quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A contadora de filmes


Letelier, Hernán Rivera. A Contadora de Filmes. Cosac Naify; São Paulo / SP; 2012; 106 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Hernán Rivera Letelier é um escritor chileno que se tornou conhecido com o romance “A rainha Isabel cantava rancheras”. Em 2001 foi nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras pelo Ministério da Cultura de França.
 
Dados da obra:
 
Trata-se da história de uma família apaixonada por cinema. Quando o pai sofre um acidente de trabalho e a renda se reduz pela metade, apenas um dos filhos pode ir ao cinema no domingo. E este tem de contar o enredo para toda a família. Nessa tarefa, a filha mais nova, Maria Margarita, se sai melhor.
 
Passagens:
 
Eu ficava fascinada com o vazio da sala de cinema na penumbra; parecia uma espécie de caverna misteriosa, secreta, sempre inexplorada. Ao atravessar as pesadas cortinas de veludo me dava a sensação de passar da crueza do mundo real a um maravilhoso mundo mágico.
Nós nos sentávamos na primeira fila, quase grudados naquela enorme telona branca que para mim era como o altar-mor de uma igreja. O auge daquele ritual todo acontecia no maravilhoso instante em que as luzes se apagavam, as cortinas da entrada eram fechadas, a música silenciava e a tela se enchia de vida e de movimento.
 
Cheguei em casa com os olhos vermelhos. Todos me esperavam com grande expectativa. Tomei em silêncio uma xícara de chá, me pus na frente deles, e sem que meus joelhos tremessem nem nada, comecei a minha narração.
Foi então que alguma coisa se apoderou de mim. Enquanto contava o filme – gesticulando, dando braçadas, mudando a voz – ia como que me desdobrando, transformando, convertendo-me em cada um dos personagens. Naquela tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Messala, o malvado do filme. Fui as duas mulheres leprosas que Jesus curou.
Fui o mesmíssimo Jesus.
Eu não estava contando o filme, eu estava atuando o filme. Mais ainda: eu estava vivendo o filme. Meu pai e meus irmãos me ouviam e olhavam para mim de boca aberta.
 
Uma vez li uma frase – com certeza de algum autor famoso – que dizia algo assim como a vida está feita da mesma matéria dos sonhos. Eu digo que a vida pode perfeitamente estar feita da mesma matéria dos filmes.
Contar um filme é como contar um sonho.
Contar a vida é como contar um sonho ou contar um filme.
 
Sem ter pensado nisso, para eles eu tinha me transformado num fazedora de ilusões. Numa espécie de fada, como dizia a vizinha. Minhas narrações de filmes os tiravam daquele amargo nada que era o deserto, e mesmo que fosse por um instante os transportava a mundos maravilhosos, cheios de amores, sonhos e aventuras. Em vez de vê-los projetados numa tela, em minhas narrações cada um podia imaginar esses mundos ao seu bel prazer.
 
Eu olhava as pessoas emboladas na frente do aparelho – muitas delas assíduas de minhas narrações – e via como seus olhinhos brilhavam naqueles segundos em eu imagem e som coincidiam. Brilhavam como quando na minha casa, mostrando a máscara de Zorro, eu dava uma cambalhota com a espada e com três talhos certeiros deixava o Z claramente desenhado no ar.
 
Embora no deserto o sol jorre quase todos os dias do ano, aquela era uma dessas raras manhãs nubladas. Naquela altura eu já tinha claro que as coisas ruins me aconteciam em dias nublados. Se fosse verdade que “as aranhas só tecem em dias nublados”, como dizia meu pai que sua avó repetia sempre, minha má sorte viria a ser uma espécie de aranha das mais laboriosas.