quinta-feira, 20 de setembro de 2012

O senhor das moscas


Golding, William. O senhor das moscas. Editora Nova Fronteira; Rio de Janeiro / RJ; 2006; 220 páginas.
 
Breve relato do autor:

William Golding foi um novelista e poeta inglês, que recebeu o Nobel de Literatura em 1983.

Dados da obra:
 
O livro retrata a regressão à selvageria de um grupo de crianças inglesas de um colégio interno, presos em uma ilha deserta sem a supervisão de adultos, após a queda do avião que as transportava para longe da guerra.

Passagens:
 
O brinquedo de votar era quase tão divertido quanto a concha. Jack começou a protestar, mas o clamor passou do desejo geral de um chefe para uma eleição de Ralph por aclamação. Nenhum dos meninos poderia pensar numa razão definida para isso; quem mostrara até então mais inteligência fora Porquinho, porém o líder mais óbvio era Jack. Entretanto, havia uma serenidade na figura sentada de Ralph que o destacava: era seu tamanho, sua aparência atraente; e, de forma mais obscura, embora mais poderosa – era a concha. Aquele que havia tocado e se sentara à espera deles na plataforma, com o delicado objeto nos joelhos, distinguia-se entre todos.
– O da concha.
– Ralph! Ralph!
 
Lentamente o silêncio no cume da montanha foi crescendo até se poder ouvir o crepitar da fogueira e o débil silvar da carne assando. Jack olhou em volta, buscando compreensão, mas só encontrou respeito. Ralph estava de pé entre as cinzas da fogueira de sinalização, as mãos cheias de carne, sem dizer nada.
Então, finalmente, Mauice quebrou o silêncio. Mudou de assunto para o único tema que poderia reunir uma maioria.
– Onde vocês acharam o porco?
 
Ralph mexeu-se, impaciente. Que problema! Sendo chefe, você tem de pensar, tem de saber. E as ocasiões passavam, portanto era preciso decidir logo. Isso era uma coisa para pensar; porque pensar era uma coisa preciosa, que dava resultado...
Só que não consigo pensar – concluiu Ralph de frente para o lugar do chefe. Não como Porquinho.

Ralph olhou-o em silêncio. Por um instante, vislumbrou uma imagem fugaz do estranho encanto que outrora dominara as praias. Mas a ilha estava carbonizada como lenha usada... Simon morrera... e Jack havia... As lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces e soluços sacudiram-no Pela primeira vez, desde que chegara à ilha, entregou-se ao choro; grandes e convulsivos espasmos de tristeza pareciam torcer todo o seu corpo. Sua voz elevou-se sob a fumaça negra diante dos restos incendiados da ilha; contagiados por aquela emoção, os outros meninos começaram a tremer e a soluçar. No meio deles, com o corpo sujo, cabelo emaranhado e nariz escorrendo, Ralph chorou pelo fim da inocência, pela escuridão do coração humano e pela queda no ar do verdadeiro e sábio amigo chamado Porquinho.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Relato de um náufrago


Márquez, Gabriel García. Relato de um náufrago. Editora Record; Rio de Janeiro / RJ; 1970; 134 páginas.
 
Breve relato do autor:

 É um escritor, jornalista, editor, ativista e político colombiano. Recebeu o Nobel de Literatura em 1982 pelo conjunto de sua obra, que entre outros livros inclui o aclamado Cem Anos de Solidão. Responsável por criar o realismo mágico na literatura latino-americana.

 Dados da obra:

Relato de um náufrago conta a história de um marinheiro sobrevivente de um náufrago no ano de 1955 no mar do Caribe.
 
Passagens:

No começo me pareceu impossível permanecer três horas sozinho no mar. Mas as cinco, quando já se tinham passado cinco horas, achei que ainda podia esperar uma hora mais. O sol estava descendo. Ficou vermelho e grande no ocaso, e então comecei a me orientar. Sabia agora por onde apareceriam os aviões: pus o sol à minha esquerda e olhei em linha reta, sem me mexer, sem desviar a vista um só instante, sem me atrever a piscar, na direção em que devia estar Cartagena, segundo minha orientação. As seis, doíam meus olhos. Continuava, porém, olhando. Inclusive depois que começou a escurecer, continuei olhando com uma paciência firme e rebelde.

Para um esfomeado marinheiro solitário no mar, a presença das gaivotas é uma mensagem de esperança. Geralmente, um bando de gaivotas acompanha os navios, mas só até o segundo dia de navegação, sete gaivotas sobre a balsa significavam a proximidade da terra.

Estavam num dos bolsos da calça, quase completamente desfeitos pela umidade. Rasguei-os, levei-os à boca e comecei a mastigar. Foi um milagre: a garganta se aliviou um pouco e a boca se encheu de saliva. Lentamente continuei mastigando, como se aquilo fosse chiclete. Na primeira mastigada, doeram as mandíbulas. Depois, à medida que mastigava o cartão que guardei sem saber porque, desde o dia em que fui fazer compras com Mary Address, me senti mais forte e otimista. Pensava continuar mastigando os cartões indefinidamente para aliviar a dor nas mandíbulas e até achei que seria um desperdício jogá-los ao mar. Senti descer até o estômago a minúscula papa de papelão moído e desde esse instante tive a sensação de que me salvaria, de que não seria destroçado pelos tubarões.
 
Há um instante em que não se sente mais dor. A sensibilidade desparece e a razão começa a se embotar até que se perde a noção de tempo e espaço. De bruços na balsa, com os braços apoiados na borda e a barba nos braços, senti, no começo as impiedosas picadas do sol. Vi o ar povoado de pontas luminosas, durante várias horas. Finalmente fechei os olhos, extenuado, mas então o sol já não me ardia o corpo. Não sentia nem sede nem fome. Não sentia nada, a não ser uma indiferença total pela vida e pela morte. Pensei que estava morrendo. E essa ideia me encheu de uma estranha e obscura esperança.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

De Cuba com carinho


Sánchez, Yoani. De Cuba com carinho. Editora Contexto; São Paulo / SP; 2011; 204 páginas.
 
Breve relato do autor:

Yoani Sánchez é uma filóloga e jornalista cubana que alcançou fama internacional e numerosos prêmios por seus artigos e suas críticas da situação social em Cuba sob o governo de Fidel Castro e de seu sucessor Raúl Castro.

Dados da obra:

De Cuba com carinho é um livro que narra a vida cotidiana de quem vive na ilha, sofre com a decadência cubana, mas ama seu país. São alguns dos posts publicados por Yoani em seu blog Generaction Y.

Passagens:
 
Generaction Y é a coisa mais arriscada que fiz em minhas três décadas de vida e, depois de começar a escrevê-lo, sinto com frequência os joelhos tremerem. Para evitar endeusamentos e duguras crucificações deixo claro em uma das páginas que o meu blog é um exercício pessoal de covardia dizer na rede tudo aquilo que não me atrevo a expressar na vida real

... Daí que a morte pública de um político tenha início quando as pessoas deixam de colocar-lhe apelidos; a crise de um ideal fica demonstrada se poucos fizerem referência a ele e a propaganda ideológica se debilita quando ninguém repete seus bordões maniqueístas. A linguagem pode validar ou enterrar qualquer utopia.

Quando menina, eu gostava dos livros com “figurinhas” e minha atração por textos acompanhados de imagens ficou até hoje. E o meu prazer é maior quando encontro uma história bem escrita, com ilustrações feitas pelo próprio autor. Foi justamente essa combinação que me cativou em Persépolis, o livro da iraniana Marjane Satrapi. Adentrei suas primeiras páginas para evocar meus tempos de leitora de revistas em quadrinhos, mas não calculei que essa visão do Irã me causaria tanto impacto.

Conheço um que encontrou um modo original de escapar das reuniões, das votações unânimes, dos chamamentos à intransigência e das frequentes mobilizações do PCC. Como um boxeador, treinado para aguentar até que soe a campanhia, compareceu ao que seria seu último encontro com o núcleo partidário de seu local de trabalho. Surpreendeu a todos pelo argumento inusitado, um verdadeiro swing de esquerda que ninguém esperava. “Todo dia compro no mercado negro para alimentar minha família e isso um membro do Partido Comunista não deve fazer. Como devo escolher entre colocar alguma coisa no prato dos meus ou acatar a disciplina desta organização, prefiro renunciar”. Todos na mesa se entreolharam incrédulos, “mas Ricardo, o que é que você está dizendo? Aqui a maioria compra no mercado negro”. O “golpe” que vinha ensaiando encerrou com chave de ouro e breve assalto: ”Ah... então eu vou embora, pois não quero pertencer a um partido de dissimulados, que dizem uma coisa e fazem outra.

Cresci, tive um filho e a ele também coube repetir a palavra de ordem “Pioneiros pelo comunismo, seremos como o Che”. Hoje tem a mesma idade que eu naquele tumultuado 1989, quando comecei a ter dúvidas e compreendi que tudo o que tinham me inculcado talvez não fosse verdade.

Não me manda calar a boca por respeito, mas leio em seus olhos que está entediado com toda minha tagarelice. “A vovó ficou parada no tempo”, dirá quando eu me for, mas na minha presença finge escutar os episódios defasados dessa Cuba remota. Não sabe esse rapaz que a premonição de sua existência me permitiu manter a lucidez quarenta anos atrás. Projetá-lo – com sua careta de incredulidade sentado num parque da Havana futura – evitou que eu tomasse o caminho do mar, do fingimento ou do silêncio. Cheguei até aqui graças a ele e, em vez de dizer-lhe isso, o que faço é aborrecê-lo com histórias do que passou, do que nunca voltará a se repetir.

Enquanto são preparados extensos dossiês sobre os cinquenta anos da Revolução Cubana, poucos se perguntam se o que se celebra é o aniversário de um ser vivo ou simplesmente o de algo que deixou de existir. As revoluções não duram meio século advirto aos que me perguntam. Elas terminam por devorar a si mesmas e por se excretar em autoritarismo, controle e mobilidade. Expiram sempre que tentam se tornar eternas. Falecem por querer se manter sem mudanças.