terça-feira, 18 de outubro de 2011

Desonra

Coetzee, J.M. Desonra. Companhia das Letras – São Paulo / SP; 2009; 246 páginas.

Dados da obra:
O livro conta a história de David Lurie, professor de Literatura que cai em desgraça após se envolver amorosamente com uma aluna. Acusado de abuso, é expulso da universidade e viaja para passar uns dias na propriedade rural da filha, Lucy.
No campo, toma contato com a brutalidade e o ressentimento da África do Sul pós-apartheid. Com personagens vivos, com um ritmo narrativo que magnetiza o leitor, Desonra investiga as relações entre as classes, os sexos, as raças.


Breve relato do autor:

J. M. Coetzee nasceu na Cidade do Cabo, na África do Sul. É um dos principais escritores contemporâneos da língua inglesa, e já recebeu diversos prêmios por sua obra, entre eles o Nobel, em 2003, e – caso único – dois Booker Prize, em 1983, por Vida e época de Michael K., e em 1999, por Desonra.

Passagens:

 “É verdade. Desde que se conhece por gente, as harmonias do Prelúdio ressoam dentro dele.
‘Quem sabe. Mas na minha experiência a poesia nos fala à primeira vista, ou não fala nunca. Um estalo de revelação, um estalo de reação. Como um relâmpago. Como se apaixonar’.”

“Cachorros e uma arma; pão no forno e uma plantação na terra. Engraçado que ele e a mãe dela, urbanos, intelectuais, tivessem produzido esse retrocesso, essa sólida colona. Mas talvez não tenham sido eles que a produziram: talvez a história tenha um papel maior.”

“ ‘Claro que é verdade. Eles não vão me ajudar a levar uma vida mais elevada, e sabe porquê? Porque não existe nenhuma vida elevada. A única vida que existe é esta aqui. Que a gente reparte com os animais. É esse o exemplo que gente como a Bev quer dar. O exemplo que eu tento seguir. Repartir alguns dos nossos privilégios humanos com os bichos. Não quero voltar numa outra vida como cachorro ou como porco para viver como os cachorros e porcos vivem com a gente agora’.”

“ ‘Lucy, minha filha, não fique zangada. Está bem, eu concordo que só existe esta vida. Quanto aos animais, claro, vamos ser bons com eles. Mas não vamos perder a proporção das coisas. Na criação nós somos de uma ordem diferente dos animais. Não necessariamente superior, mas diferente. Portanto, se vamos ser bons, que seja por simples generosidade, não porque nos sentimos culpados ou temos medo da vingança’.”

“Mais uma vez, ele pensa se a mulheres não seriam mais felizes se vivessem em comunidades de mulheres, recebendo visitas dos homens só quando quisessem. Talvez ele esteja errado em considerar Lucy homossexual. Talvez ela simplesmente prefira companhia feminina. Ou talvez as lésbicas sejam apenas isso: mulheres que não têm necessidade de homens.”

“Os cachorros são levados à clínica porque são indesejados, porque são demasiados. É aí que entra em suas vidas. Pode não ser seu salvador, aquele para quem não são excessivos, mas está preparado para cuidar deles, uma vez que são incapazes, totalmente incapazes, de cuidar de si mesmos, uma vez que até mesmo Bev Shaw lavou as mãos do destino deles. Um cachorreiro, Petrus se intitulou certa vez. Bom, ele agora se transformou em cachorreiro: um agente funerário canino, um psicopompo; um harijan.”

“Como será, ser avô? Como pai não foi muito bem-sucedido, apesar de ter tentado com mais afinco que a maioria. Como avô provavelmente ficará abaixo da média também. Faltam-lhe as virtudes dos velhos: serenidade, gentileza, paciência. Mas talvez essas virtudes venham quando outras virtudes se vão: a virtude da paixão, por exemplo. Tem de dar uma olhada em Victor Hugo de novo, o poeta-avô. Talvez possa aprender alguma coisa.”

Vai ficando cada vez mais difícil, Bev Shaw lhe disse uma vez. Mais difícil, mas mais fácil também. A gente se acostuma com as coisas ficando mais difíceis, a gente acaba não se assustando mais quando o que era o mais difícil fica ainda mais difícil. Ele pode salvar o jovem cachorro, se quiser, deixar para a semana seguinte. Mas chegará a hora, isso não pode ser evitado, em que terá de trazê-lo para Bev Shaw na sala de operações (talvez o traga nos braços, talvez faça isso por ele) e o acariciará, abrindo a pelagem negra para que a agulha penetre na veia, sussurrando para ele, dando-lhe apoio no momento em que, surpreendidas, suas pernas cederão, e então quando sua alma sair, ele o dobrará e embalará em seu saco, e no dia seguinte o levará para as chamas e cuidará para que seja queimado, eliminado. Fará tudo isso por ele quando chegar sua hora. Será pouco, menos que pouco: nada.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

About 11 de setembro

Spiegelman, Art. À sombra das torres ausentes. Companhia das Letras – São Paulo / SP; 2004; 44 páginas.
Dados da obra:
No livro, o autor conta sua experiência nos atentados de 11 de setembro, traduzida em uma obra no formato 25,4 x 35,6, apresentando dez pranchas, com cada história em páginas duplas, no mesmo formato das primeiras HQs publicadas em jornal, no início do século XX.
Breve relato do autor:
Art Spiegelman é ilustrador, cartunista e autor de histórias em quadrinhos americano, embora sueco de nascimento. Em 1992, ganhou o prêmio Pulitzer com uma história em quadrinho: Maus, romance gráfico em que narra a luta de seu pai, um judeu polonês para sobreviver ao Holocausto.

Passagens:    
 
“Eu estava na escola procurando Nadja quando a primeira torre caiu. Parecia o fim do mundo.
Falei que a outra torre caiu bem atrás da gente? Foi impressionante.
Aquelas caixas eram arrogantes, mas agora sinto falta das sacanas, ícones de uma era inocente.
Se não fosse toda a tragédia e morte, eu poderia dizer que foi uma crítica arquitetônica radical.
Quer dizer, não é que eu adore o meu nariz...
Só não que enfiem um maldito avião nele!”

“O tempo passa, ele consegue pensar em si mesmo na primeira pessoa de novo. Mas lá dentro as torres ainda queimam. Os gorilas assassinos não aprenderam nada com as torres gêmeas de Auschwitz e Hiroshima... e nada mudou no 11 de setembro.
Seu ordenado de ‘presidente’, suas guerras e guerras contra salários – o mesmo negócio mortal de sempre.
Enquanto isso, o sentimento de derrota domina um macaco obsessivo e paranóico.”

“As torres tomaram um vulto bem maior que o real...
mas parecem diminuir a cada dia...
Feliz aniversário.”

“Leituras de poesia pareciam tão freqüentes quanto o som das sirenes de polícia após 11 de setembro. Os novaiorquinos ouviam poesia para dar voz a sua dor: a cultura servia para reafirmar sua fé numa civilização ferida. Acho que ouvi ‘1º de setembro de 1939’, de Auden, uma dúzia de vezes naquelas semanas, mas minha mente não sossegava. Música tão pouco me aliviava, pois me parecia algo obscenamente delicioso. Os únicos produtos culturais que venciam minhas defesas e afastavam de meus olhos e meu cérebro as imagens das torres em chamas eram velhas tiras de quadrinhos; criações efêmeras, vitais, despretensiosas do início otimista do século XX.”

“Uma página silenciosa de 1936 mostra Krazy uivando na paisagem desértica de Coconino Country. Kop se une a Kat para formar um duo, depois Mrs. Kwak Wak vem formar um trio. Uma nota extraviada despenca do quadrinho; os três confabulam e veem que tem de unir-se a Ignatz em sua cela para formar um quarteto. O material é profundo. Depois do ataque me veio à mente como uma pedrada no meio da testa: no fundo diz que todo Paraíso tem sua serpente e que temos de aprender a viver em paz com a tal serpente! Ainda estou tentando chegar lá...”

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Presente de um Poeta

Neruda, Pablo. Presente de um Poeta. Vergara & Ribas Editoras – São Paulo / SP; 2001; 104 páginas.
Dados da obra:
Este livro, um verdadeiro Presente de um Poeta, reúne alguns dos poemas inesquecíveis de Neruda. E divide-se em quatro capítulos: O amor / A terra / A poesia / O homem.
Breve relato do autor:
Pablo Neruda foi um poeta chileno e um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX, além de cônsul do Chile na Espanha e no México.
Passagens:     

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Posso escrever, por exemplo: “A noite está estrelada,
e os astros, azuis, tiritam na distância”.

Gira o vento da noite pelo céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Tanto a amei, e às vezes ela também me amou.

Em noites como esta eu a tive entre os meus braços.
Beijei-a tantas vezes debaixo do céu infinito.

Ela me amou, e às vezes, eu também a queria.
Ah, como não amar seus grandes olhos fixos.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E cai o verso na alma como na relva o orvalho.

Que importa que meu amor não pudera guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Bem longe alguém canta. Lá longe.
Minha alma não se conforma com havê-la perdido.

Como para trazê-la meu olhar a procura.
Meu coração a busca, e ela não está comigo.

A mesma noite faz branquear as mesmas árvores.
Mas nós, os de outrora, já não somos os mesmos.

Já não a quero, é certo, porém quanto a amei.
Minha voz ia no vento para roçar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos.

Já não a quero, é certo. Mas talvez ainda a queira.
Como é tão breve o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta eu a tive entre os meus braços,
Minha alma não se conforma com havê-la perdido.

Ainda que seja esta a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que eu lhe escrevo.

(De Vinte poemas de amor e uma canção desesperada)


Não te quero a não ser porque te quero
e de te querer a não te querer chego
e de te esperar quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.

Só te quero porque é a ti quem quero,
sem fim te odeio, e com ódio te peço,
e a medida do amor meu, viageiro,
é não te ver e amar-te como um cego.

Talvez consuma a luz de janeiro,
seu raio cruel, meu coração inteiro,
de mim roubando a chave do sossego.

Nessa história só eu morro
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo.

(De Cem sonetos de amor)


Minha fé em todas as colheitas do futuro se afirma no presente.
E declaro, por muito que se saiba, que a poesia é indestrutível.

(De Discurso no Chile)