segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A Trégua

Benedetti, Mario. A Trégua. Editora Brasiliense. São Paulo / SP; 1989; 132 páginas.

Dados da obra:

Mais famoso romance de Mario Benedetti, A Trégua foi publicada em 1960. Escrito em formato maduro, prestes a completar 50 anos, viúvo há mais de 20, com os três filhos. No diário, conta os dias que faltam para a aposentadoria, até que seu destino muda quando conhece Laura Avellaneda, uma jovem discreta e tímida contratada para ser sua subalterna.

Breve relato do autor:

Mario Benedetti foi um poeta, escritor e ensaísta uruguaio, tendo iniciado a carreira literária em 1949, mas só ficou famoso em 1956, ao publicar "Poemas de Oficina", uma de suas obras mais conhecidas. Benedetti escreveu mais de 80 livros de poesia, romances, contos e ensaios, assim como roteiros para cinema.

Passagens:

“Eu próprio fabriquei minha rotina, mas pela via mais simples: a da acumulação. A segurança de saber-me capaz de algo melhor colocou-me nas mãos o adiamento, que no fim das contas é uma arma terrível e suicida. Daí que minha rotina nunca haja adquirido caráter ou definição; sempre foi provisória, sempre constitui-se em rumo precário, continuando apenas o suficiente para suportar o dever da jornada durante esse período de preparação que ao que parece eu considerava imprescindível, antes de lançar-me definitivamente a assumir meu destino. Que tolice, não?”

“... Mas o tempo corre, deixemos ou não, o tempo corre e torna-a a cada dia mais atraente, mais madura, mais suave, mais mulher; a mim, em troca, ameaça tornar-me a cada dia mais indisposto, mais desgastado, menos valente, menos vital. Temos que nos apressar para o encontro, porque em nosso caso o futuro é um inevitável desencontro. Todos os seus ‘mais’ correspondem aos meus ‘menos’. Compreendo que para uma mulher jovem pode ser atraente saber que a gente é alguém que viveu, que há muito trocou a inocência pela experiência, que pensa com a cabeça bem colocada sobre os ombros. É possível que isso seja atraente mas é efêmero. Porque a experiência é boa quando vem de mãos dadas com o vigor; depois, quando o vigor se esvai, a gente passa a ser uma peça decorativa de museu, cujo único valor é ser uma lembrança do que já se foi. A experiência e o vigor são coetâneos por muito pouco tempo. Eu estou agora nesse pouco tempo. Mas não é uma sorte invejável.”

“... Nos escritórios não há amigos, há pessoas que se veem todos os dias, que sofrem juntas ou separadas, que brincam e se divertem, que trocam suas queixas e transmitem seus rancores, que resmungam sobre a Diretoria em geral e adulam cada diretor em particular. Isso se chama convivência, mas somente por ilusão se pode achar que convivência se parece com amizade.”

“... Na segunda parte do meu festim entram os jornais. Há dias em que compro todos. Gosto de reconhecer suas tendências. O estilo de saltos sintáticos nos editoriais do El Debate; a civilizada hipocrisia do El País; a maçaroca informativa do El Dia, interrompida apenas por um outro aceno anticlerical; a robusta compleição de Le Mañana, pecuarista como ele só. Tão diferentes e tão iguais! Jogam entre eles uma espécie de truco, enganando-se uns aos outros, trocando sinais, trocando de par. Mas servem-se do mesmo porrete, todos alimentam-se da mesma mentira. E nós lemos, e a partir dessa leitura acreditamos, votamos, discutimos, perdemos a memória, esquecemos generosa, cretinamente de que hoje dizem o contrário de ontem, que hoje defendem ardorosamente aquele de quem ontem falaram cobras e lagartos, e, o pior de tudo: que hoje esse mesmo Aquele aceita, orgulhoso e arrogante, essa defesa.”

“É evidente que Deus concedeu-me um destino obscuro. Nem mesmo cruel. Simplesmente obscuro. É evidente que me concedeu uma trégua. No começo, resisti a achar que aquilo pudesse ser a felicidade. Resisti com todas minhas forças, depois dei-me por vencido e acreditei. Mas não era a felicidade, era apenas uma trégua. Agora estou outra vez metido em meu destino. E é mais obscuro do que antes, muito mais.”

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Livros - Ilha Deserta

Vários. Livros - Ilha Deserta. PubliFolha. São Paulo / SP; 2003; 187 páginas.

Dados da obra:

Sete autores, cada um com direito a dez livros. Uma biblioteca e tanto para a ilha deserta - mais um epílogo, sobre o maior de todos os náufragos: Robinson Crusoé

Autores:

Bernardo Ajzenberg, Carlos Heitor Cony, Contardo Calligaris, Manuel da Costa Pinto, Maria Rita Kehl, Moacyr Scliar, Nina Horta e Nuno Ramos.

Passagens:

"Há quem não consiga escovar os dentes sem antes estourar um cravo ou uma espinha do rosto. Há quem fume seu cigarro, infalivelmente, depois de um cafezinho. Como todo mundo, também acumulo pequenos vícios de tipo semelhante. Mas aqui cabe destacar um outro, de gênero diferente: antes de dormir, mesmo se fiquei horas absorvido por outra leitura, dou sempre uma espiadela na Recherche..., uma página qualquer, por sorteio. Às vezes, duas frases bastam: às vezes, uma. É a minha forma de oração." (Bernardo Ajzenberg)

"Só as crianças acreditam na existência das ilhas desertas. Uma ilha inteira à disposição. Desabitada, sem adultos. Sem inverno, sem mosquitos. Entre o mar e o mato, com água fresca abundante, frutas acessíveis, abrigo contra as intempéries. Tendo a sobrevivência garantida, o resto é pura aventura. Liberdade e aventura. E todo o tempo do mundo para ler e reler os mesmos livros adorados." (Maria Rita Kehl)

"Tudo começava na volta das férias. Como era triste o dia de volta das férias. O enfrentamento com a realidade sem fantasias da vida em família e da vida escolar. Só Monteiro Lobato podia me salvar da melancolia da volta para casa depois de um mês no mar ou no mato, um mês inteiro em que a vida era outra e me permitia inventar-me, dia a dia, como personagem de minha literatura particular." (Maria Rita Kehl)

"Loucura, solidão, difícil sobrevivência: estes são os elementos da síndrome da ilha deserta. Por isso adquire especial significação a clássica pergunta: que livros a gente levaria para uma ilha deserta? Esses livros não serão simples entretenimento: na ilha deserta eles se tornam a condição de nossa sobrevivência espiritual." (Moacyr Scliar)

"Kafka não perde tempo com isso; aliás, síntese é sua marca registrada. O viajante comercial Gregor Samsa transformou-se em inseto, e pronto. E agora? O que vai acontecer?
O que acontece é o objeto dessa sombria narrativa. Gregor Samsa (notar a semelhança desse sobrenome com 'Kafka') vive com a família, mas não recebe desta o menor apoio; ao contrário, tratam-no com hostilidade, e é com alívio que o vêem morrer. Ao final chegamos a uma dolorosa conclusão para aqueleas pessoas, Samsa já era um inseto, insignificante e repulsivo como um inseto. Kafka não está falando de baratas gigantes. Está falando da condição humana." (Moacyr Scliar)