quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

eles eram muitos cavalos


Ruffato, Luiz. eles eram muitos cavalos. Boitempo Editorial. São Paulo/SP; 2001; 150 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Luiz Ruffato é um escritor brasileiro que ganhou os prêmios APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional com o romance eles eram muitos cavalos.
 
Dados da obra:
 
Primeiro romance do autor foi publicado em 2001. Toda a ação do livro se passa num só dia, 9 de maio de 2000. Por meio de fragmentos, flashes, poemas, receitas, bulas, listas, o autor faz um recorte aéreo da cidade de São Paulo. Cenas de amor, ódio, violência, paixão, fé, esperança, tristeza, enfim, todo o caos da cidade está presente no livro.
 
Passagens:
 
“Eles eram muitos cavalos,
mas ninguém mais sabe os seus nomes,
sua pelagem, sua origem...” – Cecília Meireles
 
A vizinhança espreguiça-se
                    uma discussão, logo abortada
                    uma porta que se fecha
                    um rádio ligado
                    cachorros que latem
                    a porta de aço descerrada da padaria
                    passos rápidos na calçada
                    um bebê que esgoela
                    uma sirene, longe “Polícia?”
          o ônibus encosta, os passageiros apressam-se, arranca
          e eu decidi que não quero mais essa vida pra mim não não quero.
 
...Toma o ônibus até a estação Saúde do metrô, baldeia na Sé para a estação República. Da escada-rolante emerge, o Edifício Itália funda-se nos seus ombros, a fumaça de carros e caminhões tachos de acarajés coxinhas quibes pastéis, vozes atropelam-se, amalgamam-se, aniquilam-se, em bancas revistas, jornais, livros usados, pulseiras brincos colares gargantilhas anéis, lã em gorros ponches blusas mantas xales, pontos de ônibus lotados, trombadinhas, engraxates, carrinhos de pipoca, doces caseiros, vagabundos, espalhados caídos arrastando-se bêbados mendigos meninos drogados aleijados.
 
 ...virou assim um dia, deu horário, a filha de onze anos não chegou da escola, o rosto esbaforido na cozinha, mãe!, a noite, a madrugada, a colcha o lençol engomado, dia seguinte também não, nem no outro, nada nada nada e humilhou-se delegacias de polícia hospitais febens pronto-socroros IMLs perambulou o trajeto casa-escola-escola-casa questionadeira porta em porta pista indícios intuições...
 
No minúsculo cômodo cheirando a doença expõem-se: sobre a mesinha de cabeceira um abajur de cúpula azul, o retrato de um bebê holocáustico, um copo americano vazio, cartelas de remédio; os brancos braços magros de um cristo de gesso contrastam com a verdescura parede úmida, um frágil guarda-roupa de compensado; um tapete de barbante espichado no chão de tacos banguela. E, sob rústicos lençóis de saco-de-estopa, abandonada, esqueleto estufando a pele cinzenta, rija, ela.
 
 Suspirosa, Idalina na pele cinza do rosto macilento o algodão desliza a base espalha o creme aviva o pó compacto o blush os olhos sombreia de azul batom vermelho delineador lápis rímel
Aos poucos a amiga, tão vaidosa, abduz dos doze anos a alegre menina que sonhava casar e ser médica “para ajudar os semelhantes.”
 
 ... Desci do norte de pau-de-arara. Se o senhor soubesse o que era aquilo... Um caminhão velho, lonado, umas tábuas atravessadas na carroceria, servindo de assento, a matula no bornal, rapadura e farinha, dias e dias de viagem, meu deus do céu! Mas posso reclamar não. São Paulo, uma mãe pra mim. Logo que cheguei arrumei serviço, fui trabalhar de faxineiro numa autopeças em Santo André. Depois fui subindo de vida, porque aqui antigamente era assim, quem gostasse de trabalhar tinha tudo, ao contrário de hoje, que até dá pena, não tem emprego pra ninguém...
 
A adolescente rente ao corredor
madorna desordenados fascículos de cursinho pré-vestibular derramam-se pelos braços vez em vez escorrega para os lados da velha que sobressaltada se desculpa
(ajeita-se ainda mais para o canto)
Tenta impossíveis olhos abertos acorda cedo meio expediente no balcão de uma agência de viagens o cursinho fim de tarde volta hora e meia de ônibus a mãe pergunta minha filha tanto sacrifício vale a pena?
E migalhas de seus sonhos esparramam-se sobre os ombros da velha.
 
 – Tarcísio... você lembra do assalto?, daquele assalto lá em casa? Pois então: um era esse, cara... Um era esse! E eu não vou salvar ele não, cara, não vou mesmo! Não vou mexer uma palha pra salvar ele... Ele quase fodeu minha vida, cara, quase fodeu... Eu não vou operar ele não, estão me ouvindo? Não vou operar ele não! Se vocês quiserem, chamem outro, me denunciem pro CRM, façam o que vocês quiserem, não estou nem aí, eu não estou nem aí, estão me entendendo?, nem aí!
E desapareceu por detrás do vidro da sala de cirurgia.
O silêncio encalavou-se no anestesista.
Os olhos da instrumentadora hipnotizados pelas horas na parede.
O residente monitora os impulsos do coração do paciente agora respiração convulsa.
 
... As poesias foram escritas não pra ficar sepultadas nas páginas dos livros, mas pra se tornarem parte da nossa memória coletiva... Eu avivo todo o meu conhecimento de moleque míope que ficava em casa lendo, enquanto a molecada ia pro campinho jogar futebol...
 
Instalei-me num quarto, você se lembra?
Sexta-feira à noite, Hotel Amazonas, Ave
nida Vieira de Carvalho, lá embaixo, barulho
um restaurante italiano,
outro, comida rápida árabe,
carros,
ônibus,
lá embaixo,
nas ruas transversais,
eu sabia das prostitutas,
           dos meninos fumando crack,
          dos assaltantezinhos pé-de-chinelo,
eu sabia da noite
e deitei, mas não era alívio que sentia,
nem remorso, era não sei o quê, saudade,
talvez,
ia sentir falta das crianças, pijamas amontoados correndo, suados, na sala minúscula do apartamento ridiculamente pequeno em que morávamos e que você vivia implicando, dizendo que tínhamos de sair dali,
          tínhamos de sair dali,
                    sair dali,...
 
Não gosta de recordações. Anda pelas ruas como em um labirinto. Em todas surpreende-se, é surpreendido. Que adiantam as lembranças? Tempos... Espaços... Nada... A memória não reconstrói o passado... reaviva dores... apenas... O que fizemos... O que não...
 
Quando conheceu o futuro marido, num cult9o dominical na Casa da Benção, não escondia qualquer ilusão, uma moça velha de felicidades lasseada. E assim foi, a festa de casamento, a desmudança – estranhou: o mesmo espaço de sempre não era o mesmo espaço de sempre, mas pouco ocupou disso suas horas, o engravidamento, para honra e glória do Senhor, atropelou-a e o vômito e as tonteiras e as pernas inchadas e a rabugice e a tristeza e a alegria varreram suas preocupações...

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