quarta-feira, 27 de março de 2013

O Aleph


Borges, Jorge Luis. O Aleph. Companhia das Letras. São Paulo/SP; 2008; 156 páginas.

Breve relato do autor:
 
Jorge Luis Borges foi um escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino.
 
Dados da obra:
 
O livro traz histórias curtas contendo, entre outros, o conto que dá nome ao livro. O escritor aborda vários pontos paradoxais como a imortalidade, a identidade, o duplo, a eternidade, o tempo, a soberba, a condição humana e suas crenças, com um alto grau de criatividade e escrita superior, com elevadíssimo grau cultural, submetendo o leitor a um intrincado labirinto de ideias e reflexões.
 
Passagens:
 
... Deixei o caminho ao arbítrio de meu cavalo. No alvorecer, o horizonte ficou enricado de pirâmides e torres. Sonhei, insuportavelmente, com um labirinto exíguo e nítido: no centro havia um cântaro; minhas mãos quase o tocavam, meus olhos o viam, mas tão intricadas e perplexas eram as curvas, que eu sabia que ia morrer antes de alcançá-lo.
 
... De início cautelosamente, depois com indiferença, enfim com desespero, errei por escadas e pavimentos do inextricável palácio. (Depois averiguei que eram inconstantes a extensão e a altura dos degraus, fato que me fez compreender o singular casaco que me deram.) “Este palácio é obra dos deuses”, pensei primeiro. Explorei os recintos desabitados e corrigi: “Os deuses que o construíram morreram”. Notei suas peculiares e disse: “Os deuses que o construíram estavam loucos”.
 
Facilmente aceitamos a realidade, talvez por intuir que nada é real...
 
... O ato de um só homem (afirmou) pesa mais que os nove céus concêntricos e imaginar que ele possa se perder e voltar é uma esplêndida frivolidade. O tempo não refaz o que perdemos; a eternidade guarda-o pra a glória e também para o fogo...
 
... Um motivo notório me impede de relatar a luta. Basta lembrar que o desertor feriu de morte ou matou vários dos homens de Cruz. Este, enquanto combatia na escuridão, começou a compreender. Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todo homem deve acatar o que traz dentro de si. Compreendeu que as divisas e o uniforme o estorvavam. Compreendeu seu íntimo destino de lobo, não de cão gregário, compreendeu que o outro era ele. Amanhecia na planície desmensurada; Cruz jogou no chão o quepe, gritou que não ia consentir o crime de que matassem um valente e se pôs a lutar contra os soldados, junto do desertor Martin Fierro.
 
... Os fatos graves estão fora do tempo, seja porque neles o passado imediato fica truncado do futuro, seja porque as partes que os formam nãoparecem consecutivas.
 
... Modificar o passado não é modificar um fato só; é anular suas consequências, que tendem a ser infinitas...
 
... Morrer por uma religião é mais simples que vivê-la na plenitude; batalhar em Éfeso contra as feras é menos duro (milhares de mártires obscuros o fizeram) que ser Paulo, servo de Jesus Cristo; um ato é menos que todas as horas de um home. A batalha e a glória são facilidades; mais árdua que a empreitada de Napoleão foi a de Raskolnikov...

... O Corão (disse) é um dos atributos de Deus, como Sua piedade; pode ser copiado num livro, pronunciado com a língua, recordado no coração, e o idioma e os signos e a escrita são obra dos homens, mas o Corão é irrevogável e eterno.
 
Unwin, cansado, interrompeu-o.
– Não multiplique os mistérios – disse-lhe. – Eles devem ser simples. Lembre-se da carta roubada de Poe, do quarto fechado de Zangwill.
– Ou complexos – replicou Dunraven. – Lembre-se do universo.
 
Dunraven, versado em obras policiais, pensou que a solução do mistério sempre é inferior ao mistério. O mistério participa do sobrenatural e até do divino; a solução, da prestidigitação...
 
... Naquela noite dormiu o rei, o valente, e ficou velando Said, o covarde. Dormir é distrair-se do universo, e a distração é difícil para quem sabe que o perseguem com espadas nuas...
 
... anos de solidão haviam lhe ensinado que os dias, na memória, tendem a ser iguais, mas que não há um só dia, nem sequer de prisão ou de hospital, que não traga surpresas...

quarta-feira, 13 de março de 2013

Reparação


McEwan, Ian. Reparação. Companhia das Letras. São Paulo/SP; 2002; 444 páginas.

Breve relato do autor:

Ian McEwan é um escritor britânico, chamado por vezes de “Ian Macabro”, devido à natureza das suas primeiras obras, e que de romance a romance se tem convertido em um dos mais conhecidos da sua geração.

Dados da obra:

Na tarde mais quente do verão de 1935, na Inglaterra, a adolescente Briony Tallis vê uma cena que vai atormentar a sua imaginação: sua irmã mais velha, sob o olhar de um amigo de infância, tira a roupa e mergulha, apenas de calcinha e sutiã, na fonte do quintal da casa de campo. A partir desse episódio e de uma sucessão de equívocos, a menina, que nutre a ambição de ser escritora, constrói uma história fantasiosa sobre uma cena que presencia. Comete um crime com efeitos devastadores na vida de toda a família e passa o resto de sua existência tentando desfazer o mal que causou.

Passagens:

Uma história era algo direto e simples, que não permitia que nada se intrometesse entre ela e seu leitor – nenhum intermediário incompetente e cheio de ambições próprias, nenhuma pressão do tempo, nenhuma limitação de recursos. Na história era só querer, era só escrever e ter um mundo inteiro, numa peça era necessário utilizar o que estava disponível: não havia cavalos, não havia ruas, não havia mar. Não havia cortina...”.

Não eram só o mal e as tramoias que tornavam as pessoas infelizes; era a confusão, eram os mal-entendidos; acima de tudo, era a incapacidade de apreender a verdade simples de que as outras pessoas são tão reais quanto nós. E somente numa história seria possível incluir essas três mentes diferentes e mostrar como elas tinham o mesmo valor. Essa era a única moral que uma história precisava ter.

A excitação que ele sentia assemelhava-se a dor e era exacerbada pela pressão das contradições: Cecília era familiar como uma irmã, exótica como uma amante; ele sempre a conhecera, ele não sabia nada sobre ela; ela era feia, ela era bela; era forte – com que facilidade se defendera do irmão – e, vinte minutos antes, havia chorado; a carta idiota de Robbie a repugnara, porém tivera o efeito de libertá-la. Ele lamentava seu erro, ele exultava por tê-lo cometido...

Os gêmeos não corriam perigo; Cecília estava com Leon, e ela, Briony, tinha liberdade de andar pelo parque escuro e pensar sobre o dia extraordinário que tivera. Sua infância chegara ao fim – decidiu enquanto voltava da piscina, no momento em que rasgou o cartaz. Havia deixado para trás os contos de fadas, e no intervalo de umas poucas horas havia testemunhado mistérios, lido uma palavra indizível, interrompido uma brutalidade e, tornando-se alvo do ódio de um homem em quem todos até então confiavam, passara a participar do drama da vida adulta...

Estavam se aproximando das últimas casas da vila. Num campo mais adiante, Turner viu um homem e seu collie caminhando atrás de um arado puxado por um cavalo. Tal como as mulheres na sapataria, o fazendeiro parecia não se dar conta da presença da coluna. Essas vidas eram vividas em paralelo – a guerra era um hobby para entusiastas, e nem por isso deixava de ser uma coisa séria. Tal como, no momento mais intenso de uma caçada, quando os cães se preparavam para lançar-se sobre a presa, do outro lado da sebe passa um automóvel no qual, no banco de trás, uma mulher faz tricô, e no jardim de uma casa nova um homem ensina o filho a chutar a bola. O fazendeiro continuaria a arar o campo, depois haveria alguém para fazer a colheita, alguém para processar o trigo no moinho, outras pessoas comeriam o pão, e nem todo mundo estaria morto...