segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Memorial do convento


Saramago, José. Memorial do Convento. Bertrand Brasil; Rio de Janeiro / RJ; 2002; 352 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
José Saramago foi um escritor, argumentista, teatrólogo, ensaísta, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1998 e o Prêmio Camões.
 
Dados da obra:
 
Romance histórico, cuja ação decorre no início do século XVIII, durante o reinado de D. João V e da Inquisição. Este manda construir o Palácio Nacional de Mafra, mais conhecido por convento, em resultado de uma promessa que fez para garantir a sucessão do trono. Um dos personagens que ajudam na construção é Baltasar, que tem a alcunha de Sete-Sóis, porque apenas consegue ver à luz. Ele vive um romance com Blimunda, chamada de Sete-Luas, porque consegue ver no escuro.
Passagens:
 

Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez Baltazar se levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo a luz e então, sendo tanta caridade, pôde Sete-Sóis dizer, Por que foi que perguntastes o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se não, se com ela não pudestes falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizestes, vieste e não perguntastes porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estas a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.
Não dormiu ele, ela não dormiu. Amanheceu, e não se levantaram, Baltasar apenas para comer uns torresmos frios e beber um púncaro de vinho, mas depois tornou a deitar-se, Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o tempo de jejum para se lhe aguçarem as lancetas dos olhos, estiletes finíssimos quando enfim saírem para a luz do sol, porque este é o dia de ver, não o de olhar, que esse pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos.
 
... Este ferro não serve, tem uma racha por dentro, Como é que sabes, Foi Blimunda que viu, o padre virou-se para ela, sorriu, olhou um e olhou outro e declarou, Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem baptizada estava, que o baptismo foi de padre, não alcunha de qualquer um. Dormiram esta noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais.
 
 
... Minha mãe, esta é minha mulher, o nome dela é Blimunda de Jesus. Deveria isto bastar, dizer de alguém como se chama e esperar o resto da vida para saber quem é, se alguma vez o saberemos, pois ser não é ter sido, ter sido não é será, mas outro é o costume, quem foram os seus pais, onde nasceu, que idade tem, e com isto se julga ficar a saber mais, e às vezes tudo...
 
... Blimunda não é judia nem cristã-nova, isto do Santo Ofício, do cárcere e do degredo foi coisa de visões que a mãe dela dizia que tinha, e revelações, e que também ouvia vozes, Não há mulher nenhuma que não tenhas visões e revelações, e que não ouça vozes, ouvimo-las o dia todo, para isso não é preciso ser feiticeira, Minha mãe não era feiticeira, nem eu o sou. Também têm visões, Só as que todas as mulheres têm, minha mãe, Ficas a ser minha filha, Sim, minha mãe,...
... Quando Baltasar entra em casa, ouve o múrmuro que vem da cozinha, é a voz da mãe, a voz de Blimunda, ora uma , ora outra, mal se conhecem e têm tanto par dizer, é a grande, interminável conversa das mulheres, parece coisa nenhuma, isto pensam os homens, nem eles imaginam que esta conversa é que segura o mundo na sua órbita, não fossem falarem as mulheres uma com as outras, já os homens teriam perdido o sentido da casa e do planeta. Deite-me a sua benção, minha mãe, Deus te abençoe meu filho, não falou Blimunda, não lhe falou Baltasar, apenas se olharam, olharem-se era a casa de ambos.
 
Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu.
Em baixo, começavam os homens a descer para os caboucos, onde mal se via ainda. Disse o padre, Dentro de nós existem vontade e alma, a alma retira-se com a morte, vai lá para onde as almas esperam o julgamento, ninguém sabe, mas a vontade ou se separou do homem estando ele vivo, ou a separa dele a morte, é ela o éter, é portanto a vontade dos homens que segura as estrelas, é a vontade dos homens que Deus respira...
           
Nessa noite, Domenico Scarlatti ficou na quinta, tocando oras e horas, até de madrugada, já Blimunda estava de olhos abertos, corriam-lhes devagar as lágrimas, se aqui estivesse um médico diria que ela purgava os humores do nervo óptico ofendido, talvez tivesse razão, talvez as não seja mais que isso, o alívio duma ofensa.