sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A sangue frio

Capote, Truman. A Sangue Frio. Editor Victor Civita; São Paulo / SP; 1975; 416 páginas.

Dados da obra:

Publicado em 1966, A Sangue Frio é a história real do brutal assassinato de uma família na cidade de Holcomb, localizada no interior do estado do Kansas, nos EUA, da ideia inicial do crime até a execução dos assassinos. O livro é um marco no jornalismo literário. Para escrevê-lo, Capote mergulhou fundo na história e conviveu com os assassinos, conseguindo extrair destes a confissão do crime.

Breve relato do autor:

Truman Streckfus Persons, mais conhecido como Truman Capote foi um escritor norte-americano e pioneiro do jornalismo literário.

Passagens:

“Nomes assinalados a tinta povoavam o mapa. Cozumel, uma ilha na costa do Iucatã, onde, conforme lera numa revista para homens, as pessoas poderiam ‘tirar a roupa, rir descansadas, viver como um marajá e ter todas as mulheres que quisessem com apenas cinquenta dólares por mês!’ ... Acapulco significava pescaria em alto-mar, cassinos, mulheres ricas e nervosas; Sierra Madre era ouro e outro era O Tesouro de Sierra Madre, filme que já vira oito vezes.”

“...Estudando outras fotografias do local do crime, Dewey descobria outros detalhes que pareciam apoiar sua teoria do assassino ocasionalmente levado por impulsos de consideração. ‘Ou’, quase nunca conseguia a palavra desejada, ‘cheio de cuidados’. Aquelas cobertas. Que tipo de pessoa faria isso: amarrar duas mulheres, como Bonnie e a menina foram amarradas, e então erguer as cobertas, aconchegá-las dentro delas, quase como a desejar uma boa noite e que dormissem bem? Ou o travesseiro debaixo da cabeça de Kenyon... Primeiro pensei que o travesseiro tivesse sido colocado para fazer da cabeça um alvo melhor. Agora acho que não, foi pelo mesmo motivo que puseram a caixa no chão: para dar mais conforto às vítimas.”

“Nossa, que frio! Papai e eu dormíamos abraçados, envoltos em cobertores e peles de urso. Antes que o sol raiasse, de manhã, eu arrumava café, biscoitos e mel, carne frita. Depois a gente ia cavar a vida. Teria sido bom, se eu não tivesse crescido. Quanto mais velho ficava, menos apreciava papai. Sabia tudo, por um lado, mas por outro não sabia nada. Papai não sabia nada de uma porção de coisas a meu respeito. Não compreendia um til. Como eu consegui tocar logo da primeira vez que peguei numa gaita. E guitarra também. Eu tinha um jeito enorme para música. Papai não reconhecia isso. Nem se importava. Eu gostava de ler. Melhorar meu vocabulário. Compunha canções...”

“... Dissera que tinha medo de Perry, e tinha: mas seria de Perry apenas ou seria de uma configuração de que ele era apenas parte no destino terrível que coubera aos quatro filhos de Florence Buckskin e Tex John Smith? O mais velho – o irmão que amara – matara-se com um tiro. Fern caíra, ou se jogara, de uma janela. E Perry entregara-se à violência: um criminoso. Portanto, num certo sentido, era ela a única sobrevivente e o que a atormentava era pensar que, com o tempo, ela, também, seria arrastada: enlouqueceria, contrairia uma doença incurável, ou perderia tudo que amava num incêndio: lar, marido, filhos”.

“... Até a morte de Nancy não apreciara Sue, nunca se sentira à vontade com ela. Ela era diferente – levava a sério mesmo coisas que as moças não deveriam levar a sério: pintura, poemas, a música que tocava no piano. E, é claro, tinha ciúmes dela; sua posição, no conceito de Nancy, embora fosse de outro tipo, havia sido idêntica à dele, no mínimo. Mas por isso mesmo ela compreendia sua perda. Sem Sue, sem a sua presença quase constante, como poderia ter suportado aquela avalancha de choques – o crime, suas entrevistas com o Sr. Dewey, a ironia patética de ser o principal suspeito?
Depois de um mês, a amizade esfriou. Bobby passou a frequentar menos a pequena e acolhedora sala de visitas dos Kidwell e, quando ia, Sue não parecia tão acolhedora. O mal estava em que ambos se esforçavam a lamentar e lembrar aquilo que, na realidade, queriam esquecer...”

“...O potencial assassino pode ser ativado, especialmente se algum desequilíbrio já se encontra presente, quando a futura vítima é inconscientemente percebida como figura-chave de alguma configuração traumática de seu passado. O comportamento, ou mesmo a simples presença desta figura, acrescenta uma tensão ao equilíbrio de forças que resulta numa súbita e extrema descarga de violência, semelhante à explosão de uma espoleta numa carga de dinamite...”

“...Três dos assassinatos de Smith, obviamente, foram motivados pela lógica: Nancy, Kenyon e a mãe deles tinham de ser mortos porque o Sr. Clutter fora morto. Mas o Dr. Satten argumenta que, do ponto de vista psicológico, só o primeiro assassinato conta, e que, quando Smith atacou o Sr. Clutter, estava em ‘eclipse mental’, dentro de uma profunda escuridão esquizofrênica, pois não era um homem de carne e osso que ‘se descobrira subitamente destruindo’, mas uma ‘figura-chave em alguma configuração dramática em seu passado’: o pai?, as freiras no orfanato que o ridicularizavam e surravam? O sargento tão odiado? O encarregado do livramento condicional que lhe dera ordens de ‘não aparecer no Kansas?’ Um deles, ou todos eles”.

“Na confissão, Smith dissera: ‘Não queria fazer mal. Me parecia um cavalheiro muito distinto. De fala macia. Até a hora de cortar o pescoço dele eu achava isso’. Ou então para o amigo Don Cullivan: ‘Não foi nada que os Clutter tivessem feito. Nunca me fizeram nada. Como os outros fizeram. Como fizeram comigo a vida inteira. Vai ver os Clutter é que tinham de pagar por tudo’.”

“– Mas pra idade dele nunca conheci ninguém tão inteligente. Uma verdadeira enciclopédia ambulante. Quando aquele menino lia um livro era pra valer. Claro que não sabia nada da vida. Eu sou um cara ignorante, menos no que diz respeito à vida. Já andei em cada rua que não era brincadeira não. Já vi homem branco ser açoitado. Vi criança nascer. Vi uma garota com menos de catorze anos ir pra cama com três caras ao mesmo tempo e merecer o dinheiro tirado deles todos. Uma vez caí de um navio a cinco milhas da costa: nadei cinco milhas vendo minha vida passar diante de mim a cada braçada. Uma vez apertei a mão do Presidente Truman no saguão do Hotel Muehlebach. Harry S. Truman. Quando trabalhava pro hospital dirigindo ambulância, vi todos os lados da vida – coisas de fazer um cachorro vomitar. Mas Andy? Não sabia nada: a não ser o que lia nos livros.”

“Passo, laço, máscaras. Mas antes de lhe ajeitarem a máscara, o prisioneiro cuspiu fora o chiclete na mão estendida do capelão. Dewey fechou os olhos. Manteve-os fechados até que ouviu o baque surdo anunciando um pescoço quebrado por corda. Como a maior parte dos agentes da lei dos Estados Unidos, Dewey tem certeza de que a pena de morte é um meio de intimidação ao crime violento. A execução anterior não o perturbara, pois nunca dera muita importância a Hickock, que lhe parecia apenas ‘um ladrãozinho ordinário’ que saíra da sua categoria, vazio, não valia nada. Mas Smith, embora fosse o verdadeiro assassino, despertava outra espécie de reação, pois Perry possuía a aura do animal ferido, da criatura exilada que o detetive não podia menosprezar. Lembrou-se do primeiro encontro com Perry, na sala de interrogatórios em Las Vegas: o menino-homem, quase anão, sentado na cadeira de metal, os pés em botas mal tocando no solo.
E foi o que viu, quando abriu de novo os olhos: os mesmos pés infantis, tortos, balançando.”

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