulo / SP; 1996; 98 páginas.

Dados da obra:

O livro trata-se de um romance alegórico, uma sátira feita à União Soviética comunista. Narra uma história de corrupção e traição e recorre a figuras de animais para retratar as fraquezas humanas e demolir o “paraíso comunista” proposto pela Rússia na época de Stalin. A revolta dos animais da fazenda contra os humanos é liderada pelos porcos Bola-de-Neve e Napoleão. Os animais tentam criar uma sociedade utópica, porém Napoleão é seduzido pelo poder e estabelece uma ditadura tão corrupta quando a sociedade humana.

Breve relato do autor:

George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, foi jornalista, ensaísta e romancista britânico. Sua escrita é marcada por descrições concisas de eventos e condições sociais e o desprezo por todos os tipos de autoridade.

Passagens:

“Então, camaradas, qual é a natureza da nossa vida? Enfrentemos a realidade: nossa vida é miserável, trabalhosa e curta. Nascemos, recebemos o mínimo de alimento necessário para continuar respirando e os que podem trabalhar são forçados a fazê-lo até a última parcela de suas forças; no instante em que nossa utilidade acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade. Nenhum animal, na Inglaterra, sabe o que é felicidade ou lazer, após completar um ano de vida. Nenhum animal, na Inglaterra, é livre. A vida de um animal é feita de miséria e escravidão: essa é a verdade nua e crua”.

“Eis aí, camaradas, a resposta a todos os nossos problemas. Resume-se em uma só palavra – Homem. O Homem é o nosso verdadeiro e único inimigo. Retire-se da cena o Homem e a causa principal da fome e da sobrecarga de trabalho desaparecerá para sempre. O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre o suficiente para alcançar uma lebre. Mesmo assim, é o senhor de todos os animais. Põe-nos a trabalhar, dá-nos de volta o mínimo para evitar a inanição e fica com o restante”.

“Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo, qualquer coisa que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo. Lembrai-vos também de que na luta contra o Homem não devemos assemelhar-nos a ele. Mesmo quando o tenhais derrotado, evitai seus vícios. Animal nenhum deve morar em casas, nem dormir em camas, nem usar roupas, nem beber álcool, nem fumar, nem tocar em dinheiro, nem fazer comércio. Todos os hábitos do Homem são maus. E, principalmente, jamais um animal deverá tiranizar outros animais. Todos os animais são iguais”.

“– A asa de uma ave, camaradas, é um órgão de propulsão e não de manipulação. Deveria ser olhada mais como uma perna. O que distingue o Homem é a mão, o instrumento com que perpetra toda a sua maldade”.

“Os animais dividiram-se em duas facções que se alinhavam sob os slogans: 'Vote em Bola-de-Neve e na semana de três dias' e 'Vote em Napoleão e na manjedoura cheia'. Benjamin foi o único animal que não aderiu a lado nenhum. Recusava-se a crer, tanto em que haveria fartura de alimento, como em que o moinho de vento economizaria trabalho. Moinho ou não moinho de vento, dizia ele, a vida prosseguiria como sempre fora – ou seja, mal”.

“Repetiu inúmeras vezes: 'Tática, camaradas, tática!', saltando à roda e sacudindo o rabicho com um riso jovial. Os bichos não estavam muito certos do significado da palavra, mas Garganta falava tão persuasivamente e três cachorros – que por coincidência estavam com ele – rosnavam tão ameaçadoramente, que aceitaram a explicação sem mais perguntas”.

“Quando tudo acabou, os bichos sobreviventes, com exceção dos porcos e dos cachorros, retiraram-se furtivamente, trêmulos e angustiados. Não sabiam o que era mais chocante, se a traição dos animais que se haviam acumpliciado com Bola-de-Neve, ou se a cruel repressão recém-presenciada. Nos velhos tempos eram frequentes as cenas sangrentas, igualmente horripilantes, entretanto agora lhes parecia ainda piores, uma vez que ocorriam entre eles mesmos. Desde o dia em que Jones deixara a fazenda até aquele dia, nenhum animal matara outro animal. Nem sequer um rato fora morto”.

“Olhando pela encosta da colina, Quitéria ficou com os olhos cheios d´água. Se pudesse exprimir seus pensamentos, diria que aquilo não era bem o que pretendiam ao se lançarem, anos atrás, ao trabalho de derrubar o gênero humano. Aquelas cenas de terror e sangue não eram as que previra naquela noite em que o velho Major, pela primeira vez, os instigara à rebelião. Se ela própria pudesse imaginar o futuro, veria uma sociedade de animais livres da fome e do chicote, todos iguais, cada qual trabalhando de acordo com sua capacidade, os mais fortes protegendo os mais fracos, como ela protegera aquela ninhada de patinhos na noite do discurso do Major. E, em vez disso – não podia compreender por quê – haviam chegado a uma época em que ninguém ousava dizer o que pensava, em que os cachorros rosnantes e malignos perambulavam por toda parte e a gente era obrigada a ver camaradas feitos em pedaços após confessarem os crimes mais horríveis. Não tinha em mente ideias de rebelião ou desobediência. Sabia que, por piores que fossem, as coisas estavam muito melhores do que nos tempos de Jones e que antes de mais nada era preciso evitar o retorno dos seres humanos. Acontecesse o que acontecesse, ela permaneceria fiel, trabalharia bastante, cumpriria as ordens recebidas e aceitaria a liderança de Napoleão. Mesmo assim, não fora por aquilo que haviam construído o moinho de vento e enfrentado as balas da espingarda de Jones. Tais eram os seus pensamentos, embora ela não tivesse palavras para expressá-los”.

“Coxearam até o pátio. As balas, sobre o couro de Sansão, aferroavam dolorosamente. Ele enxergava à sua frente a pesada tarefa de reconstruir o moinho de vento e, mesmo em imaginação, já se atirava ao trabalho. Pela primeira vez, entretanto, ocorreu-lhe a lembrança de que já tinha onze anos de idade e que talvez seus músculos já não tivessem a mesma força de antes”.

“Houve um silêncio mortal. Surpresos, aterrorizados, uns juntos aos outros, os bichos olhavam a fila de porcos marchar lentamente em redor do pátio. Pareceu-lhes enxergar o mundo de cabeça para baixo. Então veio um momento em que, passado o primeiro choque e a despeito de tudo – a despeito do terror dos cachorros e do hábito, arraigado após tantos anos, de nunca se queixarem, nunca criticarem, pouco importava o que sucedesse – poderiam lançar uma palavra de protesto. Porém exatamente nesse instante, como se obedecessem a um sinal combinado, as ovelhas, em uníssono, estrondaram num espetacular balido:
– Quatro pernas bom, duas pernas melhor! Quatro pernas bom, duas pernas melhor! Quatro pernas bom, duas pernas melhor!”.

“Doze vozes gritavam cheias de ódio e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco”.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A febre de Urbicanda

Schuiten, François; Peeters, Benoit. A febre de Urbicanda. Edições 70; Lisboa / Portugal; 1985.

Dados da obra:

A trama gira em torno de um pequeno objeto com hastes formando um cubo, que começa a crescer e se multiplicar, envolvendo toda uma cidade, atravessando paredes e pessoas, mudando a vida de todos. Um elemento arquitetônico se impondo e modificando o dia a dia. Este álbum integra a série em quadrinhos "As Cidades Obscuras", idealizada em 1980.

Breve relato dos autores:

François Schuiten é um quadrinista belga.
Benoit Peeters é um roteirista francês, teórico e crítico de quadrinhos.

Passagens:

"Acredite que está em jogo mais do que simetrias e alinhamentos.
Uma nova passagem gera novas brechas e exige novos controles. É um risco que não podemos assumir."

"As coisas não são assim tão claras, Thomas... O contraste, não esqueças o contraste!
Quem sabe se a arte monumental não tem necessidade de traços ligeiramente discordantes que possam valorizar os conjuntos mais amplos..."

"A única coisa a fazer é deixar as coisas acontecer normalmente. Qualquer intervenção exterior agravaria a situação... Creiam-me, os nossos problemas acabarão por se resolver. O tempo vela por tudo. Trará a solução."

"A esta mesma hora, a estrutura continua a crescer em torno desta cidade, desta casa, desta sala de onde saiu. Estabelecer laços entre astros separados entre si. Graças a mim tudo isso poderá recomeçar.
O caminho será longo e semeado de escolhas, mas sei que um dia conseguirei, e que nesse dia, poderemos verdadeiramente viver de novo."

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O poder da mensagem

Ribeiro, Hélio. O poder da mensagem. Sorvil - Distribuidora e Editora de Livros Ltda.; ~São Paulo / SP; 1976; 140 páginas.

Dados da obra:

Mensagens, textos e frases para refletir sobre o homem e a vida.

Breve relato do autor:

Hélio Ribeiro foi advogado, jornalista, publicitário, radialista e professor. Fez grande sucesso na década de 1970 na rádio Bandeirantes com o programa O Poder da Mensagem.

Passagens:

"Antes do silêncio total ainda serão necessárias muitas palavras inúteis."

"O grande sofrimento do criador: tirar tudo de um nada qualquer, e depois ser julgado por qualquer um que nem com todos os tudos do mundo seria capaz de fazer um simples quase."

"... é preciso colocar amor nas coisas que se quer fazer e procurar amar as que se devem fazer, e nunca dizer que se fará amanhã o que não se achou justo fazer hoje.
... é de caráter não dizer de ninguém na sua ausência o que não se teria coragem de dizer frente a frente.
... é preciso aprender o que é bom, venha de onde vier, e distingui-lo do mau mesmo que venha endossado por gente do mundo inteiro."

"A Ciência consegue fazer nascer uma criança em um tubo de ensaio e acha que é um grande feito. A Ciência consegue inventar uma pílula e mil métodos de manter as crianças no ventre da mãe e acha que é um grande feito. No dia em que a Ciência parar de perder tempo contrariando a inteligêngica da natureza, terá conseguido o seu maior feito. Feito?"

"Não sei o que há com a minha caneta. Cada vez que coloco um papel à sua frente e tento escrever uma poesia, imediatamente ela começa a fazer conta$.
40%
dou 30
sobra 0,5
entro com 100
faltam 40."

"Aí, o justo, aquele, desabafou:
– Não fico triste quando julgam contra mim. Quem me entristece são aqueles que julgam contra a verdade só porque são contra mim."

"E=mc2
Não é o tamanho das coisas que a gente escreve que lhes dá valor ou importância. O que importa é o conteúdo. Albert Einstein pegou um papelzinho beeemmm pequenino e escreveu: E=mc2. E mudou tudo."

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Pássaros feridos

McCullough, Colleen. Pássaros Feridos. Ed. Círculo do Livro S.A.; São Paulo / SP; 1977; 611 páginas.

Dados da obra:

Uma história de amor, de heroísmo e de baixezas. Uma epopeia familiar inspirada na poética lenda australiana de um pássaro que se crava num espinho, para nele morrer cantando. As figuras centrais são a corajosa Meggie, única mulher dos oito filhos de um casal irlandês radicado na Austrália, e o homem que ela amou por toda a vida, o padre Ralph de Bricassart.

Breve relato da autora:

Colleen McCullough é uma romancista australiana, aclamada internacionalmente pelos sucessos "Pássaros Feridos", "Tim", entre outros.

Passagens:

"Aterrorizada, Meggie observou as mãos firmes de Bob, viu a chibata descer assobiando, quase mais depressa do que a vista podia acompanhá-la, e estalar no centro das palmas dele, onde a pele era mole e tenra. Um vergão purpurino apareceu incontinenti; a lambada seguinte pegou na junção dos dedos com a palma, mais sensível ainda, e a última, na ponta dos dedos, onde o cérebro acumula mais sensações do que em qualquer outro lugar, exceto os lábios."

"Ele voltou-se a fim de olhar primeiro para a mãe, os olhos negros penetrando os olhos cor de cinza, numa escura e amarga comunhão que nunca foi expressa e nunca o seria. Desdenhoso e causticante, o olhar azul e feroz de Paddy quebrantou-o, como se fosse o que ele já esperava, e as pálpebras abaixadas de Frank reconheceram-lhe o direito de estar zangado. A partir desse dia, Paddy nunca mais dirigiu ao filho palavras que não fossem as da mais estrita civilidade. Entretanto não foi ele, foram as crianças que Frank achou mais difíceis de encarar, envergonhado e desconcertado, pássaro brilhante trazido de volta para casa sem ter explorado e conhecido o céu, as asas cortadas rente e o canto afogado no silêncio."

"O Padre Ralph não sabia exatamente por que gostava tanto de Meggie e, aliás, não perdia muito tempo pensando nisso. O sentimento começara pela piedade, naquele dia no pátio empoeirado da estação da estrada de ferro, quando a notara atrás dos outros, separada do resto da família em virude do sexo, conjeturara ele com sagacidade."

"... É possível que, se tivesse olhado mais profundamente para dentro de si mesmo, ele tivesse visto que o que sentia por ela era o curioso resultado do tempo, do lugar e da pessoa. Ninguém a julgava importante, o que significava que havia um espaço em sua vida em que ele poderia encaixar-se e ter a certeza do seu amor; ela era uma criança e, portanto, não representava perigo para o seu estilo de vida nem para a sua reputação sacerdotal; ela era bela, e ele apreciava a beleza; e, o que ele menos admitia, Meggie enchia um espaço vazio em sua vida que o seu Deus não poderia preencher, pois possuía calor e solidez humana."

"... Mas ainda sem notícias de Frank, cuja lembrança foi se esvaindo aos poucos, como fazem as lembranças, até as que vivem envoltas em muito amor; como se existisse um processo curativo inconsciente em nossa mente, que nos faz arribar, apesar da nossa desesperada determinação de nunca esquecer."

"Aquilo aconteceu tão discretamente que ninguém notou. Pois Fee se mantinha recolhida em quietude e numa falta absoluta de expressividade; a substituição foi um coisa interior; que ninguém teve tempo de ver, exceto o novo objeto do seu amor, que não fez nenhum sinal externo. Uma coisa oculta, não expressa, entre eles, para amortecer-lhes a solidão.
Talvez fosse inevitável, pois de todos os seus filhos era Stuart o único que se parecia com ela."

"Às vezes, quando ele não se sabia observado, Meggie espreitava-o e tentava desesperadamente imprimir-lhe o rosto no cérebro, lembrando-se de que, apesar do amor que dedicara a Frank, a imagem dele, o jeito dele, se toldara com o passar dos anos. Havia os olhos, o nariz, a boca, as assombrosas asas brancas no cabelo preto, o corpo longo e rijo que conservara a esbeltez e a tensão da mocidade, embora estivesse um pouco mais duro, menos elástico. E ele se voltava e a surpreendia a observá-lo com uma expressão de pesar acossado, um olhar condenado. Ela compreendeu a implícita mensagem, ou supôs havê-la compreendido; ele precisava ir, voltar à Igreja e às suas obrigações. Nunca mais com o mesmo espírito, talvez, porém mais capaz de servir. Pois só os que tropeçam e caem conhecem as vicissitudes do caminho."

"Dane ajoelhou-se, premiu os lábios no anel; por cima da cabeça inclinada, de um amarelo ouro, o olhar do Cardeal Vittorio procurou o rosto de Ralph, examinou-o com mais atenção do que o fazia habitualmente. Mas relaxou-se de maneira imperceptível, era evidente que ela nunca lhe contara. E está visto que ele jamais suspeitaria da primera coisa que acudia à mente de quem quer que os visse juntos. Não uma relação entre pai e filho, naturalmente, mas um estreito parentesco consanguíneo. Pobre Ralph! Ele nunca se vira andando, nunca observara as expressões do próprio rosto, nunca surpreendera o alçamento da sua sombrancelha esquerda. Deus era realmente bom tornando os homens tão cegos."

"– Como vamos viver sem ele?
Como realmente? Era isso viver? Eras de Deus, a Deus voltaste. O pó ao pó. A vida é para nós que falhamos. Deus cupido, juntando os bons, deixando o mundo aos outros, a nós, para apodrecer."

" ...– Dane era um homem adulto, não era uma criancinha indefesa. Eu o deixei partir, não deixei? Se me permitisse sentir o que você está sentindo, estaria aqui sentada a censurar-me e achando que devia estar num asilo para doentes mentais porque o deixei viver a própria vida. Mas não estou aqui sentada a censurar-me. Nenhum de nós é Deus, embora eu creia que tive mais oportunidade para aprendê-lo do que você."

"O pássaro com o espinho cravado no peito segue uma lei imutável; impelido por ela, não sabe o que é empalar-se, e morre cantando. No instante em que o espinho penetra não há consciência nele do morrer futuro; limita-se a cantar e canta até que não lhe sobra vida para emitir uma única nota. Mas nós, quando enfiamos os espinhos no peito, nós sabemos. Compreendemos. E assim mesmo o fazemos. Assim mesmo o fazemos."

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A história de Oliver

Segal, Erich, A história de Oliver. Círculo do Livro S.A.; São Paulo / SP; 265 páginas.

Dados da obra:

Continuação de "Love Story", o livro narra a história do jovem advogado Oliver depois da morte de sua esposa, Jenny. Desolado, ele acaba conhecendo uma bela e misteriosa mulher. O romance retoma o ciclo da vida e do amor, e toca nos elos profundos que ligam o homem e a mulher, com a mesma carga de emoção e ternura do livro anterior.

Breve relato do autor:

Erich Segal é um autor norte-americano, que foi também roteirista e educador. Ficou famoso pela novela História de Amor, que se tornou best-seller, e também pelo filme do mesmo nome, que alcançou grande sucesso na década de 1970.

Passagens:

"A morte põe fim a uma vida, mas não termina com um relacionamento que se debate na mente daquele que sobreviveu rumo a alguma decisão que talvez seja encontrada."
– Robert Anderson - I never sang for my father.

"Na última gaveta da escrivaninha lá de casa estão os óculos de Jenny. Sim. Os óculos de Jenny. Porque uma olhadela neles faz-me recordar seus encantadores olhos, que olhavam através deles para olhar através de mim."

"– Como está se sentindo?
– Muito bem – respondi, pegando a sua mão. Entretanto, tinha consciência de que meus olhos e minha voz revelavam um traço de tristeza.
– Está se sentindo... sem jeito, Oliver?
Fiz um gesto afirmativo.
– Por que se lembrou de... Jenny?
– Não – respondi. e olhei na direção do lago. – Porque não me lembrei."

"Apesar das estranhas coisas que nos cercavam, sentia-me estranhamente feliz. Se não fosse por qualquer outra razão, seria pela proximidade... de uma outra pessoa. Tinha-me esquecido do que a mera vizinhança das batidas do coração de alguém pode desperatar em nós."

"É verdade que comemos juntos, falamos juntos, rimos (e não concordamos) juntos, dormimos juntos sob o mesmo teto (isto é, no meu subsolo). Todavia, nenhum dos dois fez um arranjo. E nenhuma obrigação, certamente. Tudo acontece no dia a dia. Muito embora procuremos estar juntos o máximo que nos é possível. Acho que possuímos uma coisa que é bastante rara. Uma espécie de... amizade. E que é ainda bem mais extraordinária por não ser platônica."

"Confesso que me sinto muito só quando ela está fora da cidade. Principalmente no verão, com todos os casais de namorados passeando no parque. O telefonema é um substituto muito deficiente: tão logo a gente desliga, está com as mãos vazias."

"Freud – sim, o próprio Freud – afirmou certa vez que, diante das pequenas coisas da vida, devíamos, é claro, reagir de acordo com o nosso raciocínio. Contudo, quando se tratasse de grandes decisões, deveríamos prestar atenção ao que o nosso inconsciente nos diz."

"Volto correndo no meio da escuridão, recordando, apenas para passar o tempo. Às vezes, pergunto a mim mesmo o que eu seria se Jenny estivesse viva. E então respondo: – Também estaria vivo."

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A menina do fim da rua

Koenig, Laird. A menina do fim da rua. Círculo do Livro S.A.; São Paulo / SP; 193 páginas.

Dados da obra:

O livro conta a história de uma adolescente, Rynn, de 13 anos, que mora sozinha em uma casa alugada pelo seu pai, que é poeta, mas nunca é visto. Teria ele morrido? Alguém o matou? Se estiver morto porque Rynn finge que ele ainda está vivo? O suspense marca a obra, recheada ainda de música e poesia. Uma história de conteúdo psicológico, em que seus personagens são adolescentes revoltados contra a sociedade e imersos na fantasia.

Breve relato do autor:
Laird Koenig é um autor norte-americano, cujo romance A menina do fim da rua é seu principal sucesso. O romance foi até adaptado para o cinema em 1976, com Jodie Foster e Martin Sheen.

Passagens:

"– Eu gosto muito de poesia. – Seus longos cabelos ondularam quando sacudiu a cabeça para corrigir o que dizia.
– Isto é redundância. O verbo 'gostar' deve ficar só. A palavra 'muito' apenas o enfraquece. Amo as palavras. Muita gente não lhes dá atenção."

"– Então temos todos que esperar juntos. – Hallet deixou que se restabelecesse o silêncio. Era um daqueles silêncios totais, como uma presença que se podia quase sentir, igual à água que enche sem ruído a cisterna. Com o tempo essa espécie de silêncio pode matar."

"Com mais doçura do que ela, Mário beijou-lhe o rosto, e os olhos, um lugar que até então ela jamais pensara pudesse ser beijado. Sabia que ele sentia o gosto das lágrimas que lhe escorriam, quentes, pelos cílios cerrados, descendo pelas faces.
Rynn se alternava entre lágrisas e risos, porque, diante de tudo quanto estava acontecendo, seus sentimentos sofriam, em tão pouco tempo, uma alteração tão grande que ela não tinha nem meios nem tempo para refletir sobre a razão das coisas... tanta coisa estava acontecendo."

"O amor. No crepúsculo desse dia de novembro, sem Mário, ela não podia continuar sozinha. Não podia fazer tudo quanto tinha de fazer. Se ele jamais houvesse estado com ela, então sim, talvez pudesse, mas agora... Agora a coisa mais importante do mundo era ver Mário emergir daquela máscara cinzenta."

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Doidinho

do Rego, José Lins. Doidinho. Livraria José Olympio Editora; Rio de Janeiro / RJ; 1979; 175 páginas.

Dados da obra:

Continuação do romance "Menino de Engenho", a obra narra a vida de Carlinhos, a criança precoce que faz a sua aprendizagem das durezas da vida, começando assim a sua transição para Carlos de Melo. O pano de fundo é o colégio de Itabaiana que faz a gente reviver a maioria das impressões vividas no tempo de escola. Este romance faz parte dos livros escritos pelo autor intitulado "Ciclo da cana-de-açúcar", do qual constam, ainda, "Menino de Engenho", "Banguê". "O Moleque Ricardo" e "Usina".

Breve relato do autor:
José Lins do Rego nasceu no Rio de Janeiro e foi um escritor brasileiro que, ao lado de Graciliano Ramos e Jorge Amado, figura como um dos romancistas regionalistas mais prestigiosos da literatura nacional. Traduz-se como um contador de histórias.

Passagens:
"... Eu não sabia nada. Levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o meu corpo. Aquele Sérgio, de Raul Pompéia, entrava no internato de cabelos grandes e com a alma de anjo cheirando a virgindade. Eu não: era sabendo de tudo, adiantado nos anos, que ia atravessar as portas do meu colégio. Menino perdido, menino de engenho."
(trecho final de "Menino de Engenho", que antecipa a história de "Doidinho")

"... Olhava para Maria Luísa temendo a curiosidade ordinária do mundo. Ela também olhava para mim como se estivesse fazendo um malfeito, num relance. Não podia haver mais puro amor entre os homens. Maria Clara ainda a beijara debaixo dos cajueiros cheirosos do engenho. Um beijo só, que me deixou o coração batendo. Conversava com ela nos nossos passeios, sentia que havia carne morena na minha prima. Com Maria Luísa tudo era bem diferente. Nunca lhe dissera um palavra, nunca a ouvira chamar pelo meu nome. Amor de anjo, se os anjos amassem."

"Uma supresa espantosa deu-me nestes dias o Seu Maciel. Nunca vi um homem mudar tanto. Humanizava-se com os seus alunos em casa. Deviam ser assim na intimidade os domadores de feras. Aquela cara e aquele chicote serviam somente para os seus encontros com os tigres e os leões. O velho era bem outro, como se se tivesse libertado de uma contrafação de sua personalidade."

"Foi um choque rude para mim. Criaram-me em casa escondendo-me a tragédia de meus começos. Punham-me de longe, sem uma palavra sobre minha desgraça. Não falavam da morte de minha mãe na minha frente, não se referiam a meu pai a propósito de coisa nenhuma. Lembrava-me dele. Sentia uma pungente saudade dela. A minha memória fugia até o dia em que a vi estendida no chão e o meu pai me abraçando. Mas isto era comigo só, na intimidade das minhas recordações. Comigo ninguém nunca trocara palavras sobre estas cousas tristes. Nunca tiveram a coragem de bulir na ferida. Zé Augusto, sem querer, metera os dedos por dentro dessas chagas. Deixou-me sangrando.
– O pai de Doidinho matou a mãe dele.
Foi o mesmo que se tivesse descoberto ali, à vista de todos, a maior das vergonhas. E de repente, como se a torrente de minhas lágrimas se desencadeasse, não pude conter um choro convulso. Nem no primeiro dia de aula, quando apanhei, nem naquela surra da velha Sinhazinha, o pranto me chegou com tal desespero, que me tapava a garganta."

"Interessante este homem, a quem a função exigia uma personalidade diferente da sua própria. Recuperava dessa maneira a sua odiosa fisionomia de tirano, de cruel extirpador de vontade, de amansador impiedoso de impulsos os mais naturais. Não era possível que não sofresse com o seu desejo de se mostrar outro. Mas não; ele gostava mesmo de dar, porque os menores pretextos lhe serviam para as corrigendas de bolo. Talvez que fossem as exigências de seu método, as regras de ensinar de sua escola."

"Uma vez eu lera não sei aonde que era o amor e a nutrição que faziam os homens grandes e pequenos. De fato, na Semana Santa, por causa de um prato de feijão, ultrajara miseravelmente a meu Deus. E agora Maria Luísa, com o seu olhar e o seu sorriso para outro, me conduzia, aos treze anos, àquela infâmia com Pedro Muniz."

"9 de junho, Grande expectativa. Se não me viessem buscar?... Uma noite com a dúvida dormindo comigo. E que companheira mais incômoda para uma noite em que se ia dormir pensando na liberdade? Que sofreguidão não seria a dos presos que premeditavam fuga, os que passavam meses furando paredes grossas de cadeia para fugir! Que sonhos não teriam esses homens, sonhos compridos com o mundo, com as alegrias da liberdade! Eu não dormia. A menor preocupação cortava-me o sono. Passava horas inteiras de olhos arregalados..."

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O sol é para todos

Lee, Harper. O sol é para todos. Editora Círculo do Livro S.A.; São Paulo / SP; 317 páginas.

Dados da obra:

O tema infância e o drama do racismo, numa história de agrado geral. Com um fundo social e psicológico, o romance apresenta três crianças de uma cidade do Alabama, que vão descobrindo a vida entre lances de coragem e medo. Sua consciência é despertada e elas entram no mundo adulto, quando o pai de duas delas, advogado, defende um negro da acusação de ter violentado uma mulher branca.

Breve relato da autora:

Escritora norte-americana, Harper Lee é ganhadora do Prêmio Pulitzer em 1961 pela obra O sol é para todos. Em 2007 foi premiada com a "Medalha Presidencial da Liberdade dos EUA" por suas contribuições à literatura.

Passagens:

"Murmurei umas desculpas e calei-me, meditando sobre o meu crime. Eu nunca aprendera deliberadamente a ler, mas quem sabe se não andei olhando demais as notícias dos jornais? As longas horas passadas na igreja... será que aprendi aí? Eu sabia ler todos os hinos. Agora sendo obrigada a pensar no assunto, concluía que ler fora algo que me acontecera espontaneamente, como aprender a abotoar os fundilhos do pijama, ou dar laços nos sapatos sem olhar. Não conseguia me lembrar quando as linhas apontadas por Atticus se dividiram em palavras, mas todas as noites de que tinha lembrança eu as acompanhara ouvindo as notícias do dia, os projetos de lei, o diário de Lorenzo Dow – qualquer coisa que Atticus por acaso estivesse lendo quando eu me acomodava em seu colo à noite. Até sentir medo de perdê-la, eu não amava a leitura. Não se ama a respiração."

"– Talvez eu possa lhe explicar – retorquiu Mrs. Maudie. – Se algo pode ser dito a respeito de Atticus é que ele é um homem civilizado. Pontaria certeira é um dom de Deus, um talento natural... Certo, é preciso praticar para aperfeiçoá-la, mas atirar é diferente de tocar piano e coisas assim. Acho que ele desistiu de atirar quando compreendeu que Deus lhe concedera uma vantagem desleal sobre os outros seres vivos. Ele deve ter decidido só usar uma arma quando fosse necessário, e foi o que aconteceu hoje."

"... – Era, sim. Tinhas suas próprias opiniões, talvez muito diferentes das minhas... Filho, eu disse que, se você não tivesse perdido a cabeça, eu teria lhe pedido para ler para ela, mesmo assim, não foi? É que eu queria que você aprendesse uma coisa com ela... Eu queria que você visse o que é realmente coragem, em vez de pensar que coragem é um homeme com uma arma na mão. Coragem é quando você sabe que está derrotado antes mesmo de começar, mas começa assim mesmo, e vai até o fim, apesar de tudo. Raramente a gente vence, mas isso pode até acontecer. Mrs. Dubose venceu, com seus oitenta e oito anos. Segundo suas convicções, morreu sem estar presa a nada e a ninguém. Ela era a pessoa mais corajosa que eu já conheci."

"Ele ainda estava encostado na parede. Quando eu entrara no quarto estava com os braços cruzados à altura do peito, mas quando apontei ele baixou os braços e pressionou a parede com as palmas das mãos. Essas eram brancas, mas de uma brancura doentia de quem nunca via o sol, tão brancas que pareciam fantasmagóricas contra a parede creme, à luz fraca do quarto de Jem. Das suas mãos, meus olhos passaram às suas calças cáqui, sujas de terra, e subiram pelo talhe fino até a camisa rasgada. Seu rosto era tão branco quando as mãos, a não ser por uma mancha no queixo saliente. As faces eram tão magras a ponto de serem quase cadavéricas, a boca era larga, as têmporas tinham delicadas reentrâncias e seus olhos cinzentos eram tão claros que pensei que ele fosse cego. Os cabelos eram sem vida e muito finos, quase uma penugem no topo de sua cabeça. Quando apontei para ele, suas palmas escorregaram na superfície da parede, deixando marcas de umidade, e ele enfiou os polegares no cinto. Um pequeno e insólito espasmo sacudiu-o como se ele tivesse ouvido um giz arranhar uma lousa, mas, enquanto eu o fitava admirada, a tensão deixou subitamente o seu rosto. Seus lábios separaram-se num tímido sorriso e a imagem do nosso vizinho enevoou-se com minhas súbitas lágrimas.
– Olá, Boo – disse eu."

"Chegamos ao posto da esquina e pensei nas vezes em que Dill estivera ali, abraçado ao posto, espiando, esperando, sonhando, e nas vezes em que Jem e eu tínhamos passado por ali. Pela segunda vez em minha vida, entrei pelo portão dos Radley. Boo e eu subimos os degraus da varanda e seus dedos encontraram a maçaneta. Gentilmente ele soltou a minha mão, abriu a porta, entrou e fechou a porta atrás de si. Nunca mais tornei a vê-lo."

"Os vizinhos trazem flores nas mortes, comida nas doenças e pequenas oferendas nos intervalos. Boo era nosso vizinho. Ele deu-nos dois bonecos, um relógio quebrado e uma corrente, um par de moedas da sorte, e nossas vidas. Mas vizinhos também retribuem as dádivas. Nós nunca colocamos de volta naquela árvore o que tiramos dela: nunca tínhamos lhe dado nada, e isso me deixou triste."

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Cabocla

Couto, Ribeiro. Cabocla. Edições de Ouro; Rio de Janeiro, RJ; 230 páginas.


Dados da obra:


Cabocla exterioriza os sentimentos do homem que, ao contato com a natureza e a vida simples do campo, descobre a felicidade. É a situação de Jerônimo, o estudante que é enviado à Vila da Mata, o lugarejo onde descobre um novo e feliz universo, encontrando o amor na bela morena Zuca, até que se descobre doente e com poucas chances de vida.

Breve relato do autor:

Ribeiro Couto foi jornalista, magistrado, diplomata, poeta, contista e romancista brasileiro. Nasceu em Santos (SP) e foi membro da Academia Brasileira de Letras.

Passagens:

"Ali estava a rivalidade de lugarejos de que eu tanto ouvira falar. A paz dos campos, de idílica poesia, não era mais do que aparência: no segredo das almas o ciúme e a inveja, minavam as criaturas. Num repente, senti o desejo de tornar-me o grande homem de Pau d´Alho. Seria eu o criador de uma cidade. Seria eu o Verbo, a Ação. Dentro de dez anos, em torno daquela estação melancólica, haveria uma larga praça rodeada de prédios novos, ruas, trânsito, povo. A praça chamar-se-ia: Praça Jerônimo Vieira Pires. E eu seria, como o primo Boanerges em Vila da Mata, presidente da Câmara Municipal de Pau d´Alho."

"Eu ia agradecer a Siá Bina as boas palavras, quando surgiu na cozinha num vestido de chita vermelha, uma espécie de Nossa Senhora morena, com um rostinho redomdo em que tudo era gracioso: o queixo, a boca, o nariz. Apenas a fronte era larga, por cima de uns olhos pretos de expressão austera, parecia que aqueles olhos não sorriam nunca."

"Papai, que mundo inédito de criaturas e de coisas! Eu pensava que o Brasil, em suma, fosse o Rio, e afinal não é. O Brasil é muito mais complicado do que a gente pensa aí na Avenida Rio Branco. A cidadezinha quieta, a vilazinha de aparência morta, que o mundo oculto de agitações, ciúmes, ambições, heroísmos, conformações! Nos poucos dias que passei em Vila da Mata, meus olhos se abriram a um aspecto completamente novo da vida. Papai, eu descobri a província."

"O secreto ídílio era quase inocente. Se prima Emerenciana me visse arrastar-me, como um lagarto, até o quarto de Zuca, diria que eu a perdera. Entretanto, o mal não passava de ficarmos abraçados, as bocas unidas num beijo sem fim. A ternura com que ela se abandonava à minha boca não lhe quebrava a castidade. Pareceia-me natural que assim sucedesse: seus seios contra o meu peito, as bocas presas, nosso calor confundido sem que um institinto mais violento rompesse a perfeição do contato. Tão poderoso quanto o meu desejo contido era o respeito que me impunha a sua pureza inviolada."

"Enfim,a hemoptise veio. Senti um calor úmido na boca, qualquer coisa como um gole de vinho quente, esquecido na garganta; quando me debrucei para cuspir, o sangue vivo atingiu a porcelana do vaso. Zuca vinha entrando com o minguau. Pôs o prato em cima da mesa e correu para mim, franziu a testa numa disposição de energia; tomou-me o vaso da mão, para que eu não fizesse esforço; e amparou-me a cabeça com o travesseiro ergido.
– Não é nada – murmurou num fio de voz.
Nos seus olhos negros havia tanto amor!"

"– Se você não voltasse nós morríamos. Senti um deslumbramento. Nós? Fez que sim com a cabeça. Não dissera nada a ninguém: confiara. Só o que fizera fora uma promessa a Nossa Senhora. Tivera confiança no meu bem-querer. Eu havia de voltar por ato espontâneo, por saudade, por ver que não podia esquecê-la. Não fora melhor assim? Para quê me escrever que ia ter um filho? Se eu não voltasse, então morreria: morreria de pena, definhando, calada. De que adiantava contar?"