quinta-feira, 28 de julho de 2011

Uma Duas

Brum, Eliane. Uma Duas. Editora Leya; São Paulo / SP; 2011; 175 páginas.

Dados da obra:
Uma Duas é o primeiro livro de ficção da Eliane Brum e narra a complicada relação entre mãe e filha, os laços que as unem – e separam, o conflito de sentimentos que vão do amor ao ódio e vice-versa.

Breve relato do autor:

Eliane Brum é jornalista e escritora, conhecida por escrever – com emoção – histórias da vida real (reportagens), destacando personagens comuns. Autora também de A vida que ninguém vê e O olho da rua.
Passagens:

“Foi a primeira vez que senti pena da minha mãe. Eu não sei o que ela ouviu na escola, mas à noite a escutei chorando. Eu não sabia que minha mãe podia chorar. Onde ela tinha guardado as lágrimas por aqueles anos todos? Eu achava que todas as pessoas tinham uma bolsa de lágrimas na barriga. Porque meu choro sempre começava na barriga e só depois alcançava os olhos. Eu pensava que minha mãe tinha nascido sem essa bolsa e por isso não chorava.”

“Tinham me contado que os escritores eram uma espécie de deuses. Eles criavam um mundo em que podiam viver e escapavam deste pela porta dos fundos. Me preparei a vida inteira para ser Deus. E só o que faço agora é desinventar a mim mesma. Acho que é isso. A realidade é uma ficção. E ao escrever vou quebrando essa criança esculpida com amor e desespero. É o contrário. É preciso destruir a forma humana que está ali para alcançar a pedra.”

“Desta vez , vai ter de assumir. Vai ter de me matar ou não na sua narrativa. Se me matar, vai saber que a minha voz está ali, em algum lugar, ainda que ninguém saiba e que você queime o caderno. Sim, porque eu só sei escrever a mão. E acho que há mais coragem em escrever a mão, sopesando cada letra, que exige esforço e não aparece e desaparece numa tela como se as palavras pudessem simplesmente surgir ou simplesmente ser eliminadas sem que se pague um preço por isso. Seu pai mal sabia escrever, não se iluda. Seu talento você herdou de mim.”

“O dicionário era proibido para mim. Meu pai achava o dicionário altamente perigoso. E tudo o que era perigoso deveria ser eliminado. Ou pelo menos controlado de perto. Você é uma menina inteligente, Maria Lúcia. Puxou a mim. Você acha que tem idade para ter acesso a todas as palavras do mundo? E ele arredondava este toooodas com sua voz de barítono. Não, eu não achava. Mas deste dia em diante passei a sentir a presença do dicionário como uma terceira pessoa naquela casa sem visitas.”

“E você, o que faz, já que estamos falando disso? Sou jornalista. Ou era. Cuido de minha mãe agora. E tento escrever um livro. Pronto. Falei demais. De novo. Um livro? E sobre o que é seu livro? Eu não sei. Estou escrevendo e só. Ou tentando escrever. Sempre achei que deveria escrever um livro um dia, que tinha algo a dizer. Mas agora que comecei tenho dúvidas. Dúvidas? Ele parece um psicanalista. Será que vai ficar pontuando minha última palavra a cada frase? Sim, dúvidas. Acho que não tenho nada a dizer que já não tenha sido dito. E descobri que nem escrevo tão bem assim. Não sou capaz de inventar nada novo, entende. Harry Potter, por exemplo, a J. K. Rowling inventou um mundo inteiro. Eu não consigo inventar uma única palavra. Continua presa em mim, entende. Entendo. Mas talvez não importe. Acho que você deveria apenas escrever. Talvez o novo nem exista. Talvez seja isso, um livro para mostrar que não existe nada de novo. Que é tudo velho. E não faz mal. Estamos aqui e é o suficiente. Você escreve e é o suficiente.”

“... Era uma aventureira que viajava pelo mundo. Sentada na sacada do hotel, eu bebericava um drink exótico com um cigarro no canto da boca e teclava na máquina de escrever, fazendo de tempos em tempos pequenas pausas para olhar a paisagem mutante, estrangeira sempre. Tinha um olhar cínico e à noite sentava no balcão do bar e sussurrava com voz rouca: Play it again, Sam. Nos meus sonhos, eu era Humphrey Bogart, não Ingrid Bergman. Eu era Hemingway, não Jane Austen. Sem mãe, eu não precisava ser mulher. Quem saberia? Agora eu podia ter qualquer corpo meu. E eu preferia um corpo que não doesse, um corpo liso e duro, um corpo que podia enfiar em alguém e machucar por dentro. E que não sangrava a cada óvulo morto, a cada criança viva.”

“É tão boa a sensação das mãos dele sobre mim. Seus dedos seguem a teia intricada de pequenas cicatrizes do meu corpo sem que ele nada pergunte. Como em mapa de metrô, eu penso, as minhas cicatrizes. Mas não. Ele dedilha minhas marcas e quase posso ouvir a música. Lembro de uma história que li. Uma menina chinesa vivia sozinha numa cama de hospital. Um dia uma mosca bate as asas em seu rosto. Era o primeiro carinho que a menina recebia em toda a sua vida. Daquele dia em diante as asas da mosca sobre a sua face a acariciavam a cada manhã numa felicidade esperada. A menina foi curada pelas asas da mosca. Mas acho que invento o final. Na história a mosca foi esmagada, e a menina morreu. Não importa. Eu posso morrer ali. E acho que estaria quase feliz.”