quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

A invenção de Hugo Cabret



Selznick, Brian. A invenção de Hugo Cabret. Edições SM; São Paulo / SP; 2009; 533 páginas.
Breve relato do autor:
Brian Selznick é um premiado autor norte-americano e ilustrador de livros infantis.
Dados da obra:
Hugo Cabret é um menino órfão que vive escondido na central de trem de Paris dos anos 1930. Esgueirando-se por passagens secretas, Hugo cuida dos gigantescos relógios do lugar. A sobrevivência dele depende do anonimato: Hugo tenta se manter invisível porque guarda um incrível segredo, que é posto em risco quando o severo dono da loja de brinquedos da estação e sua afilhada cruzam o caminho do garoto.
Um desenho enigmático, um caderno valioso, uma chave roubada e um homem mecânico estão no centro desta intrincada e imprevisível história, que, narrada por texto e imagens, mistura elementos dos quadrinhos e do cinema, oferecendo uma diferente e emocionante experiência de leitura.
Passagens:
O cineasta Georges Méliès começou sua carreira como mágico e possuía um teatro de mágicas em Paris. Essa ligação com a magia o ajudou a perceber imediatamente o potencial do novo suporte que era o cinema. Foi um dos primeiros a demonstrar que os filmes não tinham que refletir a vida real. Logo se deu conta de que o cinema tinha o poder de capturar sonhos. Méliès é amplamente reconhecido como o aperfeiçoador do truque da substituição, que tornava possível fazer as coisas aparecer e desaparecer na tela, como por magia. Isso mudou para sempre a cara do cinema.
 
 Leia em voz alta!
Isabelle leu as histórias para Hugo, e ele se lembrou de ter ouvido alguns dos mitos quando estava na escola. Ela leu sobre o monte Olimpo e sobre criaturas como a quimera e a fênix, e depois leu a história de Prometeu. Hugo ficou sabendo que Prometeu tinha feito os seres humanos com argila e que, em seguida, roubou o fogo dos deuses e deu de presente ao povo que criara, para que a humanidade pudesse sobreviver.
 
– Você já parou pra pensar que todas as máquinas são feitas por algum motivo? – ele perguntou a Isabelle.
– Elas são feitas pra fazer a gente rir, como esse ratinho, ou indicar a hora, como os relógios, ou pra maravilhar a gente, como o autômato. Deve ser por isso que qualquer máquina quebrada sempre me deixa meio triste, porque ela não pode cumprir o seu destino.
Isabelle pegou o ratinho, deu corda novamente e pôs de volta no balcão.
– Vai ver que com as pessoas é a mesma coisa – continuou Hugo. – Se você perder a sua motivação... é como se estivesse quebrado.
 
– Como é lindo! – exclamou Isabelle. – Parece que a cidade é toda feita de estrelas!
– Ás vezes eu venho aqui, de noite, mesmo quando não estou cuidando dos relógios, só pra olhar a cidade. Sabe, as máquinas nunca têm peças sobrando. Elas têm o número e o tipo exato de peças que precisam. Então, eu imagino que, se o mundo inteiro é uma grande máquina, eu devo estar aqui por algum motivo. E isso quer dizer que você, também, deve estar aqui por algum motivo.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Um homem: Klaus Klump


Tavares, Gonçalo M. Um homem.: Klaus Klump. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2007; 115 páginas.

Breve relato do autor:

Gonçalo M. Tavares é um escritor e professor universitário português, cuja primeira obra foi publicada em 2001.

Dados da obra:

É o primeiro livro da série “O Reino”, cujo tema central é o mal. É uma perturbadora alegoria sobre a vida em tempos de guerra e de paz, sobre a ditadura e a democracia. Klaus Klump é editor, mas se mantém neutro com relação à situação do país, até que Johana, sua amante, é violentada por um soldado. Ele então vira guerrilheiro e refugia-se na floresta com outros combatentes.
 
Passagens:
 
Com força arrancou do solo um cão. Não era uma pequena árvore, era um cão.
Os animais não resistem como o mundo botânico, nem como um chapéu. O chapéu voa com o vento, o cão não, a árvore nunca. Mas por vezes vem uma perturbação média e a natureza mostra um dos seus luxos: a maldade. Voa o chapéu, os cães, e ainda as árvores.
 
Se tu não fosses tão alto, não te teria visto por cima da sebe.
E Klaus dizia a Johana:
Se tu não fosse tão alto, a sebe seria mais baixa.
Klaus acreditava mais no destino do que Johana.
Porém nunca há duas mudanças no mundo para um único efeito. Se Klaus fosse mais baixo, isso constituiria uma mudança no mundo. Se a sebe fosse também mais baixa, seriam duas mudanças no mundo. Se existissem dois factos diferentes no passado então não poderia ter sucedido o mesmo. O destino tem uma lógica própria. São necessários cálculos complexos para perceber o que poderia ter acontecido em vez do que realmente aconteceu. Há demasiadas possibilidades para que aconteça sempre o mesmo. O mundo tem variedade e é longo. O mundo deveria ser um túnel, onde entravas de manhã e saías de noite. Sem ramificações. Uma canalização orientada, como existe nas casas.
 
Herói de guerra, citava frases de filósofos, e versos.
Tinha sido ferido várias vezes pelos elementos da resistência. Quando a ferida não atinge a memória é insignificante, dizia. Os homens lembravam-se de o ouvir na enfermaria, sempre que era atingido, a recitar poemas inteiros que sabia desde a infância. Resistia à dor exercitando a memória. Era o seu método. Não parar de pensar – se além de sair sangue do nosso corpo, deixarmos de pensar: morremos.
 
De repente Klaus viu o que parecia ser uma claridade intrusa na sua noite individual, mas não. Era um som. Era o som de Alof a tocar. No meio da massa negra. Terá música luz, perguntou-se Klaus. Não uma luz de eletricidade, não uma luz de máquina, mas uma luz orgânica: como certos animais que deitam luzinhas das ancas; os pirilampos, certos peixes: terá a música uma luz orgânica? É que a música de noite é mais nítida, toda a gente o percebe. Ou então as formas quando visíveis diminuem a nitidez da música. Uma competição entre formas sólidas e as formas aéreas do som.
 
... Não entendia as coisas naturais que o rodeavam e sabia que também não era entendido. E se em tempo de paz tinham sido os livros a barreira: porque atraído pela literatura tinha-se afastado dos sons a que chamava primitivos, esses sons que vêm do exterior e de longe, quando se abre a janela, se em tempo de paz haviam sido os livros, em tempo de guerra eram as máquinas, neste caso as pequenas máquinas que eram as armas, que o haviam afastado da natureza. Porque o barulho das balas das granadas: nada desses sons disformes tem sequer o mínimo de vestígio verbal: não é humano, claramente, esse som...
 
Os conhecimentos ouvem-se, mas para agir a capacidade de audição é praticamente desprezável. Porque agir é estar próximo das coisas e ouvir é estar afastado das coisas. Alguém que apenas ouve nunca será considerado um intruso no mundo, a Natureza não se sentirá ameaçada. Quem ouve poderá acumular conhecimentos, mas essa acumulação não lutará com a Natureza. Esta resiste bem à inteligência, ao raciocínio e à memória do Homem: todas estas qualidades intelectuais são assuntos que dizem respeito exclusivamente ao mundo da cidade, e o que ameaça a Natureza são as acções: os momentos em que os humanos abandonam a audição, e mesmo a linguagem do discurso, e passam a querer falar com o sentido do tacto: o único que pode alterar as coisas...
 
Certos índices para a paz. Os homens juntam-se menos, há menos grupos. É um facto: a solidão aumenta nas nações pacíficas. Aproximamo-nos dos outros para nos defendermos. Por egoísmo nos juntamos.
 
A boca é importante em tempo de guerra: as pessoas têm fome: em tempo de democracia os lábios mantêm a importância, mas agora são ocupados pelos discursos. A linguagem é mais utilizada em tempo de paz, sobre isso não há dúvida: em tempo de guerra não há conversas, apenas informações. Frases rápidas e curtas.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A paixão segundo G.H.


Lispector, Clarice. A paixão segundo G.H. Francisco Alves Editora; Rio de Janeiro / RJ; 1990; 183 páginas.
 
Breve relato do autor:
Clarice Lispector foi uma escritora e jornalista brasileira. Nascida na Ucrânia, naturalizou-se brasileira.
Dados da obra:
Publicado em 1964, o livro trata de uma mulher identificada apenas por G. H. Depois de demitir a empregada, ela tenta limpar o quarto, onde se depara com uma barata dentro do guarda-roupa. Desse encontro, ela tece reflexões e, após esmagar a barata na porta do armário, relata a perda da individualidade.
Passagens:
Os traços – descobri sem prazer – eram traços de rainha. E também a postura: o corpo erecto, delgado, duro, liso, quase sem carne, ausência de seios e de ancas. E sua roupa? Não era de surpreender que eu a tivesse usado como se ela não tivesse presença; sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornava toda escura e invisível – arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era invisível. Janair tinha quase que apenas a forma exterior, os traços que ficavam dentro de sua forma eram tão apurados que mal existiam: ela era achatada como um baixo-relevo preso a uma tábua.
Não fora eu quem repelira o quarto, como havia por um instante sentido à porta. O quarto, com sua barata secreta, é que me repelira. De início eu fora rejeitada pela visão de uma nudez tão forte como o de uma miragem, pois não fora a miragem de um oásis que eu tivera, mas a miragem de um deserto. Depois eu fora imobilizada pela mensagem dura na parede: as figuras de mão espalmada haviam sido um dos sucessivos vigias à entrada do sarcófago. E agora eu entendia que a barata e Janair eram os verdadeiros habitantes do quarto.
A barata é um ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso. Não, não, ela mesma não tem lado direito nem avesso: ela é aquilo. O que nela é exposto fiz o meu avesso ignorado. Ela me olhava. E não era um rosto. Era uma máscara. Uma máscara de escafandrista. Aquela gema preciosa ferruginosa. Os dois olhos eram vivos como dois ovários. Ela me olhava com a fertilidade cega de seu olhar. Ela fertilizava a minha fertilidade morta. Seriam salgados os seus olhos? Se eu os tocasse – já que cada vez mais imunda eu gradualmente ficava – se eu os tocasse com boca, eu os sentiria salgados?
Pela primeira vez eu sentia com sofreguidão infernal a vontade de ter tido filhos que eu nunca tivera: eu queria que se tivesse reproduzido, não em três ou quatro filhos, mas em vinte mil a minha orgânica infernalidade cheia de prazer. Minha sobrevivência futura em filhos é que seria a minha verdadeira atualidade, que é, não apenas eu, mas minha prazerosa espécie a nunca se interromper. Não ter tido filhos me deixava espasmódica como diante de um vício negado.
Enfim, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser, eu era. Até o fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois “eu” é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo.


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Memorial do convento


Saramago, José. Memorial do Convento. Bertrand Brasil; Rio de Janeiro / RJ; 2002; 352 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
José Saramago foi um escritor, argumentista, teatrólogo, ensaísta, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1998 e o Prêmio Camões.
 
Dados da obra:
 
Romance histórico, cuja ação decorre no início do século XVIII, durante o reinado de D. João V e da Inquisição. Este manda construir o Palácio Nacional de Mafra, mais conhecido por convento, em resultado de uma promessa que fez para garantir a sucessão do trono. Um dos personagens que ajudam na construção é Baltasar, que tem a alcunha de Sete-Sóis, porque apenas consegue ver à luz. Ele vive um romance com Blimunda, chamada de Sete-Luas, porque consegue ver no escuro.
Passagens:
 

Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez Baltazar se levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo a luz e então, sendo tanta caridade, pôde Sete-Sóis dizer, Por que foi que perguntastes o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se não, se com ela não pudestes falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizestes, vieste e não perguntastes porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estas a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.
Não dormiu ele, ela não dormiu. Amanheceu, e não se levantaram, Baltasar apenas para comer uns torresmos frios e beber um púncaro de vinho, mas depois tornou a deitar-se, Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o tempo de jejum para se lhe aguçarem as lancetas dos olhos, estiletes finíssimos quando enfim saírem para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos.
 
... Este ferro não serve, tem uma racha por dentro, Como é que sabes, Foi Blimunda que viu, o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro e declarou, Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem baptizada estava, que o baptismo foi de padre, não alcunha de qualquer um. Dormiram esta noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais.
 
 
... Minha mãe, esta é minha mulher, o nome dela é Blimunda de Jesus. Deveria isto bastar, dizer de alguém como se chama e esperar o resto da vida para saber quem é, se alguma vez o saberemos, pois ser não é ter sido, ter sido não é será, mas outro é o costume, quem foram os seus pais, onde nasceu, que idade tem, e com isto se julga ficar a saber mais, e às vezes tudo...
 
... Blimunda não é judia nem cristã-nova, isto do Santo Ofício, do cárcere e do degredo foi coisa de visões que a mãe dela dizia que tinha, e revelações, e que também ouvia vozes, Não há mulher nenhuma que não tenhas visões e revelações, e que não ouça vozes, ouvimo-las o dia todo, para isso não é preciso ser feiticeira, Minha mãe não era feiticeira, nem eu o sou. Também têm visões, Só as que todas as mulheres têm, minha mãe, Ficas a ser minha filha, Sim, minha mãe,...
... Quando Baltasar entra em casa, ouve o múrmuro que vem da cozinha, é a voz da mãe, a voz de Blimunda, ora uma , ora outra, mal se conhecem e têm tanto par dizer, é a grande, interminável conversa das mulheres, parece coisa nenhuma, isto pensam os homens, nem eles imaginam que esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fossem falarem as mulheres uma com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta. Deite-me a sua benção, minha mãe, Deus te abençoe meu filho, não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos.
 
Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu.
Em baixo, começavam os homens a descer para os caboucos, onde mal se via ainda. Disse o padre, Dentro de nós existem vontade e alma, a alma retira-se com a morte, vai lá para onde as almas esperam o julgamento, ninguém sabe, mas a vontade ou se separou do homem estando ele vivo, ou a separa dele a morte, é ela o éter, é portanto a vontade dos homens que segura as estrelas, é a vontade dos homens que Deus respira...
           
Nessa noite, Domenico Scarlatti ficou na quinta, tocando oras e horas, até de madrugada, já Blimunda estava de olhos abertos, corriam-lhes devagar as lágrimas, se aqui estivesse um médico diria que ela purgava os humores do nervo óptico ofendido, talvez tivesse razão, talvez as não seja mais que isso, o alívio duma ofensa.