sexta-feira, 24 de maio de 2013

O médico e o monstro

Stevenson, Robert L. O médico e o monstro. Editora Ática. São Paulo /SP; 1994; 96 páginas.

Breve relato do autor:

Robert L. Stevenson foi um novelista, poeta e escritor de roteiros de viagem. Escreveu clássicos como A Ilha do Tesouro, O Médico e o Monstro e As Aventuras de David Balfour (esta dividida em duas partes, Raptado e Catriona).

Dados da obra:

O médico e o monstro é uma novela gótica, com elementos de ficção científica e terror publicada originalmente em 1886. Na narrativa, um advogado londrino chamado Gabriel John Utterson investiga estranhas ocorrências entre seu velho amigo, Dr. Henry Jekyll, e o malvado Edward Hyde. A obra é conhecida por sua representação vívida do fenômeno de múltiplas personalidades, quando em uma mesma pessoa existem tanto uma personalidade boa quanto má, ambas muito distintas uma da outra.

Passagens:

... Suas patrulhas noturnas haviam lhe ensinado que o ruído das passadas de uma pessoa sozinha, mesmo que ela ainda estivesse muito distante, tinha um efeito muito perturbador quando subitamente se destacava do murmúrio e da algazarra geral da cidade. Mesmo assim, nunca antes ele tivera sua atenção despertada de forma tão aguda e definida. Foi com forte, supersticiosa premonição de sucesso que ele recuou para a entrada do pátio interno.

Essa última parte não era tão simples de levar a cabo, pois mr. Hyde tinha poucos conhecidos. Mesmo o patrão da criada só o vira duas vezes, foi impossível localizar sua família; ele jamais fora fotografado, e as poucas pessoas que tinham condições de descrevê-lo discordavam muito umas das outras, como em geral acontece com os observadores comuns. Só num ponto estavam todos de acordo: a impressão obsessiva de deformidade indefinida que o fugitivo deixara naqueles que haviam entrado em contato com ele.

Uma coisa é reprimir a curiosidade, outra é acabar com ela.

Tive a impressão de que era obrigado a optar por um dos dois. Minhas duas naturezas tinham em comum a memória, mas todas as outras faculdades estavam repartidas da forma totalmente desigual. Jekyll (que era um composto), às vezes com as mais delicadas apreensões, às vezes com um gozo sôfrego, projetava-se e partilhava os prazeres e aventuras de Hyde. Mas Hyde era indiferente a Jekyll; no máximo, lembra-se dele como o bandoleiro lembra-se da gruta onde costuma se esconder dos que o perseguem. Jekyll sentia mais que o interesse de um pai. Hyde sentia mais que a indiferença de um filho. Optar por Jekyll era morrer para os apetites a que eu me entregava havia tanto tempo e que ultimamente vinha cultivando. Optar por Hyde era morrer para mil interesses e aspirações e tornar-me, de um só golpe e para sempre, um homem desprezado e sem amigos. A transação talvez parecesse desigual, mas havia outro fator por considerar: embora Jekyll fosse sofrer intensamente nas chamas da abstinência, Hyde nem sequer teria consciência de tudo o que perdera...

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Persépolis

Satrapi, Marjane. Persépolis. Companhia das Letras. São Paulo /SP; 2007; 352 páginas.

Breve relato do autor:

Marjane Satrapi é uma romancista gráfica, ilustradora e escritora infanto-juvenil. Ficou conhecida como a primeira iraniana a escrever banda desenhada. A versão em desenho animado de sua série de quadrinhos Persépolis foi indicada para o Oscar.

Dados da obra:

Persépolis é a autobiografia em quadrinhos de Marjane Satrapi, iraniana que tinha apenas dez anos quando se viu obrigada a usar o véu islâmico, numa sala de aula só de meninas. Um panorama da Revolução Islâmica e das transformações passadas no país. Na HQ o pop encontra o épico, o oriente toca o ocidente, o humor se infiltra no drama - e o Irã fica mais próximo.
Passagens:

Eu nunca li tanto quanto naquela época. Meu autor preferido era Ali Achraf Darvichiyan, uma espécie de Dickens do Irã. Eu e a minha mãe fomos à sessão de autógrafos clandestina.
...
Ele contava histórias tristes mas reais: a do Rezah, que tinha 10 anos quando virou carregador, a da Leila, que com 5 tecia tapetes, Hassan, que com 3 limpava vidros de carro...

... A Pardis fez a redação mais linda. Era uma carta para o pai dela, em que ela prometia que ia cuidar da mãe e do irmãozinho.
– Descanse em paz, papai.
No recreio, tentei consolá-la...
– Seu pai agiu como um herói, você tem que se orgulhar dele!
– Eu preferia meu pai vivo na prisão do que herói no cemitério.
Foi o que ela me disse, palavra por palavra.
 
Na vida você vai encontrar muita gente idiota. Se te ferirem, pensa que é a imbecilidade deles que os leva a fazer o mal. Assim você vai evitar responder às maldades deles. Porque não tem nada pior no mundo do que a amargura e a vingança... seja sempre digna e fiel a você mesma.

Vamos, está na hora. Nunca esqueça quem você é nem de onde vem.

Minhas economias logo se acabaram. Eu não tinha mais nem um tostão. É incrível como a gente pode perder a dignidade tão rápido. Me peguei fumando bitucas, procurando comida nas lixeiras, eu, que antes nem sequer provava do prato dos outros.

Eu vivi um revolução que me fez perder uma parte da família.
...
Sobrevivi a uma guerra que me afastou do meu país e dos meus pais...
...
E foi uma banal história de amor que quase me levou embora.

Naquele dia aprendi uma coisa fundamental: só podemos ter dó de nós mesmos quando ainda é possível suportar a infelicidade...
Quando ultrapassarmos esse limite, o único jeito de suportar o insuportável é rir dele.

Normal! Quando temos medo, perdemos o senso de análise e de reflexão. O terror nos paralisa. Aliás, o medo sempre foi o motor da repressão em todas as ditaduras.
Mostrar os cabelos ou se maquiar viraram, obviamente, atos de rebeldia.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Padre Antonio Vieira

Pais, Amélia Pinto. Padre Antônio Vieira – o imperador da Língua Portuguesa. Companhia das Letras. São Paulo /SP; 2010; 95 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Amélia Pais Pinto foi professora de francês e português durante 36 anos. Escreveu ensaios sobre Camões, Fernando Pessoa e Gil Vicente e também uma história da literatura em Portugal.
 
Dados da obra:
 
Na primeira parte do livro, é o próprio Vieira quem narra os principais acontecimentos de sua vida em uma espécie de autobiografia póstuma. Na segunda, são apresentados trechos de alguns de seus mais conhecidos sermões - entre eles o Sermão de Santo Antônio aos Peixes e o Sermão da Sexagésima -, além de citações extraídas de sua obra e excertos de sua correspondência. O volume inclui ainda dois anexos: um texto explica a estrutura de um sermão e outro contextualiza a ação da Inquisição.
 
Passagens:
 
[...]
Todos os sentidos do homem têm um só ofício, só os olhos têm dois.
O ouvido ouve, o gosto gosta, o olfato cheira, o tato apalpa, só os olhos têm dois ofícios: ver e chorar. [...]
 
Arranca o estatutário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem: primeiro, membro a membro e, depois, feição por feição, até a mais miúda. Ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos. Aqui desprega, ali arruga, acolá recama. E fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar.
 
Não fez Deus o céu em xadrez de estrelas como os pregradores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está branco, da outra há de estar negro; se de uma parte está dia, da outra há de estar noite; se de uma parte dizem luz, da outra hão de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, das outras há de dizer subiu. Basta que não havemos de ver um sermão duas palavras em paz? Todas hão de estar sempre em fronteira com o sue contrário? Aprendamos do céu o estilo da disposição, e também o das palavras. Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas em muito claras e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem e tão alto que tenham muito que entender os que sabem.
 
Ver e não remediar é não ver.
 
O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive; e, não tendo ação, move os ânimos e causa grandes efeitos.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Tempo de reportagem

Dantas, Audálio. A prática da reportagem. Leya. São Paulo / SP; 2012; 287 páginas.

Breve relato do autor:

Audálio Dantas é um jornalista brasileiro que foi presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo à época do assassinato pela ditadura militar do jornalista Vladimir Herzog. Foi ainda o primeiro presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) e deputado federal. Atualmente Audálio é vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e diretor executivo da revista Negócios da Comunicação.

Dados da obra:

Tempo de reportagem reúne 13 reportagens e 13 reflexões sobre o reportar. Dos trabalhos publicados, conta com algumas das melhores produções de Dantas, do final da década de 1950 até meados dos anos de 1970, em revistas como a popularíssima O Cruzeiro e a mítica Realidade, além de um texto especial para a revista Playboy, em 1993. Em textos inéditos, o autor faz uma reflexão sobre os bastidores da apuração dos fatos e sobre os desafios de transformar vida em texto jornalístico - suas escolhas, seus erros, suas dúvidas

Passagens:
 
“A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso. A palavra foi feita para dizer.” (Graciliano Ramos).

– A verdade eu digo e não piso nela, senão escorrego e caio.
Quando escrevi o texto, dias depois daquele encontro na caatinga, não conseguia deixar de remoer a frase de Bruega. Ela poderia constar de um manual de redação qualquer.

No rosto marcado da mulher havia apenas tristeza. A menina morta em cima de um banco de madeira era o sétimo anjo da casa onde nasceram dez. Já não havia lágrimas para ela. Só a tristeza sem muita expressão no rosto da mãe, uma velha de 26 anos. Foi um dos primeiros casos que o Dr. Victor acompanhou. Ele teve a impressão nítida de que ali ninguém dava importância à morte de uma criança, a morte encarada sem muita emoção porque frequente e farta.
– Morreu de quê?
– Doença de menino.

Audálio: Um dos segredos acho que está colocado na frase do Acácio Ramos. “Repórteres são seres que perguntam. Não basta perguntar. É preciso, primeiro, saber por que está perguntando; segundo, saber perguntar (risos); e terceiro, conferir se a resposta está correta. Porque, se não tiver certeza disso, o repórter corre pelo menos o risco de passar à frente uma coisa que não seja verdadeira. Mas posso contar uma historinha do Bruega?”