quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Se um Viajante...

Calvino, Ítalo. Se um Viajante numa Noite de Inverno. Círculo do Livro; São Paulo/SP; 1979; 246 páginas.

Dados da obra:

A trama começa com o Leitor, personagem principal, comprando e começando a ler Se um Viajante numa Noite de Inverno, que se inicia numa estação ferroviária enfumaçada, mas à medida que avança na leitura, ela se interrompe por um erro de encadernação no livro, que repete até o fim as mesmas páginas iniciais. O Leitor volta à livraria, adquire um novo exemplar, mas este narra outra história, diferente da outra, e também apresenta problemas de encadernação. Na busca pelo livro completo ele conhece uma Leitora.

Breve relato do autor:

Italo Calvino foi um dos mais importantes escritores italianos do século XX. Nascido em Cuba, de pais italianos, sua família retornou à Itália logo após seu nascimento. Uma de suas obras mais conhecidas é Le città invisibili (As cidades invisíveis), de 1972, tendo como personagens Marco Polo e Kublai Khan.

Passagens:

“Você revira o livro nas mãos, percorre o texto da orelha, da contracapa. São aquelas frases gerais que não dizem grande coisa. Melhor isso que um discurso que viesse a substituir indiscretamente aquele que o livro deve lhe comunicar diretamente, e que você mesmo deveria deduzir, rico ou pobre. É verdade que essa maneira de girar em torno do livro, de ler em torno antes de ler dentro, também faz parte do prazer da novidade. Mas, como todo prazer preliminar, este deve respeitar uma duração ótima, se se quer que ele desemboque em um prazer mais consistente: a consumação do ato, ou a leitura do livro.”

“... Inútil olhar para o relógio: se alguém viesse me esperar, já teria ido embora há muito tempo: inútil obstinar-me estupidamente em querer fazer os relógios e os calendários voltarem atrás, na esperança de me encontrar no momento anterior àquele em que ocorreu alguma coisa que não deveria ter acontecido jamais.”

“– Cada quarta-feira a senhorita perfumada me dá uma nota de cem coroas para que eu a deixe só com o prisioneiro. Na quinta-feira, as cem coroas se vão em cerveja. Quando a hora da visita acaba, a senhorita sai com seus trajes elegantes fedendo a prisão e o detento volta à cela com sua roupa de presidiário perfumada. A mim me sobra o cheiro da cerveja. A vida não é mais que uma troca de cheiros.
– A vida, você pode dizer, e também a morte – interveio outro bêbado, que é coveiro de profissão, como logo fiquei sabendo. – Para mim o cheiro da cerveja serve para tentar me tirar o cheiro da morte. No seu caso, só o cheiro da morte é que vai livrá-lo do cheiro da cerveja, como acontece com todos os bêbados de quem tenho de cavar a cova.”

“Escutar alguém que lê em voz alta não é a mesma coisa que ler em silêncio. Quando você lê, pode se deter ou sobrevoar as frases: você decide o ritmo. Quando é outro quem lê, é difícil fazer coincidir sua atenção com o tempo da leitura: a voz segue demasiado depressa ou demasiado lentamente.”

“... ler é ir ao encontro de uma coisa que vai existir mas que ninguém ainda sabe o que será...”

“– Ei, não se brinca com uma arma! – digo eu.
E avanço a mão. Mas ela aponta o revólver em minha direção.
– Por que não? Vocês, sim, e as mulheres, não? A verdadeira revolução começará no dia em que as armas estiverem nas mãos das mulheres.
– E quando os homens estiverem desarmados? Isso lhe parece justo, camarada? Mulheres armadas, para fazer o quê?
– Para tomarem o lugar de vocês. Nós em cima, e vocês embaixo. Para que possam experimentar um pouco o que se sente quando se é uma mulher...”

“– Há uma linha que separa, de um lado, os que fazem livros, de outro, os que leem. Quero continuar a fazer parte daqueles que leem, e por isso presto muita atenção para me manter sempre deste lado da linha. Senão, o prazer desinteressado de ler já não existe, ou se transforma em outra coisa, que não é o que quero. É uma fronteira imprecisa, que tende a desaparecer: o mundo daqueles que têm relação profissional com os livros está cada vez mais povoado, e tende a se identificar com o mundo dos leitores. Evidentemente, os leitores também são cada vez mais numerosos, mas pode-se dizer que o número daqueles que utilizam os livros para produzir outros livros cresce definitivamente mais depressa que o número daqueles que gostam dos livros para ler. Sei que se eu transpuser o limite, mesmo acidentalmente, corro o risco de perder-me nessa maré que sobe; conclusão: recuso-me a por, mesmo por alguns minutos, os pés numa editora.”

“Ele se enganava: a organização da frase era, definitivamente, uma responsabilidade que lhe cabia; incumbia-lhe controlar a coerência interna da língua escrita, da gramática e da sintaxe, para aí acolher a fluidez de um pensamento que escoa fora de toda língua antes de se fazer palavra, ainda mais o de uma palavra extremamente fluida como a do Profeta. A partir do momento em que decidira exprimir-se por escrito, Alá necessitara da colaboração do escriba. Maomé o sabia, e deixava ao escriba o privilégio de terminar suas frases; contudo, Abdullah não tinha consciência do poder de que estava investido. Perdeu a fé em Alá porque lhe faltava a fé na escrita e a fé em si mesmo como operador da escrita.”

“Você aperta o cinto de segurança. O avião vai aterrissar. Voar é exatamente o contrário de viajar: o que você transpõe é uma descontinuidade, um espaço rompido, você desaparece no vazio, aceita não estar em nenhum lugar, durante um tempo que forma ele próprio uma espécie de vazio no tempo; logo reaparece num lugar e num momento sem relação com o lugar e o momento em que tinha desaparecido. Durante esse tempo, o que faz? Como ocupa sua ausência do mundo e a ausência do mundo em você? Lê; de um aeroporto a outro, não desgruda seus olhos de um livro; porque, para além da página, está o vazio, o anonimato das escalas aéreas, desse útero de metal que o contém e o nutre, da multidão passageira sempre diferente e sempre igual.”

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