quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Vermelho amargo


Queirós, Bartolomeu Campos de. Vermelho Amargo. Cosac Naify; São Paulo / SP; 2011; 72 páginas.
 
Breve relato do autor:

Bartolomeu Campos de Queirós foi um escritor brasileiro, morto em janeiro de 2012. Teve mais de 40 livros publicados, sendo que Vermelho Amargo ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura 2012 (in memorian). Idealizou o Movimento por um Brasil Literário, do qual participava ativamente.

Dados da obra:
 
Vermelho Amargo, primeiro livro do autor para o público jovem e adulto, é narrado pelo prisma de uma criança. Em prosa poética autobiográfica, Bartolomeu revisita a dolorosa infância, marcada pela ausência da mãe substituída por uma madrasta indiferente.
 
Passagens:
 
No princípio, se um de nós caía, a dor doía ligeiro. Um beijo seu curava a cabeça batida na terra, o dedo espremido na dobradiça da porta, o pé tropeçado no egrau da escada, o braço torcido no galho da árvore. Seu beijo de mãe era um santo remédio. Ao machucar, pedia-se: mãe, beija aqui!
 
É preciso muito bem esquecer para experimentar a alegria de novamente lembrar-se. Tantos pedaços de nós dormem num canto da memória, que a memória chega a esquecer-se deles. E a palavra – basta uma só palavra – é flecha para sangrar o abstrato morto. Há, contudo, dores que a palavra não esgota ao dizê-las.
 
Ao erguer os olhos do livro, o olhar da mãe vinha vestido com novo luar – eu invejava. Em cada página viradaela se remoçava, alagada pelas viagens, amores, incômodos. O livro aberto era seu berço e seu barco, em suas páginas ela se transmutava. Eu suspeitava.

“Passarinho não canta, passarinho lastima”– minha irmã repetia. “Diante da demasiada liberdade seu canto vira pranto” – ela teimava. “Liberdade, quando abusiva, mais amedronta” – ela completava. “Ter um céu inteiro por caminho espanta até as asas. Todo pássaro fez um desnorteio ao voar” – ela anunciava. O medo interrompe a liberdade, mesmo no coração dos pássaros. A irmã carregava os olhos secos, as mãos cruzadas sobre o coração e raramente se debruçava na janela. As pedras mais antigas, que engravidam a terra, invejariam seu deserto.

Brincar irritava a ira de nosso pai. “Viver demanda muita seriedade”, ele retrucava. Só contar estrelas permitia, por ser uma lida sem fim. Os filhos se assentavam no degrau da escada, em fila. Rendiam-se à primeira estrela e rezavam: “Primeira estrela que eu vejo me dê tudo que eu desejo”. Naquela tarde, eu vi primeiro. Orei à luz para não deixar meu amor quebrar-se, nunca mais. O adeus da mãe, tenro, invocou-me a subtrair de mim a crença no absoluto. Estrela, não quero espinho – insistia aturdido.
 
Minha irmã maior gostava de agulhas. Meu primeiro irmão mastigava vidro. Uma brisa morna morava na ponta dos dedos da quase moça. Ela trespassava na agulha uma linha, de azul profundo, e bordava. Tecia paisagens com ponto de cruz, miúdos, mas tão miúdos, que ficava difícil acreditar que não eram mares as águas que ela crucificava. Não erguia a cabeça quase nunca. Vivia curvada sobre os panos, construindo suas cruzes sobre um desconhecido calvário. Na testa trazia uma cicatriz enviesada. Os olhos exigiram lentes grossas para desanuviar o mundo. Ao brincar com sua boneca de celuloide, trancada no banheiro - escondendo-se do pai - caiu e levou muitos pontos. O medo bordou sua fronte com pontos de dor.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Passageiro do fim do dia


Figueiredo, Rubens. Passageiro do fim do dia. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2010; 197 páginas.
 
Breve relato do autor:
Rubens Figueiredo é um romancista e tradutor brasileiro, duas vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura. Possui sete livros em sua obra, além de mais de 40 traduções publicadas, principalmente da língua russa para o português. Também é professor de Português para o Ensino Médio.
Dados da obra:
Passageiro do fim do dia se concentra no trajeto de um ônibus urbano, no fim de tarde de sexta feira, entre o centro de uma metrópole e um bairro suburbano. Tudo se passa entre os escassos acontecimentos exteriores e os pensamentos de Pedro, o protagonista, um comerciante de livros usados.
Passagens:
... A sombra da fila, estendida quase ao máximo sobre a calçada, era a única sombra. A demora do ônibus, o bafo de urina e de lixo, a calçada feita de buracos e poças, o asfalto ardente com borrões azuis de óleo, quase a ponto de fumegar – Pedro já estava até habituado. Não são os mimados, mas sim os adaptados que vão sobreviver.
Rosane, ao contar, achava que cada vez menos gente saía de casa para trabalhar ou para ir à escola, cada vez mais gente ficava em casa ou na rua, à toa. Os nomes Tirol e Várzea começaram a aparecer nos jornais, na televisão, nos noticiários de crime. Os grupos armados nos dois bairros pareceram crescer e se hostilizavam. Juravam vinganças seguidas. Sem notar, as crianças começaram a aprender aquela raiva desde pequenas. Educavam-se com ela, tomavam gosto e se alimentavam daquela rivalidade Cresciam para a raiva, aquilo lhes dava um peso, enchia seu horizonte quase vazio – nada senão aquilo fazia delas alguém mais presente.
Nos vultos espaçosos de crianças, adolescentes ou adultos em volta do fogo em seus movimentos vagarosos, sem atenção sem propósito, mas insistentes, como se não conseguissem afastar-se dali, Pedro começou a notar os traços de uma espécie de culto noturno ancestral. Traços de uma adoração espontânea e desinteressada. Coisa rápida, a mais simples possível, sem alcance além daqueles minutos e daqueles poucos metros. Tratava-se, quem sabe, de uma espécie de identificação, de uma assimilação momentânea, entre eles e o fogo.
Em geral, ali ninguém conversava. Era raro alguém dormir. Às vezes uma pessoa tentava vender um lugar melhor na fila, mais na frente. Se ele tivesse dinheiro, compraria, entraria na frente dos outros ninguém ia reclamar. Acontecia sempre. Lá dentro, horas depois, havia ar-refrigerado e cadeiras estofadas para todos. Mesmo assim, às vezes, na hora da consulta, o médico olhava para os pacientes com certa apreensão. Sabia que a sorte deles estava em suas mãos: aquela gente tinha uma doença para oferecer em troca de uma renda mensal e cabia ao médico avaliar a doença, classificar o estrago, medir seu interesse, seu prazo, seu fator destrutivo – e depois alugar a doença por um tempo, comprá-la para sempre ou apenas rejeitá-la, e chamar o próximo paciente.
No caso e Pedro, havia uma diferença. Ele não precisava ficar no Tirol. Sempre saía de lá domingo à noitinha, para voltar só na sexta-feira seguinte. E sabia disso muito bem: uma questão de tempo, de dias. O Tirol para ele tinha horário certo. Pedro podia nem ir lá, na verdade, podia ficar na casa de sua mãe – onde o ar e o cheiro, onde as paredes e o chão, de casa e da rua, onde a luz da janela e tudo parecia tão diferente e assinalava – de um modo brusco e até petulante – uma segurança e uma distância em relação ao Tirol.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Arroz de Palma


Azevedo, Francisco. O arroz de Palma. Record; Rio de Janeiro / RJ; 2011; 364 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Francisco Azevedo é dramaturgo, roteirista cinematográfico, poeta e ex-diplomata. Começou a dedicar-se à literatura em 1967 ao vencer um concurso promovido pela OEA. Já escreveu mais de 250 produções, incluindo roteiros de longa e curta-metragem, documentários e multimídias premiados e comerciais de TV.
 
Dados da obra:
 
Primeiro romance a tratar da imigração portuguesa para o Brasil no século XX, o livro narra a saga de uma família em busca de um futuro melhor, superando todas as dificuldades. Nos cem anos em que acompanhamos a vida desta família, irmãos brigam e fazem as pazes. Uns casam e são felizes, outros se separam. Tudo sempre acompanhado pelo arroz jogado no casamento dos patriarcas da família em 1908 e que serve de fio condutor da história.
 
Passagens:
 
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita. Bobagem. Tudo ilusão. Não existe. “Família à Oswaldo Aranha”, “Família à Rossini”, “Família à Belle Meunière” ou “Família ao Molho Pardo” – em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria. Família é afinidade, é “à Moda da Casa”. E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.
 
Há família doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas. Há também as que não têm gosto de nada – seriam assim um tipo de “Família Diet”, que você suporta só para manter a linha. Seja como for família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
 
... O que um veterano cozinheiro pode dizer é que por mais sem graça por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer. Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas. Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana na louça, no alumínio ou no barro, Aproveite ao máximo. Família é prato que, quando se acaba, numa mais se repete.
 
... Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes. Reunir todos é um problema – principalmente no Natal e no Ano Novo. Pouco importa a qualidade da panela, fazer uma família exige coragem, devoção e paciência. Não é qualquer um. Os truques, os segredos, o imprevisível. Às vezes, dá até vontade de desistir. Preferimos o desconforto do estômago vazio. Vêm a preguiça, a conhecida falta de imaginação sobre o que se vai comer e aquele fastio. Mas a vida – azeitona verde no palito – sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite. O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares. Súbito, feito milagre, a família está servida.
 
Cedo também aprendi que o corpo conhece outras maneiras de se purificar. A urina, a menstruação, o vômito as espinhas, o esperma, a coriza e o suor, tudo nos purifica. O que o corpo põe para fora é sinal de purificação. Assim, as lágrimas seriam a forma mais elevada de nos purificarmos. E o nascimento de uma criança a mais completa.
 
Descobri que, mesmo protegidos pelas mais avançadas precauções tecnológicas, os jovens de hoje continuam com a ancestral dificuldade: saber a hora exata de abaixar o fogo. Fiz ver a ele que não adiantam micro-ondas com programação computadorizada, congelados, sopas instantâneas e tantas outras modernidades: sempre haverá aprendizado. Máquinas se reproduzem e evoluem com tamanha rapidez que nem há tempo para conflitos entre uma geração e outra. Mas nós, humanos – mesmo os de última geração –, somos lentos demais. Nossos progressos são imperceptíveis. Demoramos décadas para perceber êxitos e fracassos. Quando, depois de muito esforço, nos tornamos mestres na arte culinária, quando, de olhos fechados, acertamos o ponto do doce muitos já se foram. A família que se senta à mesa é outra. Já não somos netos, mas avós.
 
... Me tornei um homem menos egoísta, mais equilibrado emocionalmente. Por quê? Ora, por que! Meus filhos me mudaram. Cada filho é aprendizado, lição de vida. E, ao mesmo tempo, muito dever de casa, exercícios complicados, que nós, os pais, vamos tentando resolver com paciência a cada dia pela vida afora. No início, a paciência é pouca e o exercício, daquele de nos arrancar os cabelos. Mas nada que o bom berro não resolva. Berro que vem bem lá de dentro. Das entranhas. Berro de trovão. Com careta de Deus e amor infindo. Um berro assim todo filho entende. E atende.
 
Coleciono alguns guardados preciosos que, quando eu morrer, serão jogados fora, porque só fazem sentido para mim. A memória material deles começa e acaba em mim. Só eu lhes estimo o valor.
 
Meus irmãos, solteiros, eram uns. Casados, são outros. Também me vejo diferente agora que vivo com Isabel. Se mudamos por nós mesmos, misturados a alguém, mudamos mais. Para melhor ou para pior, nunca se sabe. Química que funciona? E o encontro? Me diz: como se dá? Destino? Elaboradíssima dramaturgia divina? Graça obtida do santo casamenteiro? Ou uma seleção assim mais próxima de Darwin? Ou ciência nenhuma, mistério nenhum? Seja lá como for, matrimônios e patrimônios vão desfigurando a família. A transformação acontece naturalmente. O núcleo original se desfaz, surgem novos núcleos. E não há como manter os mesmos lugares à mesa. Todos se acomodam de outro jeito...
 
Devia, sim. É claro que devias. Assim te vais aprimorar. Ainda és muito moço, não abriste mão de nada, tua vidinha está intacta. Um dia, mais cedo ou mais tarde, hás de saber que saudades, no plural, são lembranças, cumprimentos que se mandam. É muito pouco, Antonio, pra exprimir este sentimento que eu e teus pais trazemos na alma com relação a Portugal e ao que lá deixamos. Saudade, sim! Saudade, no singular, é a palavra que condiz. Pode até achar que é detalhe. Mas é detalhe precioso a que só nossa língua se dá ao luxo de chegar.
 
Calado, Nuno me diz tudo o que lhe vem à cabeça e de forma contundente. Concordo com ele. Palavra mete medo, assusta. Toda palavra. A mais inofensiva, súbito causa estrago. Uma combinação equivocada, um tom infeliz, uma vírgula precipitada ou omissa podem significar o desastre. Palavra machuca, deixa marca. Palavra mata. Palavra deveria ficar guardada bem no fundo, no alto dos armários. Longe do alcance das crianças. E dos adultos. Palavra é arma. É preciso ter porte para usá-la. Nuno tem. Porte e postura de quem sabe o que quer. Por isso seu calar não dura para sempre. Nuno arrisca novamente comigo. É generoso.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A contadora de filmes


Letelier, Hernán Rivera. A Contadora de Filmes. Cosac Naify; São Paulo / SP; 2012; 106 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Hernán Rivera Letelier é um escritor chileno que se tornou conhecido com o romance “A rainha Isabel cantava rancheras”. Em 2001 foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura de França.
 
Dados da obra:
 
Trata-se da história de uma família apaixonada por cinema. Quando o pai sofre um acidente de trabalho e a renda se reduz pela metade, apenas um dos filhos pode ir ao cinema no domingo. E este tem de contar o enredo para toda a família. Nessa tarefa, a filha mais nova, Maria Margarita, se sai melhor.
 
Passagens:
 
Eu ficava fascinada com o vazio da sala de cinema na penumbra; parecia uma espécie de caverna misteriosa, secreta, sempre inexplorada. Ao atravessar as pesadas cortinas de veludo me dava a sensação de passar da crueza do mundo real a um maravilhoso mundo mágico.
Nós nos sentávamos na primeira fila, quase grudados naquela enorme telona branca que para mim era como o altar-mor de uma igreja. O auge daquele ritual todo acontecia no maravilhoso instante em que as luzes se apagavam, as cortinas da entrada eram fechadas, a música silenciava e a tela se enchia de vida e de movimento.
 
Cheguei em casa com os olhos vermelhos. Todos me esperavam com grande expectativa. Tomei em silêncio uma xícara de chá, me pus na frente deles, e sem que meus joelhos tremessem nem nada, comecei a minha narração.
Foi então que alguma coisa se apoderou de mim. Enquanto contava o filme – gesticulando, dando braçadas, mudando a voz – ia como que me desdobrando, transformando, convertendo-me em cada um dos personagens. Naquela tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Messala, o malvado do filme. Fui as duas mulheres leprosas que Jesus curou.
Fui o mesmíssimo Jesus.
Eu não estava contando o filme, eu estava atuando o filme. Mais ainda: eu estava vivendo o filme. Meu pai e meus irmãos me ouviam e olhavam para mim de boca aberta.
 
Uma vez li uma frase – com certeza de algum autor famoso – que dizia algo assim como a vida está feita da mesma matéria dos sonhos. Eu digo que a vida pode perfeitamente estar feita da mesma matéria dos filmes.
Contar um filme é como contar um sonho.
Contar a vida é como contar um sonho ou contar um filme.
 
Sem ter pensado nisso, para eles eu tinha me transformado num fazedora de ilusões. Numa espécie de fada, como dizia a vizinha. Minhas narrações de filmes os tiravam daquele amargo nada que era o deserto, e mesmo que fosse por um instante os transportava a mundos maravilhosos, cheios de amores, sonhos e aventuras. Em vez de vê-los projetados numa tela, em minhas narrações cada um podia imaginar esses mundos ao seu bel prazer.
 
Eu olhava as pessoas emboladas na frente do aparelho – muitas delas assíduas de minhas narrações – e via como seus olhinhos brilhavam naqueles segundos em eu imagem e som coincidiam. Brilhavam como quando na minha casa, mostrando a máscara de Zorro, eu dava uma cambalhota com a espada e com três talhos certeiros deixava o Z claramente desenhado no ar.
 
Embora no deserto o sol jorre quase todos os dias do ano, aquela era uma dessas raras manhãs nubladas. Naquela altura eu já tinha claro que as coisas ruins me aconteciam em dias nublados. Se fosse verdade que “as aranhas só tecem em dias nublados”, como dizia meu pai que sua avó repetia sempre, minha má sorte viria a ser uma espécie de aranha das mais laboriosas.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

As Correções


Franzen, Jonathan. As Correções. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2011; 584 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Jonathan Franzen é um escritor norte-americano, colaborador das revistas The New Yorker e Harper´s. Foi eleito pela revista literária Granta um dos 20 melhores jovens romancistas americanos.
 
Dados da obra:
 
As Correções narra a história dos conflitos religiosos, geracionais e de costumes de uma típica família americana na última década do século XX. A família Lambert encarna a crise de valores da sociedade contemporânea.
  
Passagens:
 
As acusações de Melissa o deixaram em carne viva. E nunca tinha percebido o quanto levara a sério a injunção paterna de dedicar-se a um trabalho que fosse “útil” para a sociedade. Criticar uma cultura doente, mesmo que essas críticas não tivessem qualquer efeito, sempre lhe parecera um trabalho útil. Mas se a suposta doença simplesmente não fosse doença alguma – se a grande Ordem Materialista da tecnologia e do apetite consumista e da ciência médica estava de fato contribuindo para melhorar as vidas do que antes eram oprimidos, se eram apenas os homens brancos heterossexuais como Chip que se sentiam incomodados com essa ordem – então sua crítica não tinha nem de longe a menor utilidade ainda que apenas abstrata. Era tudo, nas palavras de Melissa, pura cascata.
 
Aquele seu mal ofendia seu sentido de compostura. Aquelas mãos trêmulas pertenciam a ele e a mais ninguém, e no entanto recusavam-se a obedecê-lo. Como crianças impossíveis de dois anos, entregues a um ataque de voluntarismo. Quanto mais severas eram as ordens que lhes transmitia, menos elas lhe davam ouvidos e mais escapavam a seu controle. Ele sempre tinha sido vulnerável à recalcitrância infantil, e à sua recusa de comportarem-se como adultos. A irresponsabilidade e a indisciplina eram a maldição de sua existência, e ali estava mais um exemplo de lógica diabólica: que seu mal consistisse justamente na recusa de seu corpo em obedecê-lo. Se tua mão direita de ofender, disse Jesus, corta-a fora.
 
Ficou pateticamente óbvio que tinha pensado que seus livros pudessem lhe render centenas de dólares. Afastou-se das lombadas acusadoras, lembrando como cada uma delas tinha acenado para ele numa livraria com a promessa de uma crítica radical da sociedade capitalista avançada, e o quanto ele ficara feliz em levá-las para casa. Mas Jürgen Habermas não tinha as pernas longas e elegantes de Julia, lembrando uma pereira, Theodor Adorno não tinha o cheiro de vinho lascivo e maleável de Julia, Fred Jameson não tinha a língua habilidosa de Julia. Em torno do começo de outubro, quando Chip enviou seu roteiro acabado para Eden Procuro, já tinha vendido suas feministas, seus formalistas, seus estruturalistas, seus pós-estruturalistas, seus freudianos e seus gays. Quando precisou levantar dinheiro para o almoço com seus pais e Denise, tudo que lhe restava eram seus amados historiadores de cultura e sua obra completa de Shakespeare da Arden, encadernada; mas como uma certa mágica residia em Shakespeare – os volumes uniformes, em suas sobrecapas azul-claras, eram como um arquipélago de refúgios -; empilhou seus Focault e seus Greenblatt e Poovey em sacolas de compras, e vendeu todos por cento e quinze dólares.
 
Haver ou não gente era tudo para uma casa. Era mais que um fato importante: era o único fato.
A famíla era a alma da casa.
O espírito desperto era como uma luz numa casa.
A alma era como a toupeira em sua toca.
A consciência estava para o cérebro como a família para a casa.
Aristóteles: Se o olho fosse um animal, a visão seria a sua alma.
 
Ocorreu a Enid naquele momento uma visão de chuva. Viu-se numa casa sem paredes para fugir do mau tempo, só tinha um lenço de papel. E lá vinha a chuva leste, e ela apertava uma versão-lenço de papel de Chip, com seu ótimo emprego novo de repórter. Depois a chuva vinha do oeste, e o tecido era o quanto os filhos de Gary eram belos e inteligentes, e o quanto gostava deles. Depois o vento mudava, e ela saía correndo para o lado norte da casa com os frangalhos de lenço que Denise lhe permitia ter, que ela tinha se casado cedo demais, mas agora estava mais velha e ajuizada, fazendo sucesso como sócia de um restaurante e esperando para encontrar o homem certo. E então a chuva vinha trovejando do sul, e o lenço se desintegrava enquanto ela insistia que o problema de Al era muito leve e que ele iria ficar bem, se mudasse de atitude e tomasse a medicação certa, e a chuva cada vez mais forte, e ela tão cansada, e só tinha o pano...
 
Ele estava recordando as noites em que tinha ficado no andar de cima com os dois meninos ou a menina deitada em seus braços, as cabeças úmidas cheirando a banho apoiadas em suas costelas enquanto ele lia em voz alta para eles Beleza Negra e as Crônicas de Nárnia. Como se a sua voz, a ressonância palpável de sua voz, bastasse para deixá-los sonolentos. Eram noites, e foram centenas, talvez milhares, em que nada traumático o suficiente para deixar uma cicatriz tinha acontecido naquela unidade nuclear. Noites após noites iguais, em sua poltrona de couro negro; doces noites de dúvida em meio a noites de desoladora certeza. Ocorreram-lhe agora, aqueles contra-exemplos esquecidos, porque no fim, quando você está caindo na água, não tem nada de sólido em que se agarrar além de seus filhos.