sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Blecaute

Paiva, Marcelo Rubens. Blecaute. Editora Brasiliense; São Paulo / SP; 1990; 208 páginas.
Dados da obra:

O enredo se passa em São Paulo, onde dois rapazes e uma garota, de volta de uma expedição que fizeram a uma caverna do Vale do Ribeira, percebem a cidade deserta, ou melhor, com pessoas, mas estas se encontram duras, como que cobertas por uma capa plástica. Cada uma parada conforme a atividade que estivesse executando no momento em que aconteceu essa espécie de “blecaute”, paralisando tudo, para sempre. Sozinhos em meio a uma São Paulo caótica, os três personagens – Rindu (narrador), Martina e Mário – tentam sobreviver, buscando entender o que aconteceu à cidade e descobrindo que a situação se estendia ainda a outras regiões do estado, do país, do mundo.

Breve relato do autor:

Marcelo Rubens Paiva é um escritor, autor teatral e jornalista brasileiro. Aos 20 anos de idade , sofreu um acidente que o deixou tetraplégico. Hoje, com muita fisioterapia, voltou a locomover as mãos e os braços.

Passagens:

“Não fico mais aflito por saber que nada sei. O que é? De quê? De onde veio? Para onde? São perguntas cujas respostas não me interessam. O tempo não precisa ser medido; essa frase tem ficado muito tempo na minha cabeça. Não existe diferença entre verdade e mentira, nem a possibilidade de encontrar o bem e o mal; não sei por que catso comecei a pensar nisso. Não fico alegre, nem triste. Há muito não dou uma risada, nem choro. As palavras não significam nada. Meu corpo se curvou para a frente, cansado, desiludido. Não consigo entender nada. E isso não me comove mais. Os homens fizeram a sua própria história, mas não imaginaram onde iriam desembocar.”

“No princípio, o Céu e a Terra eram fenômenos divinos; e só. Em seguida, a Razão, a Ciência encontrou teorias que os definissem. A luta da humanidade era explicar o inexplicável. Hoje... meu corpo se curvou para a frente, cansado, desiludido. Dane-se! Me lembro de uma música que falava ‘tudo, tudo, tudo vai dar certo...’ e acho engraçado. Nada deu certo. Já me falaram de uma nova Era. Já me falaram do universo em expansão. Mas nada deu certo. Nada.
Começou há muito tempo. Sei lá, há uma porrada de tempo.”

“Era estranho andar por São Paulo à noite, sem nenhum teatro ou cinema ou restaurante ou bar ou uma porra qualquer para ir. Era estranho não ver os milhares de carros levando casais a um programa misterioso, não ver uma garota expondo o corpo numa pista de dança qualquer. Onde estavam os mistérios de uma esquina mal iluminada, o beco sem saída, o mendigo tropeçando nos próprios calcanhares de bêbado, o balcão de bar, o travesti de bunda de fora, o chofer de táxi sonolento, o adolescente fumando nervoso? Onde estavam as peregrinações da vida e da morte? Onde estava a noite?”

“O roubo do cotidiano dos outros virou rotina. Entramos em milhares de filmes, peças e shows atrás de figuras anônimas. Vários vernissages, exposições, festas sem despertarmos a menor suspeita. Era como se não tivéssemos personalidade, gosto ou objetivo. Entregávamos uma noite inteira aos outros. A regra era: escolhido o carro, teríamos de segui-lo sem objeções. Doce sabor de não ter destino...”

“Faça um pedido. Qualquer um. O que a madame quer explodir? É só acender o pavio e bum. Vamos, escolha, vai te fazer bem.
Ela relutou no começo. Mas ficou pensando, pensando, até seus olhos adquirirem outro brilho. Abriu um largo sorriso e perguntou maliciosamente:
– Posso destruir o que quiser?
– Claro. É só escolher – Mário respondeu.
Ela exagerou. Foi longe demais.
– Quero derrubar a antena da Rede Globo na Avenida Paulista.”

“Quando recuperei um pouco as forças, passei o dia limpando a casa, na medida do possível; quase tudo fora destruído. Instalei outra TV e outro aparelho de vídeo. Joguei fora os móveis quebrados. Varri todo o chão. Uma vez, prometi nunca abandonar Mário. Uma vez, senti muito medo de perdê-lo, senti medo de ele morrer. ‘Estragou tudo, eu e você’, ele me disse. Enchi o gerador elétrico com óleo diesel. O blecaute iria chegar, com certeza.
Á noite, fumei um no terraço olhando para o vazio. A cidade estava silenciosa. Vazia. Mário fora embora e eu percebi que estava com medo. E se ele nunca mais voltar? E se ele morrer? Mario estava indo embora e eu ali, olhando para o vazio... Maldito vazio!”

“Uma placa totalmente enferrujada indicava São Paulo a poucos quilômetros. Não me emocionei. Não senti nada. Há tanto tempo sozinho, pulando de cidade em cidade. Congelei qualquer tipo de sentimento. A história da minha vida? Ah, isso faz muito tempo... Por que voltava depois de tantos anos? Sei lá? Acelerei a motocicleta no viaduto de entrada. Foi nesta cidade que tive o contato com o fim. Foi nesta cidade que para mim tudo começou. A terra que cobria o asfalto era um pouco perigosa. Mas não me importava. Há muito não me importava com nada. Talvez tivesse voltado por causa dela. Martina. Ainda estaria viva? Sozinha todos esses anos... Há muito não via um rosto humano vivo. Há muito não ouvia uma palavra. Ainda estaria viva? Nova Iorque, Washington, Los Angeles, México, ninguém, ninguém. Sozinho esse tempo todo. Sei lá.”