quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A invenção de Hugo Cabret



Selznick, Brian. A invenção de Hugo Cabret. Edições SM; São Paulo / SP; 2009; 533 páginas.
Breve relato do autor:
Brian Selznick é um premiado autor norte-americano e ilustrador de livros infantis.
Dados da obra:
Hugo Cabret é um menino órfão que vive escondido na central de trem de Paris dos anos 1930. Esgueirando-se por passagens secretas, Hugo cuida dos gigantescos relógios do lugar. A sobrevivência dele depende do anonimato: Hugo tenta se manter invisível porque guarda um incrível segredo, que é posto em risco quando o severo dono da loja de brinquedos da estação e sua afilhada cruzam o caminho do garoto.
Um desenho enigmático, um caderno valioso, uma chave roubada e um homem mecânico estão no centro desta intrincada e imprevisível história, que, narrada por texto e imagens, mistura elementos dos quadrinhos e do cinema, oferecendo uma diferente e emocionante experiência de leitura.
Passagens:
O cineasta Georges Méliès começou sua carreira como mágico e possuía um teatro de mágicas em Paris. Essa ligação com a magia o ajudou a perceber imediatamente o potencial do novo suporte que era o cinema. Foi um dos primeiros a demonstrar que os filmes não tinham que refletir a vida real. Logo se deu conta de que o cinema tinha o poder de capturar sonhos. Méliès é amplamente reconhecido como o aperfeiçoador do truque da substituição, que tornava possível fazer as coisas aparecer e desaparecer na tela, como por magia. Isso mudou para sempre a cara do cinema.
 
 Leia em voz alta!
Isabelle leu as histórias para Hugo, e ele se lembrou de ter ouvido alguns dos mitos quando estava na escola. Ela leu sobre o monte Olimpo e sobre criaturas como a quimera e a fênix, e depois leu a história de Prometeu. Hugo ficou sabendo que Prometeu tinha feito os seres humanos com argila e que, em seguida, roubou o fogo dos deuses e deu de presente ao povo que criara, para que a humanidade pudesse sobreviver.
 
– Você já parou pra pensar que todas as máquinas são feitas por algum motivo? – ele perguntou a Isabelle.
– Elas são feitas pra fazer a gente rir, como esse ratinho, ou indicar a hora, como os relógios, ou pra maravilhar a gente, como o autômato. Deve ser por isso que qualquer máquina quebrada sempre me deixa meio triste, porque ela não pode cumprir o seu destino.
Isabelle pegou o ratinho, deu corda novamente e pôs de volta no balcão.
– Vai ver que com as pessoas é a mesma coisa – continuou Hugo. – Se você perder a sua motivação... é como se estivesse quebrado.
 
– Como é lindo! – exclamou Isabelle. – Parece que a cidade é toda feita de estrelas!
– Ás vezes eu venho aqui, de noite, mesmo quando não estou cuidando dos relógios, só pra olhar a cidade. Sabe, as máquinas nunca têm peças sobrando. Elas têm o número e o tipo exato de peças que precisam. Então, eu imagino que, se o mundo inteiro é uma grande máquina, eu devo estar aqui por algum motivo. E isso quer dizer que você, também, deve estar aqui por algum motivo.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Um homem: Klaus Klump


Tavares, Gonçalo M. Um homem.: Klaus Klump. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2007; 115 páginas.

Breve relato do autor:

Gonçalo M. Tavares é um escritor e professor universitário português, cuja primeira obra foi publicada em 2001.

Dados da obra:

É o primeiro livro da série “O Reino”, cujo tema central é o mal. É uma perturbadora alegoria sobre a vida em tempos de guerra e de paz, sobre a ditadura e a democracia. Klaus Klump é editor, mas se mantém neutro com relação à situação do país, até que Johana, sua amante, é violentada por um soldado. Ele então vira guerrilheiro e refugia-se na floresta com outros combatentes.
 
Passagens:
 
Com força arrancou do solo um cão. Não era uma pequena árvore, era um cão.
Os animais não resistem como o mundo botânico, nem como um chapéu. O chapéu voa com o vento, o cão não, a árvore nunca. Mas por vezes vem uma perturbação média e a natureza mostra um dos seus luxos: a maldade. Voa o chapéu, os cães, e ainda as árvores.
 
Se tu não fosses tão alto, não te teria visto por cima da sebe.
E Klaus dizia a Johana:
Se tu não fosse tão alto, a sebe seria mais baixa.
Klaus acreditava mais no destino do que Johana.
Porém nunca há duas mudanças no mundo para um único efeito. Se Klaus fosse mais baixo, isso constituiria uma mudança no mundo. Se a sebe fosse também mais baixa, seriam duas mudanças no mundo. Se existissem dois factos diferentes no passado então não poderia ter sucedido o mesmo. O destino tem uma lógica própria. São necessários cálculos complexos para perceber o que poderia ter acontecido em vez do que realmente aconteceu. Há demasiadas possibilidades para que aconteça sempre o mesmo. O mundo tem variedade e é longo. O mundo deveria ser um túnel, onde entravas de manhã e saías de noite. Sem ramificações. Uma canalização orientada, como existe nas casas.
 
Herói de guerra, citava frases de filósofos, e versos.
Tinha sido ferido várias vezes pelos elementos da resistência. Quando a ferida não atinge a memória é insignificante, dizia. Os homens lembravam-se de o ouvir na enfermaria, sempre que era atingido, a recitar poemas inteiros que sabia desde a infância. Resistia à dor exercitando a memória. Era o seu método. Não parar de pensar – se além de sair sangue do nosso corpo, deixarmos de pensar: morremos.
 
De repente Klaus viu o que parecia ser uma claridade intrusa na sua noite individual, mas não. Era um som. Era o som de Alof a tocar. No meio da massa negra. Terá música luz, perguntou-se Klaus. Não uma luz de eletricidade, não uma luz de máquina, mas uma luz orgânica: como certos animais que deitam luzinhas das ancas; os pirilampos, certos peixes: terá a música uma luz orgânica? É que a música de noite é mais nítida, toda a gente o percebe. Ou então as formas quando visíveis diminuem a nitidez da música. Uma competição entre formas sólidas e as formas aéreas do som.
 
... Não entendia as coisas naturais que o rodeavam e sabia que também não era entendido. E se em tempo de paz tinham sido os livros a barreira: porque atraído pela literatura tinha-se afastado dos sons a que chamava primitivos, esses sons que vêm do exterior e de longe, quando se abre a janela, se em tempo de paz haviam sido os livros, em tempo de guerra eram as máquinas, neste caso as pequenas máquinas que eram as armas, que o haviam afastado da natureza. Porque o barulho das balas das granadas: nada desses sons disformes tem sequer o mínimo de vestígio verbal: não é humano, claramente, esse som...
 
Os conhecimentos ouvem-se, mas para agir a capacidade de audição é praticamente desprezável. Porque agir é estar próximo das coisas e ouvir é estar afastado das coisas. Alguém que apenas ouve nunca será considerado um intruso no mundo, a Natureza não se sentirá ameaçada. Quem ouve poderá acumular conhecimentos, mas essa acumulação não lutará com a Natureza. Esta resiste bem à inteligência, ao raciocínio e à memória do Homem: todas estas qualidades intelectuais são assuntos que dizem respeito exclusivamente ao mundo da cidade, e o que ameaça a Natureza são as acções: os momentos em que os humanos abandonam a audição, e mesmo a linguagem do discurso, e passam a querer falar com o sentido do tacto: o único que pode alterar as coisas...
 
Certos índices para a paz. Os homens juntam-se menos, há menos grupos. É um facto: a solidão aumenta nas nações pacíficas. Aproximamo-nos dos outros para nos defendermos. Por egoísmo nos juntamos.
 
A boca é importante em tempo de guerra: as pessoas têm fome: em tempo de democracia os lábios mantêm a importância, mas agora são ocupados pelos discursos. A linguagem é mais utilizada em tempo de paz, sobre isso não há dúvida: em tempo de guerra não há conversas, apenas informações. Frases rápidas e curtas.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A paixão segundo G.H.


Lispector, Clarice. A paixão segundo G.H. Francisco Alves Editora; Rio de Janeiro / RJ; 1990; 183 páginas.
 
Breve relato do autor:
Clarice Lispector foi uma escritora e jornalista brasileira. Nascida na Ucrânia, naturalizou-se brasileira.
Dados da obra:
Publicado em 1964, o livro trata de uma mulher identificada apenas por G. H. Depois de demitir a empregada, ela tenta limpar o quarto, onde se depara com uma barata dentro do guarda-roupa. Desse encontro, ela tece reflexões e, após esmagar a barata na porta do armário, relata a perda da individualidade.
Passagens:
Os traços – descobri sem prazer – eram traços de rainha. E também a postura: o corpo erecto, delgado, duro, liso, quase sem carne, ausência de seios e de ancas. E sua roupa? Não era de surpreender que eu a tivesse usado como se ela não tivesse presença; sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornava toda escura e invisível – arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era invisível. Janair tinha quase que apenas a forma exterior, os traços que ficavam dentro de sua forma eram tão apurados que mal existiam: ela era achatada como um baixo-relevo preso a uma tábua.
Não fora eu quem repelira o quarto, como havia por um instante sentido à porta. O quarto, com sua barata secreta, é que me repelira. De início eu fora rejeitada pela visão de uma nudez tão forte como o de uma miragem, pois não fora a miragem de um oásis que eu tivera, mas a miragem de um deserto. Depois eu fora imobilizada pela mensagem dura na parede: as figuras de mão espalmada haviam sido um dos sucessivos vigias à entrada do sarcófago. E agora eu entendia que a barata e Janair eram os verdadeiros habitantes do quarto.
A barata é um ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso. Não, não, ela mesma não tem lado direito nem avesso: ela é aquilo. O que nela é exposto fiz o meu avesso ignorado. Ela me olhava. E não era um rosto. Era uma máscara. Uma máscara de escafandrista. Aquela gema preciosa ferruginosa. Os dois olhos eram vivos como dois ovários. Ela me olhava com a fertilidade cega de seu olhar. Ela fertilizava a minha fertilidade morta. Seriam salgados os seus olhos? Se eu os tocasse – já que cada vez mais imunda eu gradualmente ficava – se eu os tocasse com boca, eu os sentiria salgados?
Pela primeira vez eu sentia com sofreguidão infernal a vontade de ter tido filhos que eu nunca tivera: eu queria que se tivesse reproduzido, não em três ou quatro filhos, mas em vinte mil a minha orgânica infernalidade cheia de prazer. Minha sobrevivência futura em filhos é que seria a minha verdadeira atualidade, que é, não apenas eu, mas minha prazerosa espécie a nunca se interromper. Não ter tido filhos me deixava espasmódica como diante de um vício negado.
Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo.


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Memorial do convento


Saramago, José. Memorial do Convento. Bertrand Brasil; Rio de Janeiro / RJ; 2002; 352 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
José Saramago foi um escritor, argumentista, teatrólogo, ensaísta, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1998 e o Prêmio Camões.
 
Dados da obra:
 
Romance histórico, cuja ação decorre no início do século XVIII, durante o reinado de D. João V e da Inquisição. Este manda construir o Palácio Nacional de Mafra, mais conhecido por convento, em resultado de uma promessa que fez para garantir a sucessão do trono. Um dos personagens que ajudam na construção é Baltasar, que tem a alcunha de Sete-Sóis, porque apenas consegue ver à luz. Ele vive um romance com Blimunda, chamada de Sete-Luas, porque consegue ver no escuro.
Passagens:
 

Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez Baltazar se levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo a luz e então, sendo tanta caridade, pôde Sete-Sóis dizer, Por que foi que perguntastes o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se não, se com ela não pudestes falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizestes, vieste e não perguntastes porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estas a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.
Não dormiu ele, ela não dormiu. Amanheceu, e não se levantaram, Baltasar apenas para comer uns torresmos frios e beber um púncaro de vinho, mas depois tornou a deitar-se, Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o tempo de jejum para se lhe aguçarem as lancetas dos olhos, estiletes finíssimos quando enfim saírem para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos.
 
... Este ferro não serve, tem uma racha por dentro, Como é que sabes, Foi Blimunda que viu, o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro e declarou, Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem baptizada estava, que o baptismo foi de padre, não alcunha de qualquer um. Dormiram esta noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais.
 
 
... Minha mãe, esta é minha mulher, o nome dela é Blimunda de Jesus. Deveria isto bastar, dizer de alguém como se chama e esperar o resto da vida para saber quem é, se alguma vez o saberemos, pois ser não é ter sido, ter sido não é será, mas outro é o costume, quem foram os seus pais, onde nasceu, que idade tem, e com isto se julga ficar a saber mais, e às vezes tudo...
 
... Blimunda não é judia nem cristã-nova, isto do Santo Ofício, do cárcere e do degredo foi coisa de visões que a mãe dela dizia que tinha, e revelações, e que também ouvia vozes, Não há mulher nenhuma que não tenhas visões e revelações, e que não ouça vozes, ouvimo-las o dia todo, para isso não é preciso ser feiticeira, Minha mãe não era feiticeira, nem eu o sou. Também têm visões, Só as que todas as mulheres têm, minha mãe, Ficas a ser minha filha, Sim, minha mãe,...
... Quando Baltasar entra em casa, ouve o múrmuro que vem da cozinha, é a voz da mãe, a voz de Blimunda, ora uma , ora outra, mal se conhecem e têm tanto par dizer, é a grande, interminável conversa das mulheres, parece coisa nenhuma, isto pensam os homens, nem eles imaginam que esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fossem falarem as mulheres uma com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta. Deite-me a sua benção, minha mãe, Deus te abençoe meu filho, não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos.
 
Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu.
Em baixo, começavam os homens a descer para os caboucos, onde mal se via ainda. Disse o padre, Dentro de nós existem vontade e alma, a alma retira-se com a morte, vai lá para onde as almas esperam o julgamento, ninguém sabe, mas a vontade ou se separou do homem estando ele vivo, ou a separa dele a morte, é ela o éter, é portanto a vontade dos homens que segura as estrelas, é a vontade dos homens que Deus respira...
           
Nessa noite, Domenico Scarlatti ficou na quinta, tocando oras e horas, até de madrugada, já Blimunda estava de olhos abertos, corriam-lhes devagar as lágrimas, se aqui estivesse um médico diria que ela purgava os humores do nervo óptico ofendido, talvez tivesse razão, talvez as não seja mais que isso, o alívio duma ofensa.


segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Homem lento


Coetzee J.M. Homem lento. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2007; 276 páginas.
 
Breve relato do autor:

J. M. Coetzee nasceu na Cidade do Cabo, na África do Sul. É um dos principais escritores contemporâneos da língua inglesa, e já recebeu diversos prêmios por sua obra, entre eles o Nobel, em 2003, e – caso único – dois Booker Prize, em 1983, por Vida e época de Michael K., e em 1999, por Desonra.

Dados da obra:

O protagonista, Paul Rayment, fotógrafo aposentado em Adelaide, na Austrália, é atropelado no início da trama. O romance acompanha a excruciante recuperação dele, depois de ter a perna amputada – uma história na qual intervém a escritora Elizabeth Costello, personagem da obra anterior de Coetzee.

Passagens:

... Quem é sua família? Qual a resposta correta? Tem uma irmã. Ela morreu há doze anos, mas ainda vive nele ou com ele, assim como tem uma mãe que, nos momentos em que não está nele ou com ele, espera a trombeta dos anjos em seu jazigo no cemitério de Ballarat. Um pai também, mais distante em sua espera, no cemitério de Pau, que ele raramente vai visitar. Serão sua família, os três? Aqueles de cuja vida se nasce morrem, ele gostaria de informar a quem formulou a pergunta. Você leva esses com você, assim como espera ser levado por aqueles que vêm depois de você. Mas o formulário não tem espaço para respostas extensas.

Guardador-de-livros: é assim que chamam gente como ele na Croácia? O que será que quer dizer guardador-de-livros? Um homem que protege livros do esquecimento? Um homem que se apega a livros que nunca lê? Seu escritório está forrado do chão ao teto de livros que nunca abrirá de novo não porque não valham a pena ler, mas porque ele não terá mais tempo.

Será que realmente se sente natural? Sente-se natural diante da ocorrência da rua Magill? Não faz a menor ideia. Mas talvez seja isso que quer dizer natural: não fazer ideia. Será que a Vênus de Milo se sente natural? Apesar de não ter braços, a Vênus de Milo é tida como o ideal da beleza feminina. Um dia ela teve braços, conta a história, mas seus braços foram quebrados; a perda deles só faz sua beleza mais pungente. No entanto se descobrissem amanhã que a Vênus foi de fato feita a partir de uma modelo amputada, ela seria imediatamente removida para um depósito no porão. Por quê? Por que a imagem fragmentada de uma mulher pode ser admirada, mas não a imagem de uma mulher fragmentada, independentemente de os cotos terem sido bem costurados?

Por isso é que, mais tarde, começou a perder o interesse pela fotografia: primeiro quando a cor dominou, depois quando ficou claro que a velha magia das emulsões sensíveis à luz estava se acabando, que para a nova geração o encanto estava em uma techne de imagens sem substância, imagens que podiam espoucar no éter sem resistir em parte alguma, que podiam ser sugadas para dentro de uma máquina e emergir dela retocadas, falsificadas. Ele desistiu de registrar o mundo em fotografias então e transferiu suas energias para a conservação do passado.

“Isso tudo um dia foi novo”, diz ele, com um gesto de mão igual ao de Drago. “Tudo no mundo um dia foi novo. Até eu era novo. Na hora em que eu nasci, eu era a coisa mais moderna, mais nova na face da Terra. Aí o tempo foi agindo sobre mim. Do mesmo jeito que vai agir sobre você. O tempo vai te engolir. Sua bela casa nova com sua bela esposa nova e seu filho vai virar para vocês dois e dizer Por que vocês são tão antiquados? Quando este dia chegar, espero que você se lembre desta nossa conversa.
Drago come uma última garfada de risoto, uma última garfada de salada “Nós fomos para a Croácia no Natal passado”, diz. “Eu, minha mãe e minhas irmãs. Para Zadar. É lá que moram os parentes da minha mãe. São bem velhos agora. Eles também foram, como o senhor diz, ultrapassados pelo tempo. Minha mãe comprou um computador para eles e nós mostramos como se usa. Então eles agora pode fazer compras pela internet, podem mandar e-mails, nós podemos mandar fotos. Eles gostam. E são bem velhos.”
“E daí?”
“Daí que dá para escolher”, diz Drago. “Só isso”.

Ele encolhe os ombros. “Sempre achei esse conceito muito inglês, lar. Hearth and home, dizem os ingleses Para eles, home é um lugar onde o fogo queima na hearth, aonde se vai para se aquecer. O lugar onde não se é abandonado no frio. Não, não estou aquecido aqui”. Ele acena com a mão em um gesto que imita o dela numa paródia. ”Eu pareço ser frio em todo lar aonde vou. Não foi isso que você disse de mim? Você é um homem frio.
A mulher fica calada.
“Entre os franceses, como sabe, não existe home. Entre os franceses estar em casa é estar entre os nossos, no meio da nossa gente. Não me sinto em casa na França. Isso é transparente. Eu não sou o nós de ninguém.”

“Lar... O que quer dizer isso? Já disse o que acho de lar. Um pombo tem lar uma abelha tem lar. Um inglês tem lar, talvez. Eu tenho um domicílio, uma residência. Esta é a minha residência. Este é o meu apartamento. Minha cidade. Meu país. Lar é místico demais para mim”.

“Lembre-se Paul, é a paixão que faz o mundo girar. Você não é nenhum analfabeto, deve saber disso. Sem paixão o mundo será vazio e sem forma. Pense em Dom Quixote. Dom Quixote não é um livro sobre um homem sentado numa cadeira de balanço reclamando da chatice de La Mancha. É sobre um homem que mete uma bacia na cabeça, monta em cima do seu fiel cavado de arado e parte para realizar grandes feitos. Emma Rouault, Emma Bovary, sai e compra roupas elegantes, mesmo sem fazer a menor ideia de como vai pagar por elas. Só se vive uma vez, diz Alonso, diz Emma, então vamos agitar? Agitar Paul. Veja o que consegue inventar.”

Marijana acena para o telefone. Estão sendo dispensados? Ele nem terminou de tomar o chá.  “Original”, diz ela. “Que é isso, fotografia original? Aponta câmera, click, faz cópia. Assim que câmera funciona. Câmera igual fotocopiadora. Então que é original? Original já é cópia. Não é igual pintura.”
“Isso é bobagem, Marijana. Discussão inútil. Uma fotografia não é a coisa em si. Nem uma pintura. Mas isso não faz nenhuma das duas ser cópia. Cada uma se torna uma coisa nova, uma coisa verdadeira, nova no mundo, um novo original. Perdi uma foto original que tem valor para mim e quero de volta.”

 “Só imagens. Brinca com imagens no computador, que tem de ladrão nisso? Coisa moderna isso. Imagens, quem é dono? Senhor quer falar, eu aponto câmera para senhor” – ela finca um dedo no peito dele –, “eu sou ladrão, roubo sua imagem? Não: imagem é grátis – sua imagem, minha imagem. Não é segredo o que Drago faz. Essas fotografias” – ela acena para as três fotos na parede – “tudo no website. Qualquer um pode ver. Senhor quer ver website?”

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Vermelho amargo


Queirós, Bartolomeu Campos de. Vermelho Amargo. Cosac Naify; São Paulo / SP; 2011; 72 páginas.
 
Breve relato do autor:

Bartolomeu Campos de Queirós foi um escritor brasileiro, morto em janeiro de 2012. Teve mais de 40 livros publicados, sendo que Vermelho Amargo ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura 2012 (in memorian). Idealizou o Movimento por um Brasil Literário, do qual participava ativamente.

Dados da obra:
 
Vermelho Amargo, primeiro livro do autor para o público jovem e adulto, é narrado pelo prisma de uma criança. Em prosa poética autobiográfica, Bartolomeu revisita a dolorosa infância, marcada pela ausência da mãe substituída por uma madrasta indiferente.
 
Passagens:
 
No princípio, se um de nós caía, a dor doía ligeiro. Um beijo seu curava a cabeça batida na terra, o dedo espremido na dobradiça da porta, o pé tropeçado no egrau da escada, o braço torcido no galho da árvore. Seu beijo de mãe era um santo remédio. Ao machucar, pedia-se: mãe, beija aqui!
 
É preciso muito bem esquecer para experimentar a alegria de novamente lembrar-se. Tantos pedaços de nós dormem num canto da memória, que a memória chega a esquecer-se deles. E a palavra – basta uma só palavra – é flecha para sangrar o abstrato morto. Há, contudo, dores que a palavra não esgota ao dizê-las.
 
Ao erguer os olhos do livro, o olhar da mãe vinha vestido com novo luar – eu invejava. Em cada página viradaela se remoçava, alagada pelas viagens, amores, incômodos. O livro aberto era seu berço e seu barco, em suas páginas ela se transmutava. Eu suspeitava.

“Passarinho não canta, passarinho lastima”– minha irmã repetia. “Diante da demasiada liberdade seu canto vira pranto” – ela teimava. “Liberdade, quando abusiva, mais amedronta” – ela completava. “Ter um céu inteiro por caminho espanta até as asas. Todo pássaro fez um desnorteio ao voar” – ela anunciava. O medo interrompe a liberdade, mesmo no coração dos pássaros. A irmã carregava os olhos secos, as mãos cruzadas sobre o coração e raramente se debruçava na janela. As pedras mais antigas, que engravidam a terra, invejariam seu deserto.

Brincar irritava a ira de nosso pai. “Viver demanda muita seriedade”, ele retrucava. Só contar estrelas permitia, por ser uma lida sem fim. Os filhos se assentavam no degrau da escada, em fila. Rendiam-se à primeira estrela e rezavam: “Primeira estrela que eu vejo me dê tudo que eu desejo”. Naquela tarde, eu vi primeiro. Orei à luz para não deixar meu amor quebrar-se, nunca mais. O adeus da mãe, tenro, invocou-me a subtrair de mim a crença no absoluto. Estrela, não quero espinho – insistia aturdido.
 
Minha irmã maior gostava de agulhas. Meu primeiro irmão mastigava vidro. Uma brisa morna morava na ponta dos dedos da quase moça. Ela trespassava na agulha uma linha, de azul profundo, e bordava. Tecia paisagens com ponto de cruz, miúdos, mas tão miúdos, que ficava difícil acreditar que não eram mares as águas que ela crucificava. Não erguia a cabeça quase nunca. Vivia curvada sobre os panos, construindo suas cruzes sobre um desconhecido calvário. Na testa trazia uma cicatriz enviesada. Os olhos exigiram lentes grossas para desanuviar o mundo. Ao brincar com sua boneca de celuloide, trancada no banheiro - escondendo-se do pai - caiu e levou muitos pontos. O medo bordou sua fronte com pontos de dor.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Passageiro do fim do dia


Figueiredo, Rubens. Passageiro do fim do dia. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2010; 197 páginas.
 
Breve relato do autor:
Rubens Figueiredo é um romancista e tradutor brasileiro, duas vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura. Possui sete livros em sua obra, além de mais de 40 traduções publicadas, principalmente da língua russa para o português. Também é professor de Português para o Ensino Médio.
Dados da obra:
Passageiro do fim do dia se concentra no trajeto de um ônibus urbano, no fim de tarde de sexta feira, entre o centro de uma metrópole e um bairro suburbano. Tudo se passa entre os escassos acontecimentos exteriores e os pensamentos de Pedro, o protagonista, um comerciante de livros usados.
Passagens:
... A sombra da fila, estendida quase ao máximo sobre a calçada, era a única sombra. A demora do ônibus, o bafo de urina e de lixo, a calçada feita de buracos e poças, o asfalto ardente com borrões azuis de óleo, quase a ponto de fumegar – Pedro já estava até habituado. Não são os mimados, mas sim os adaptados que vão sobreviver.
Rosane, ao contar, achava que cada vez menos gente saía de casa para trabalhar ou para ir à escola, cada vez mais gente ficava em casa ou na rua, à toa. Os nomes Tirol e Várzea começaram a aparecer nos jornais, na televisão, nos noticiários de crime. Os grupos armados nos dois bairros pareceram crescer e se hostilizavam. Juravam vinganças seguidas. Sem notar, as crianças começaram a aprender aquela raiva desde pequenas. Educavam-se com ela, tomavam gosto e se alimentavam daquela rivalidade Cresciam para a raiva, aquilo lhes dava um peso, enchia seu horizonte quase vazio – nada senão aquilo fazia delas alguém mais presente.
Nos vultos espaçosos de crianças, adolescentes ou adultos em volta do fogo em seus movimentos vagarosos, sem atenção sem propósito, mas insistentes, como se não conseguissem afastar-se dali, Pedro começou a notar os traços de uma espécie de culto noturno ancestral. Traços de uma adoração espontânea e desinteressada. Coisa rápida, a mais simples possível, sem alcance além daqueles minutos e daqueles poucos metros. Tratava-se, quem sabe, de uma espécie de identificação, de uma assimilação momentânea, entre eles e o fogo.
Em geral, ali ninguém conversava. Era raro alguém dormir. Às vezes uma pessoa tentava vender um lugar melhor na fila, mais na frente. Se ele tivesse dinheiro, compraria, entraria na frente dos outros ninguém ia reclamar. Acontecia sempre. Lá dentro, horas depois, havia ar-refrigerado e cadeiras estofadas para todos. Mesmo assim, às vezes, na hora da consulta, o médico olhava para os pacientes com certa apreensão. Sabia que a sorte deles estava em suas mãos: aquela gente tinha uma doença para oferecer em troca de uma renda mensal e cabia ao médico avaliar a doença, classificar o estrago, medir seu interesse, seu prazo, seu fator destrutivo – e depois alugar a doença por um tempo, comprá-la para sempre ou apenas rejeitá-la, e chamar o próximo paciente.
No caso e Pedro, havia uma diferença. Ele não precisava ficar no Tirol. Sempre saía de lá domingo à noitinha, para voltar só na sexta-feira seguinte. E sabia disso muito bem: uma questão de tempo, de dias. O Tirol para ele tinha horário certo. Pedro podia nem ir lá, na verdade, podia ficar na casa de sua mãe – onde o ar e o cheiro, onde as paredes e o chão, de casa e da rua, onde a luz da janela e tudo parecia tão diferente e assinalava – de um modo brusco e até petulante – uma segurança e uma distância em relação ao Tirol.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Arroz de Palma


Azevedo, Francisco. O arroz de Palma. Record; Rio de Janeiro / RJ; 2011; 364 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Francisco Azevedo é dramaturgo, roteirista cinematográfico, poeta e ex-diplomata. Começou a dedicar-se à literatura em 1967 ao vencer um concurso promovido pela OEA. Já escreveu mais de 250 produções, incluindo roteiros de longa e curta-metragem, documentários e multimídias premiados e comerciais de TV.
 
Dados da obra:
 
Primeiro romance a tratar da imigração portuguesa para o Brasil no século XX, o livro narra a saga de uma família em busca de um futuro melhor, superando todas as dificuldades. Nos cem anos em que acompanhamos a vida desta família, irmãos brigam e fazem as pazes. Uns casam e são felizes, outros se separam. Tudo sempre acompanhado pelo arroz jogado no casamento dos patriarcas da família em 1908 e que serve de fio condutor da história.
 
Passagens:
 
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe. “Família à Oswaldo Aranha”, “Família à Rossini”, “Família à Belle Meunière” ou “Família ao Molho Pardo” – em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é “à Moda da Casa”. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.
 
Há família doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada – seriam assim um tipo de “Família Diet”, que você suporta só para manter a linha. Seja como for família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
 
... O que um veterano cozinheiro pode dizer é que por mais sem graça por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana na louça, no alumínio ou no barro, Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, numa mais se repete.
 
... Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema – principalmente no Natal e no Ano Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e aquele fastio. Mas a vida – azeitona verde no palito – sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida.
 
Cedo também aprendi que o corpo conhece outras maneiras de se purificar. A urina, a menstruação, o vômito as espinhas, o esperma, a coriza e o suor, tudo nos purifica. O que o corpo põe para fora é sinal de purificação. Assim, as lágrimas seriam a forma mais elevada de nos purificarmos. E o nascimento de uma criança a mais completa.
 
Descobri que, mesmo protegidos pelas mais avançadas precauções tecnológicas, os jovens de hoje continuam com a ancestral dificuldade: saber a hora exata de abaixar o fogo. Fiz ver a ele que não adiantam micro-ondas com programação computadorizada, congelados, sopas instantâneas e tantas outras modernidades: sempre haverá aprendizado. Máquinas se reproduzem e evoluem com tamanha rapidez que nem há tempo para conflitos entre uma geração e outra. Mas nós, humanos – mesmo os de última geração –, somos lentos demais. Nossos progressos são imperceptíveis. Demoramos décadas para perceber êxitos e fracassos. Quando, depois de muito esforço, nos tornamos mestres na arte culinária, quando, de olhos fechados, acertamos o ponto do doce muitos já se foram. A família que se senta à mesa é outra. Já não somos netos, mas avós.
 
... Me tornei um homem menos egoísta, mais equilibrado emocionalmente. Por quê? Ora, por que! Meus filhos me mudaram. Cada filho é aprendizado, lição de vida. E, ao mesmo tempo, muito dever de casa, exercícios complicados, que nós, os pais, vamos tentando resolver com paciência a cada dia pela vida afora. No início, a paciência é pouca e o exercício, daquele de nos arrancar os cabelos. Mas nada que o bom berro não resolva. Berro que vem bem lá de dentro. Das entranhas. Berro de trovão. Com careta de Deus e amor infindo. Um berro assim todo filho entende. E atende.
 
Coleciono alguns guardados preciosos que, quando eu morrer, serão jogados fora, porque só fazem sentido para mim. A memória material deles começa e acaba em mim. Só eu lhes estimo o valor.
 
Meus irmãos, solteiros, eram uns. Casados, são outros. Também me vejo diferente agora que vivo com Isabel. Se mudamos por nós mesmos, misturados a alguém, mudamos mais. Para melhor ou para pior, nunca se sabe. Química que funciona? E o encontro? Me diz: como se dá? Destino? Elaboradíssima dramaturgia divina? Graça obtida do santo casamenteiro? Ou uma seleção assim mais próxima de Darwin? Ou ciência nenhuma, mistério nenhum? Seja lá como for, matrimônios e patrimônios vão desfigurando a família. A transformação acontece naturalmente. O núcleo original se desfaz, surgem novos núcleos. E não há como manter os mesmos lugares à mesa. Todos se acomodam de outro jeito...
 
Devia, sim. É claro que devias. Assim te vais aprimorar. Ainda és muito moço, não abriste mão de nada, tua vidinha está intacta. Um dia, mais cedo ou mais tarde, hás de saber que saudades, no plural, são lembranças, cumprimentos que se mandam. É muito pouco, Antonio, pra exprimir este sentimento que eu e teus pais trazemos na alma com relação a Portugal e ao que lá deixamos. Saudade, sim! Saudade, no singular, é a palavra que condiz. Pode até achar que é detalhe. Mas é detalhe precioso a que só nossa língua se dá ao luxo de chegar.
 
Calado, Nuno me diz tudo o que lhe vem à cabeça e de forma contundente. Concordo com ele. Palavra mete medo, assusta. Toda palavra. A mais inofensiva, súbito causa estrago. Uma combinação equivocada, um tom infeliz, uma vírgula precipitada ou omissa podem significar o desastre. Palavra machuca, deixa marca. Palavra mata. Palavra deveria ficar guardada bem no fundo, no alto dos armários. Longe do alcance das crianças. E dos adultos. Palavra é arma. É preciso ter porte para usá-la. Nuno tem. Porte e postura de quem sabe o que quer. Por isso seu calar não dura para sempre. Nuno arrisca novamente comigo. É generoso.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A contadora de filmes


Letelier, Hernán Rivera. A Contadora de Filmes. Cosac Naify; São Paulo / SP; 2012; 106 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Hernán Rivera Letelier é um escritor chileno que se tornou conhecido com o romance “A rainha Isabel cantava rancheras”. Em 2001 foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura de França.
 
Dados da obra:
 
Trata-se da história de uma família apaixonada por cinema. Quando o pai sofre um acidente de trabalho e a renda se reduz pela metade, apenas um dos filhos pode ir ao cinema no domingo. E este tem de contar o enredo para toda a família. Nessa tarefa, a filha mais nova, Maria Margarita, se sai melhor.
 
Passagens:
 
Eu ficava fascinada com o vazio da sala de cinema na penumbra; parecia uma espécie de caverna misteriosa, secreta, sempre inexplorada. Ao atravessar as pesadas cortinas de veludo me dava a sensação de passar da crueza do mundo real a um maravilhoso mundo mágico.
Nós nos sentávamos na primeira fila, quase grudados naquela enorme telona branca que para mim era como o altar-mor de uma igreja. O auge daquele ritual todo acontecia no maravilhoso instante em que as luzes se apagavam, as cortinas da entrada eram fechadas, a música silenciava e a tela se enchia de vida e de movimento.
 
Cheguei em casa com os olhos vermelhos. Todos me esperavam com grande expectativa. Tomei em silêncio uma xícara de chá, me pus na frente deles, e sem que meus joelhos tremessem nem nada, comecei a minha narração.
Foi então que alguma coisa se apoderou de mim. Enquanto contava o filme – gesticulando, dando braçadas, mudando a voz – ia como que me desdobrando, transformando, convertendo-me em cada um dos personagens. Naquela tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Messala, o malvado do filme. Fui as duas mulheres leprosas que Jesus curou.
Fui o mesmíssimo Jesus.
Eu não estava contando o filme, eu estava atuando o filme. Mais ainda: eu estava vivendo o filme. Meu pai e meus irmãos me ouviam e olhavam para mim de boca aberta.
 
Uma vez li uma frase – com certeza de algum autor famoso – que dizia algo assim como a vida está feita da mesma matéria dos sonhos. Eu digo que a vida pode perfeitamente estar feita da mesma matéria dos filmes.
Contar um filme é como contar um sonho.
Contar a vida é como contar um sonho ou contar um filme.
 
Sem ter pensado nisso, para eles eu tinha me transformado num fazedora de ilusões. Numa espécie de fada, como dizia a vizinha. Minhas narrações de filmes os tiravam daquele amargo nada que era o deserto, e mesmo que fosse por um instante os transportava a mundos maravilhosos, cheios de amores, sonhos e aventuras. Em vez de vê-los projetados numa tela, em minhas narrações cada um podia imaginar esses mundos ao seu bel prazer.
 
Eu olhava as pessoas emboladas na frente do aparelho – muitas delas assíduas de minhas narrações – e via como seus olhinhos brilhavam naqueles segundos em eu imagem e som coincidiam. Brilhavam como quando na minha casa, mostrando a máscara de Zorro, eu dava uma cambalhota com a espada e com três talhos certeiros deixava o Z claramente desenhado no ar.
 
Embora no deserto o sol jorre quase todos os dias do ano, aquela era uma dessas raras manhãs nubladas. Naquela altura eu já tinha claro que as coisas ruins me aconteciam em dias nublados. Se fosse verdade que “as aranhas só tecem em dias nublados”, como dizia meu pai que sua avó repetia sempre, minha má sorte viria a ser uma espécie de aranha das mais laboriosas.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

As Correções


Franzen, Jonathan. As Correções. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2011; 584 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Jonathan Franzen é um escritor norte-americano, colaborador das revistas The New Yorker e Harper´s. Foi eleito pela revista literária Granta um dos 20 melhores jovens romancistas americanos.
 
Dados da obra:
 
As Correções narra a história dos conflitos religiosos, geracionais e de costumes de uma típica família americana na última década do século XX. A família Lambert encarna a crise de valores da sociedade contemporânea.
  
Passagens:
 
As acusações de Melissa o deixaram em carne viva. E nunca tinha percebido o quanto levara a sério a injunção paterna de dedicar-se a um trabalho que fosse “útil” para a sociedade. Criticar uma cultura doente, mesmo que essas críticas não tivessem qualquer efeito, sempre lhe parecera um trabalho útil. Mas se a suposta doença simplesmente não fosse doença alguma – se a grande Ordem Materialista da tecnologia e do apetite consumista e da ciência médica estava de fato contribuindo para melhorar as vidas do que antes eram oprimidos, se eram apenas os homens brancos heterossexuais como Chip que se sentiam incomodados com essa ordem – então sua crítica não tinha nem de longe a menor utilidade ainda que apenas abstrata. Era tudo, nas palavras de Melissa, pura cascata.
 
Aquele seu mal ofendia seu sentido de compostura. Aquelas mãos trêmulas pertenciam a ele e a mais ninguém, e no entanto recusavam-se a obedecê-lo. Como crianças impossíveis de dois anos, entregues a um ataque de voluntarismo. Quanto mais severas eram as ordens que lhes transmitia, menos elas lhe davam ouvidos e mais escapavam a seu controle. Ele sempre tinha sido vulnerável à recalcitrância infantil, e à sua recusa de comportarem-se como adultos. A irresponsabilidade e a indisciplina eram a maldição de sua existência, e ali estava mais um exemplo de lógica diabólica: que seu mal consistisse justamente na recusa de seu corpo em obedecê-lo. Se tua mão direita de ofender, disse Jesus, corta-a fora.
 
Ficou pateticamente óbvio que tinha pensado que seus livros pudessem lhe render centenas de dólares. Afastou-se das lombadas acusadoras, lembrando como cada uma delas tinha acenado para ele numa livraria com a promessa de uma crítica radical da sociedade capitalista avançada, e o quanto ele ficara feliz em levá-las para casa. Mas Jürgen Habermas não tinha as pernas longas e elegantes de Julia, lembrando uma pereira, Theodor Adorno não tinha o cheiro de vinho lascivo e maleável de Julia, Fred Jameson não tinha a língua habilidosa de Julia. Em torno do começo de outubro, quando Chip enviou seu roteiro acabado para Eden Procuro, já tinha vendido suas feministas, seus formalistas, seus estruturalistas, seus pós-estruturalistas, seus freudianos e seus gays. Quando precisou levantar dinheiro para o almoço com seus pais e Denise, tudo que lhe restava eram seus amados historiadores de cultura e sua obra completa de Shakespeare da Arden, encadernada; mas como uma certa mágica residia em Shakespeare – os volumes uniformes, em suas sobrecapas azul-claras, eram como um arquipélago de refúgios -; empilhou seus Focault e seus Greenblatt e Poovey em sacolas de compras, e vendeu todos por cento e quinze dólares.
 
Haver ou não gente era tudo para uma casa. Era mais que um fato importante: era o único fato.
A famíla era a alma da casa.
O espírito desperto era como uma luz numa casa.
A alma era como a toupeira em sua toca.
A consciência estava para o cérebro como a família para a casa.
Aristóteles: Se o olho fosse um animal, a visão seria a sua alma.
 
Ocorreu a Enid naquele momento uma visão de chuva. Viu-se numa casa sem paredes para fugir do mau tempo, só tinha um lenço de papel. E lá vinha a chuva leste, e ela apertava uma versão-lenço de papel de Chip, com seu ótimo emprego novo de repórter. Depois a chuva vinha do oeste, e o tecido era o quanto os filhos de Gary eram belos e inteligentes, e o quanto gostava deles. Depois o vento mudava, e ela saía correndo para o lado norte da casa com os frangalhos de lenço que Denise lhe permitia ter, que ela tinha se casado cedo demais, mas agora estava mais velha e ajuizada, fazendo sucesso como sócia de um restaurante e esperando para encontrar o homem certo. E então a chuva vinha trovejando do sul, e o lenço se desintegrava enquanto ela insistia que o problema de Al era muito leve e que ele iria ficar bem, se mudasse de atitude e tomasse a medicação certa, e a chuva cada vez mais forte, e ela tão cansada, e só tinha o pano...
 
Ele estava recordando as noites em que tinha ficado no andar de cima com os dois meninos ou a menina deitada em seus braços, as cabeças úmidas cheirando a banho apoiadas em suas costelas enquanto ele lia em voz alta para eles Beleza Negra e as Crônicas de Nárnia. Como se a sua voz, a ressonância palpável de sua voz, bastasse para deixá-los sonolentos. Eram noites, e foram centenas, talvez milhares, em que nada traumático o suficiente para deixar uma cicatriz tinha acontecido naquela unidade nuclear. Noites após noites iguais, em sua poltrona de couro negro; doces noites de dúvida em meio a noites de desoladora certeza. Ocorreram-lhe agora, aqueles contra-exemplos esquecidos, porque no fim, quando você está caindo na água, não tem nada de sólido em que se agarrar além de seus filhos.