quinta-feira, 19 de abril de 2012

Expedições Urbenauta

Fenianos, Eduardo Emílio. Expedições Urbenauta – São Paulo: uma aventura radical. Univer Cidade; São Paulo / SP; 2002; páginas.

Breve relato do autor:

Eduardo Emílio Fenianos é jornalista e urbenauta.

Dados da obra:

Durante 120 dias, Fenianos desbravou a cidade de São Paulo, percorrendo todos os seus bairros a bordo da urbenave, um automóvel adaptado às necessidades da viagem, e atingindo seus extremos pontos cardeais. Ele percorreu 6.676,1 Km e seguiu alguns princípios de disciplina: conseguir pouso e comida sempre no distrito do dia, de preferência em residências, para poder entrar em contato com as pessoas e “entrar” em seu mundo, ficar pelo menos um dia em cada distrito, não voltar para casa em nenhuma hipótese, entre outras.

Passagens:

Apertei o “play” do sistema de som e um locutor de voz grave anunciou: “Atenção para o lançamento da urbenave”... E a contagem regressiva foi iniciada, em bom português, nos mesmos moldes das decolagens dos foguetes que partem para a lua. Eles pra lua. Eu para a rua.
10... penso nos meus pais... 9... não haverá mais o chegar em casa, abrir a porta, ligar a tevê pra fazer de conta que há alguém em casa. Nela ficaram, junto com minhas chaves, o cartão do banco, as contas pra pagar, a xícara em que gosto de tomar leite e os meus preconceitos. Que fiquem lá e que não estejam mais quando eu voltar... 8... peço a Deus... 7... são os anões... 6... só falta este carro morrer agora... 5... muita gente em casa pode estar pensando “tem maluco pra tudo”, 4... mas ocorre que as pessoas estão mais distantes uma das outras do que a Terra está de Júpiter... 3... será que esqueci alguma coisa?... 2... Ahhh! Pensei nela!!... 1... transformei um sonho em realidade... 0... Agora é fazer a realidade se transformar em sonho.”

... Prestei atenção aos sons da mata, bem diferentes dos sons pelos quais São Paulo é conhecida. Tiros, ambulâncias, sirenes, buzinas. Ouvi uma outra sinfonia paulistana e fiquei tentando imaginar quais bichos correspondiam a cada som. Grilos, besouros, sapos, pernilongos, mosquitos, o vento batendo nas árvores, galhos sendo tocados por algum animal. Sons de uma selva que muitos pensam não existir em São Paulo.

Se no dia anterior percorremos nove quilômetros e seiscentos metros em vinte e uma horas aproximadas, ao lado de seu Toninho andamos vinte e um quilômetros em cinco horas, parando ainda para aulas de natureza, sobrevivência e respeito à vida. Era a diferença entre dois tipos de caminhada. Numa delas, se aprende com um guia, com quem já conhece. Na outra, ensina-se a si mesmo, descobre-se por si mesmo. Em uma aprendemos a seguir um caminho. Na outra, tem que se criar um caminho próprio. As duas caminhadas são boas. Na “Caminhada seu Toninho”, caminhamos mais e temos mais tempo para olhar o que está ao redor e aprender com quem já sabe. Na “Caminhada nossos próprios caminhos”, medimos nossas forças e nossa capacidade de enfrentar desafios. Uma nos conduz mais rápido. Na outra, passa-se em lugares onde talvez nunca, ninguém tenha passado. Uma é segura, prática e talvez mais fácil. A outra é criativa, desafiadora e surpreendente. Querendo ou não, a Cantareira, a Serra da Mata Fria, a chuva e tudo o que vivi ali me ensinaram, pelo menos, dois bons caminhos. O acerto estará em qual deles seguir, dependendo de como e onde se quer chegar. A parte noroeste da Cantareira, eu teria que conhecer na segunda fase do projeto, sem saber o que me aconteceria lá.

... O Capivari é o diamante de São Paulo.
Seu curso me ensinou que “dirigir” em um rio é bem diferente de dirigir em uma pista. Numa pista as curvas são sempre as mesmas, mas com um rio, não. Como falei, ele pode mudar como um formigueiro. Ás vezes devemos entregar-nos à sua correnteza. Outras, deve-se lutar contra elas. Um rio é o resumo de uma vida. No seu início, é puro e pequeno como nós quando somos crianças. No seu final, pode ganhar força ou ficar poluído e sujo como muitos ficam. Mas um rio sempre volta. Rios têm jogo de cintura. Não sobem montanhas, mas conseguem transpô-las. Rios têm um jeito especial. São às vezes calmos, às vezes nervosos. Passam por altos e baixos, mas sempre chegam ao mar. Àqueles que quiserem compreender melhor a vida, sugiro que naveguem um rio. Quem fizer isso, vai fazer um bem a si mesmo e jamais fará mal à natureza.

A primeira novidade de uma noite na rua foi sentir os passos das pessoas que caminham na rua, dentro dos meus ouvidos, passando ao lado da minha cabeça. A situação desesperadora é a de não saber se aqueles que caminham na minha direção seguirão seu rumo, se caminham em passos que vêm para ajudar ou se seguem em passos que vêm para provocar algum mal, destruir, assaltar ou atear fogo em um corpo que pode ser um mendigo ou um amontoado de lixo (para certas pessoas isso tanto faz) como aconteceu com um índio que dormia em uma rua de Brasília, a capital do Brasil. Lembrei muitas vezes deste episódio.
Do que fogem os passos que correm rápido de madrugada: O que pensam os passos que andam e, de repente, param ao meu lado? Há passos que cheiram bem e passos que cheiram mal. Passos masculinos e passos delicadamente, escandalosamente, indiscretamente femininos. Minha noite de sono começou com passos. Medo de passos. Em seguida veio o som das motos e dos carros acelerando e a música. A música de quem está voltando da balada e nem imagina estar atrapalhando alguém que tenta dormir na rua.

São Paulo pode levar a caminhos distantes. Enquanto via árvores típicas da floresta tropical úmida na Áustria, escutava Eric Clapton cantar I shot the sherif em um especial da Rádio Eldorado. Depois, dei uma passada na Irlanda; e voltei para a Áustria, que depois ganha o nome de Bélgica e termina como Inglaterra, que nesta geografia fica em uma esquina com a Polônia. Desci até a Suíça e na porção europeia da Turquia fiquei pensando como as ruas, hoje olhadas de forma negativa, poderiam servir como sala de aula para ensinar história, geografia, ciências e convivência. Fiquei um bom tempo refletindo e resolvi continuar parte de minha volta ao Mundo pelo Jardim Europa, um os bairros mais requintados de São Paulo, localizado dentro do distrito de Pinheiros.

Pedi ao meu amigo e sua esposa que nos déssemos as mãos. Lacrimejamos e apertamos as mãos fortemente. Levantei tonto e leve do sofá onde conversamos. Disse o mesmo boa noite de três horas antes e fui dormir. Abri a Bíblia que o Fábio me deu. Lucas 21. Dormi bem. Dormi muito bem depois de saber que senti a presença de Deus ao ouvir Juliana, a mãe-prostituta, falar de seus filhos, ao ouvir Gil, o cego que vê, falar da cegueira humana do mundo de hoje, e ao ouvir Carlo, o bandido, falar das coisas simples da vida que descobriu depois de perder sua liberdade. No dia seguinte, antes de eu partir, Carlo me fez mais um pedido. “Quando você chegar na Praça da Sé, por favor, fale que Deus existe.”

Senti na pele como a felicidade pode estar nas coisas simples e como é relativa. No início desta semana felicidade pra mim foi encontrar um lugar para dormir e tomar um banho quente, em um dia de frio e chuva, em uma casa de invasão, ao lado de uma boca de tráfico, no Jardim São Carlos, bairro da Vila Jacuí.
No momento em que fui aceito na casa, ao tomar o banho quente, ao me deitar em meu saco de dormir, embaixo de quatro paredes, descobri como alguém pode sorrir morando em uma favela.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Na Praia

McEvan, Ian. Na Praia. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2007; 128 páginas.
 
Breve relato do autor:

Ian McEwan nasceu em 1948, em Aldershot, Inglaterra. Publicou duas coletâneas de contos e uma dezena de romances. Conquistou entre outros prêmios, o Whitbread Award, em 1987, e o Booker Prize, 1998.

Dados da obra:
 
Em 1962, na Inglaterra Edward e Florence, se casam virgens e vão passar a lua de mel na praia de Chesil, perto do Canal da Mancha. No hotel, as coisas não acontecem como planejado em razão da educação dos jovens na época, marcada pela repressão moral vitoriana, suscitando assim um grande desencontro entre ambos.

Passagens:

... Em teoria, podiam abandonar seus pratos, agarrar a garrafa de vinho pelo gargalo, correr até a praia, livrar-se dos sapatos e exultar de tanta liberdade. Ninguém no hotel haveria de impedi-los. Afinal, eram adultos em férias, livres para fazer o que bem entendessem. Em poucos anos, seria o tipo de coisa que todo jovem faria. Mas, por enquanto, a época os retinha. Mesmo quando Eduard e Florence estavam a sós, mil regras não ditas continuavam a se impor. Era precisamente por serem adultos que não se entregavam a infantilidades como abandonar no meio uma refeição que outros se deram ao trabalho de preparar. Era hora do jantar, apesar de tudo. E ser infantil ainda não era louvável nem tinha entrado na moda.

Apesar da sensação prazerosa e do alívio, continuava apreensiva, um muro alto, não muito fácil de demolir. Nem ela queria que fosse. A despeito da novidade, não se achava num estado de entrega arrebatada, nem pretendia se apressar nessa direção. Queria demorar-se nesse momento largo, sob a completa proteção das roupas, o olhar castanho e sereno, as carícias afetuosas e o frêmito em expansão. Mas sabia que isso era impossível e que, como todos diziam, uma coisa teria de levar a outra.

Ela não estava segura, mas sabia qual o caminho que tomava. “Você está sempre me forçando, me forçando, querendo tirar alguma coisa de mim. Nunca podemos apenas ser. Nunca podemos apenas ser felizes. Tem sempre essa pressão. Você sempre quer alguma coisa a mais de mim. Essa engambelação interminável.”