segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O mar

Banville, John. O mar. Editora Nova Fronteira; Rio de Janeiro / RJ; 2007; 222 págs.

Breve relato do autor:
 
John Banville é autor irlandês cuja obra combinam-se dicção exuberante, marcada pelo lirismo e por jogos de linguagem, com enredos complexos. Seu maior sucesso O mar (2005) lhe rendeu o Man Booker Prize. Sob o pseudônimo de Benjamin Black, publicou ainda mais sete romances policiais que compõem uma intrincada teia de adultérios envolvendo o protagonista.
 
Dados da obra:
 
Em O mar, John Banville constrói uma narrativa emocionante, trabalhando a linguagem como um grande artista. O livro conta uma história com vários momentos, na qual o narrador, Max Morden, procura viver o presente e o futuro no passado, na busca por recuperar-se da constante presença da morte.
 
Passagens:
 
Mr. Todd se virou um pouco na cadeira, remexendo os documentos contidos naquela pasta de papelão rosa-claro que me fez lembrar das frias manhãs de volta às aulas, depois das férias de verão, da sensação dos livros novos e do cheiro de certo modo repleto de presságios da tinta e dos lápis recém-apartados. Incrível como a mente vagueia, mesmo nas situações mais intensas...

Acabei de perceber que dia é hoje. Está fazendo exatamente um ano daquela visita que Anna e eu fomos obrigados a fazer a Mr. Todd em seu consultório. Que coincidência... Ou talvez não. Existem coincidências no reino de Plutão, por cujos ermos vaguei perdido, como um Orfeu sem lira? E já se passaram doze meses! Devia ter escrito um diário. O meu diário de um ano catastrófico.
 
Cismei que ia entrar naquela casa, andar por onde Mrs. Grace andava, sentar onde ela sentava, tocar nos objetos em que ela tocava. Para conseguir o meu intento, decidi me aproximar de Chloe e de seu irmão. Isso era fácil, como são essas coisas na infância, mesmo para uma criança retraída como eu. Nessa idade não precisamos puxar conversa nem lançar mão de qualquer ritual para uma aproximação ou um encontro educados; basta ficar por perto e esperar para ver o que acontece...
 
... Portanto, o que antevia em termos de futuro era, na verdade, se é que a verdade tem alguma coisa a ver com isso, uma representação daquilo que só podia ser um passado imaginado. Pode-se dizer que eu não estava exatamente antecipando um futuro, mas, antes, assumindo uma atitude nostálgica com relação a ele, um vez que, nos meus sonhos, o que estava por vir era aquilo que já tinha passado. E, de repente, isso vem mostrar, agora, como alguma coisa de certa forma significativa. Será que era mesmo pelo futuro que eu estava ansiando, ou seria algo que estivesse além dele?

 .. Mas não havia dor alguma, ainda não; só aquilo que ela descrevia como uma sensação generalizada de desassossego, uma espécie de efervescência interior, como se o seu corpo desconcertado estivesse vasculhando dentro de si mesmo, tentando desesperadamente armar defesas contra um invasor que já havia conseguido penetrar ali por alguma passagem secreta, estalando as suas negras tenazes.

Eu me lembro de Anna; a nossa filha, inimagináveis gerações. Eu me lembro de Anna; a nossa filha, Claire, vai se lembrar de Anna e de mim; depois, Claire vai embora e haverá aqueles que vão se lembrar dela, mas não de nós, e esta será a nossa dissolução final. Alguma coisa de nós vai permanecer, sem dúvida: uma fotografia desbotada, uma mecha de cabelo, algumas impressões digitais, uma garoa de átomos no ar do quarto onde demos o último suspiro. Mesmo assim, nada disso será nós, nada disso será aquilo que somos e que fomos, mas apenas a poeira dos mortos.

Em outras épocas, bem que gostava do que via no espelho, mas isso não acontece mais. Agora, fico espantado, mais do que espantado, diante do rosto que surge ali, de forma tão abrupta, e que nunca é o que estava esperando encontrar. Fui substituído por uma paródia de mim mesmo, uma figura lamentavelmente desgrenhada, usando uma máscara de halloween feita de borracha flácida e de um cinza meio rosado, que tem apenas uma ligeira semelhança com a lembrança do que eu era antes e que, só de teimoso, insisto em conservar na memória.
 
... A escada era mais íngreme, o patamar mais acanhado, a janela do banheiro não dava para a rua, como eu pensava, mas sim para os fundos, para o lado do Campo. Tive uma sensação quase de pânico quando o real, esse real indelicadamente complacente, se apoderou das coisas de que eu pensava me lembrar e deu a elas o formato que bem quis. Algo precioso estava se desmanchando e escorria por entre os meus dedos. E, no entanto, com que facilidade deixei que aquilo tudo se fosse... O passado, quero dizer, o passado de verdade, tem muito menos importância do que acreditamos...

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A vida privada das árvores



Zambra, Alejandro. A vida privada das árvores. Cosac Naify. São Paulo / SP; 2013; 93 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Alejandro Zambra é um poeta e contista chileno, selecionado em 2007 pelo Festival de Hay como um dos escritores latino-americanos mais importantes e eleito em 2010 pela revista Granta entre os 22 melhores escritores de língua espanhola com menos de 35 anos.
 
Dados da obra:
 
A vida privada das árvores é a história de uma espera. Julián, um professor de literatura e aspirante a escritor, aguarda a chegada de Verónica, sua mulher. Mas ela não chega e a espera se alonga. Junto com a enteada, a pequena Daniela, Julián distrai as horas contando histórias de árvores para a menina. Enquanto a mulher não chega, Julián recompõe na memória seu passado e, na imaginação, inventa um futuro possível no qual sua companheira já não existe.
 
Passagens:
 
Leu atentamente Ungaretti, Montale, Pavese, Pasolini, e poetas mais recentes, como Patrizia Cavalli e Valerio Magrelli, mas de maneira nenhuma é especialista em poesia italiana. Além do mais, no Chile não é tão grave dar aulas de poesia italiana sem saber italiano porque Santiago está cheia de professores de inglês que não sabem inglês, de dentistas que mal sabem extrair um dente e de personal trainers com sobrepeso, e de professores de ioga que não conseguiram dar aulas sem generosa dose prévia de ansiolíticos.
 
... Julián não queria recuperar o amor, pois deixara de amá-la havia muito tempo. Deixara de amá-la um segundo antes de começar a amá-la. Soa estranho, mas é assim que ele sente: em vez de amar Karla, ele amara a possibilidade do amor. Amara a ideia de um vulto se movendo entre lençóis brancos e sujos.
 
Verónica é uma mulher que não chega, Karla é uma mulher que não estava.
A mãe de Karla é uma mulher que foi embora e que voltou quando ninguém a esperava.
Karla é uma mulher que não esteve.
Karla é uma mulher que esteve, mas não esteve. Saiu, foi procurar sua mãe, do mesmo modo que outros saem para caçar.
Saiu, foi comprar cigarros. Karla não esteve, não estava: saiu para comprar cigarros, foi procurar a mãe, foi à caça.
O pneu de Verónica furou. Ela sabe que não posso ir procurá-la. Não posso deixar a menina sozinha. Verónica vai trocar o pneu.
Verónica é uma mulher no meio da avenida trocando um pneu. Centenas de carros passam a cada minuto, mas ninguém se detém para ajudá-la. É isso que está acontecendo, pensa Julián, que r
resolve se apegar a imagem de Verónica perdida, trocando pneu, sozinha, numa avenida distante.
 
... Fecha os olhos e pressiona as pálpebras durante vinte, trinta segundos. E volta, com cuidado, com medo, a este relato de contornos fixos, que às vezes se assemelha a um livro que ensina a pintar. Há três lugares, e três pequenas bibliotecas populares: azul, branco, verde, bege, vermelho e café. A literatura chilena é cor de café. A sala é branca e talvez a neve também seja branca. As ruas não são brancas: as ruas são azul claro ou azul escuro, verde-água, verde-esmeralda, vermelhas, rosadas, amarelas: Ahumada é vermelha, Recoleta é rosada, e Tobalada, a rua paralela à passagem onde vive agora, é azul celeste, como a Bilbao. Diez de Julio e Vicuña Mackenna são ruas cor de laranja.
 
Não pode negar gosta cada vez mais da solidão; as semanas com Ernesto, por sua vez, têm sido travadas, ásperas. Não que haja violência ou tédio. É uma espécie de falha, uma velatura que alguém espalhou sobre a tela onde Ernesto e Daniela posam para a posteridade. Sabe que muito breve Ernesto não voltará mais. Imagina-se desconcertada, e depois furiosa, e finalmente invadida por uma decisiva quietude. Tudo bem, era sem compromisso, como deve ser: ama-se para deixar-se de amar e se deixa de amar para começar a amar outros, ou para ficar sozinho, por um tempo ou para sempre. Esse é o dogma. O único dogma.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Ladrão de cadáveres

Melo, Patrícia. Ladrão de cadáveres. Editora Rocco. Rio de Janeiro / RJ; 2010; 205 páginas.

Breve relato do autor:
 
Patrícia Melo é roteirista, dramaturga e escritora, e em 1999 a Time Magazine a incluiu entre os 50 líderes latino-americanos do novo milênio. É autora de Acqua Toffana, O matador – vencedor do Prêmio Deux Océans e Deutsch Krimi, Elogio da mentira, Inferno – vencedor do Prêmio Jabuti, Valsa Negra, Mundo perdido e Jonas e o copromanta. Ladrão de Cadáveres é o seu oitavo romance.
 
Dados da obra:
 
Em Ladrão de cadáveres, o narrador-protagonista do romance é um ex-gerente de uma central de telemarketing, despedido depois de agredir uma funcionária que acabou cometendo suicídio. Deprimido, ele troca São Paulo por Corumbá a convite de um primo. A trama começa quando o protagonista testemunha a queda de um avião no rio Paraguai. Dentro da cabine, o piloto está morto. Ao lado do corpo, uma mochila com um pacote de cocaína. A partir daí, o que se vê é o despertar do pior lado de um ser humano, em uma história que mistura ganância, crime, sexo e mentiras.
 
Passagens:
 
A primeira coisa que me ocorreu naquele momento foi que a gente nunca entende como um cidadão responsável e trabalhador saca uma arma e mata um motorista numa briga de trânsito. É muito simples, na verdade. Acontece da mesma forma que eu estapeei minha funcionária. A arma está ali, no porta-luvas. De repente, um rapaz te fecha num cruzamento, você salta do carro e dá um tiro na testa dele. É simples assim.
 
Mais do que a imagem do cadáver abandonado no rio, o que me angustiava era pensar no que se passava no interior daquela casa. Temos certeza de que ele está bem, dissera a namorada na televisão. A mãe chorando. Disso eu entendia, câmbio. De mães que se acabam assim, podres de tanto chorar. Antes de aprender que as pessoas morrem, aprendi que elas desaparecem. Saem de casa e evaporam. Nos deixam atônitos, observando a cama vazia, que é quase um grito, uma porrada, pela manhã. Você sonha com elas todas as noites. Sonha que elas estão vivas, sonha que elas telefonam, sonha que elas voltam para casa. São sempre os mesmos sonhos, você acaba mesmo acreditando que elas estão vivas. E tem também as pesquisas, que dizem que setenta por cento dos desaparecidos voltam. Você pode até não acreditar mais em Deus, mas acredita nas pesquisas. Agarra-se àquelas porcentagens como se fossem uma oração. E aqueles números, mais aqueles sonhos, fazem com que aquela pessoa vire uma espécie de morto-vivo. Um zumbi. Tudo isso eu conhecia muito bem.
 
... O que importava se eu abandonara o cadáver no rio? Não matei ninguém, câmbio. Ainda que tivesse arrancado o rapaz do avião e o carregado no lombo até a cidade, nada iria mudar. Estaria morto do mesmo jeito. Todos vamos morrer um dia. Que importava se eu tinha afanado a cocaína? Que atire a primeira pedra, câmbio. Todos nós roubamos alguma coisa, em algum momento. Quase todos. Pelo menos uma vez.
Ou vamos roubar. O Brasil é cheio de gente escrota, essa é a verdade.
 
... Na vida real, você não entra. Em compensação, faz coisas piores. Você assalta um cadáver. Você contrata um índio fodido para vender o pó que roubou do cadáver. Fode-se com a mulher do seu primo. Você faz tudo isso porque acha que pode cometer um erro, só um, mais um só, e mais outro, só mais uma cagada de nada e depois é só voltar e continuar o seu caminho, o seu filme, porque a trilha da vida continua lá, imóvel, esperando você fazer suas cagadas para depois voltar.

Não havia ninguém na igreja. Só o frescor, a penumbra, e ela, ajoelhada, rezando. Fiquei com pena, com vontade de encurtar o caminho que ela teria de percorrer. Pensei que se eu contasse que o rapaz estava morto, se a levasse lá e mostrasse o cadáver e ela o enterrasse como manda o figurino, com velório e flores, se ela chorasse no túmulo, não teria, como minha mãe, que manter a caçarola quente por muito tempo. A morte, crua, não é o mais difícil. Pior é o mistério. A dúvida. Eles é que acabam conosco.

Eu mesmo me sentia contaminado. Na minha opinião, era também um surto o que estávamos vivendo em Corumbá. De outro tipo, mas igualmente perverso. Em todos os jornais, no rádio, na televisão, só se falava no acidente do piloto. A diferença é que ninguém se matava. Dava pena ver a dona Lu. Emagreceu um bocado. Eu tinha praticamente que carregá-la até o carro, nas vezes em que íamos para a igreja. E nessas ocasiões, os urubus a cercavam, quase pediam autógrafo. Está doendo muito? , era o que eles queriam saber. Quanto dói ter um filho desaparecido? Bandos atrás de carniça. Gostavam de sentir dó daquela mulher rica e bonita, que estava bem fodida, apesar de ser rica e bonita. Sentiam-se bem com isso. A desgraça de dona Lu permitia que eles se sentissem piedosos. Esse, aliás, é outro sintoma da epidemia. A bondade patológica que surge na comunidade. Em vez da febre e da diarreia, de repente, aparece esse sintoma, a compaixão.
 
Pensei no quanto minha própria mãe teria sido feliz se um dia alguém tivesse nos telefonado do necrotério, se tivéssemos ido até lá, reconhecido o cadáver do meu pai, para depois enterrá-lo e acabar com o assunto. É esse o significado da palavra enterrar. Colocar ponto final. Enterrem os mortos e cuidem dos vivos, quem disse isso? Enquanto não enterramos os mortos, os vivos ficam lá, sangrando. Acabam conosco os mortos. Com a dona Lu. Eu havia notado que nos últimos dias, ela não se importava mais em encontrar o filho vivo. O cadáver do filho já bastava. Estava naquele ponto em que o cadáver era melhor que nada. Antes o cadáver. Era assim mesmo que as coisas se davam. Eu sabia disso por experiência própria, há momentos que até uma péssima notícia é bem-vinda. Achamos um braço. Um pedaço do crânio. Achamos o assassino. A cova. Qualquer coisa serve.

Uma coisa é você saber que o presidente é corrupto, que o governador é corrupto, que o secretário é corrupto. Mas o cara que trabalha com você há sete anos? Ali do seu lado? Que almoça, que janta com você? Que frequenta sua casa? O Joel? Que me ensinou tudo? Eu colocaria minha mão no fogo por Joel. Se Joel, o Tranqueira, que me chama de Doçura, é corrupto, se é assim, todo mundo naquela delegacia deve levar grana. Hoje em dia, não existe mais um ladrão sem parceiro, corrupção é um negócio em rede, uma matilha. Por que então me preocupar se meu namorado rouba um quilo de pó de alguém que já morreu?...

... Você nunca ouvir dizer que “o homem só começa a ser homem quando enterra seus cadáveres”? É a mais pura verdade. Não há civilização sem os rituais da morte. Sem enterros. Sem eles, voltamos para a caverna. Sem eles, você não honra o defunto, a memória, você não presta homenagem a ele, você não tem túmulo para visitar. Viramos uma espécie de zumbi se deixamos nossos cadáveres por aí, apodrecendo sobre a Terra. No plano pessoal, a tragédia é maior. Lembro que num dia de finados, encontrei minha mãe chorando na cozinha e ela me disse: “se ao menos houvesse um túmulo para visitarmos.” Minha mãe não sofria porque meu pai tinha morria. Sofria porque não podia decretar aquela morte.
 
Durante muito tempo, acreditei que a maldade era um aprendizado lento. Naqueles dias, compreendi finalmente que é a bondade que se aprende com dificuldade, com exercícios diários, que as pessoas, por vezes, chama de Deus ou de Buda, dependendo de suas crenças. A maldade, essa, já nascemos com ela inoculada dentro de nós, como um vírus inativo, que apenas espera o momento de aflorar. De outra forma, como explicar o meu comportamento e o de Sulamita? Como explicar que duas pessoas boas possam agir de forma tão escabrosa?
 
Quem não passou por isso, expliquei para Sulamita mais de cem vezes, não entende. Você não faz a mínima ideia do que é uma morte sem corpo. Claro que faço, ela disse, é como um crime sem corpo: não existe. É mais, eu falei, é como estar no purgatório. Há dias em que você aceita que aquela pessoa morreu. Então você chora e reza. Em outros, você ouve um barulho na porta e tem certeza de que ela está voltando. Você corre para a sala e não há ninguém ali. E se o telefone toca no meio da noite, você sai correndo, cheio de esperança. E você nunca para de sofrer. Nem de acreditar. A vida não interessa muito, mas você também não pode morrer completamente, porque há sempre a possibilidade da porta se abrir ou o telefone tocar. E você quer estar ali quando isso acontecer.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O mapa do tempo

Palma, Félix J. O mapa do tempo. Intrínseca. Rio de Janeiro / RJ; 2010; 472 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
Félix J. Palma é um escritor espanhol, conhecido pelos livros “O Mapa do Tempo” e o “Mapa do Céu”. Suas principais influências são de autores de língua inglesa, mas tem uma forte identificação com o argentino Júlio Cortázar.
 
Dados da obra:
 
O autor de A máquina do tempo, H. G. Wells, é um dos protagonistas da obra, que reuniu personagens como Jack, o Estripador; Júlio Verne; o Homem Elefante; o Homem Invisível; Bram Stoker, o criador de Drácula, e o romancista Henry James, em uma trama que mistura romance e aventura na Londres vitoriana. Uma viagem literária e tanto.
 
Passagens:
 
Recordava tudo de maneira extraordinariamente vívida, como se entre eles não houvesse um abismo de oito anos, e às vezes achava aquelas memórias até mais bonitas que os fatos verdadeiros. Que estranha alquimia fazia essas cópias parecerem mais extraordinárias que o original? A resposta era óbvia: a passagem do tempo, que transforma o borbulhar do presente em um quadro terminado e inalterável chamado passado, uma tela que o homem sempre pinta às cegas, com pinceladas erráticas que só adquirem sentido ao afastar-se dela o suficiente para admirá-la em seu conjunto.
 
... Andrew teve a sensação de que a natureza se mobilizara para realizar aquele truque de prestidigitação diante de um único espectador. A partir de então, ficou convencido de que o universo fazia os vulcões entrarem em erupção para reverência da humanidade, mas se esmerava na hora de se comunicar com um punhado de eleitos, indivíduos que como ele escrutinavam a realidade como se fosse uma folha de papel pintado que encobria uma outra coisa.
 
Todo mundo sabe que um objeto tem três dimensões – explicou Charles, pegando o chapéu e girando-o nas mãos com gestos de ilusionista: – altura, largura e comprimento. Mas para que esse objeto exista de verdade, para que este chapéu faça parte desta realidade em que nos encontramos agora, precisa ter mais uma coisa: duração. Além de estender-se no espaço, precisa perdurar no tempo.
 
... Nela aparecia uma fotografia dos seres que estavam logo abaixo. A manchete falava do irrefreável avanço do exército de autômatos e acabava pedindo aos leitores que não perdessem a fé na resistência humana, liderada pelo bravo capitão Derek Schackleton. Porém, o que mais os surpreendeu foi a data do jornal. O exemplar a que pertencia aquela folha extraviada havia sido impresso em 3 de abril do ano 2000.
 
... Os que labutam nos jornais e suplementos literários deveriam lembrar que toda obra é, em geral, uma união de esforço e esperança, a encarnação de um empenho solitário, de um sonho às vezes longamente incubado, quando não uma aposta desesperada destinada a dar sentido à existência, antes de nela cuspirem sem dó nem piedade, instalados em suas confortáveis atalaias. Mas não poderiam enfrentá-lo. Não, certamente não. Não conseguiriam deixá-lo confuso, porque ele tinha o cesto.
 
... e se não tivesse escorregado, aquele Wells de oito anos não quebraria a tíbia ao bater numa das cavilhas que pendiam as cordas da barraca de cerveja; e se não houvesse fraturado a perna, sendo obrigado a passar o verão inteiro na cama, não teria o álibi perfeito para entregar-se à única distração a seu alcance naquelas circunstâncias: a leitura, entretenimento insano que em qualquer outra situação levantaria as suspeitas de seus pais, impedindo-o de descobrir Dickens, Swift ou Washington Irving, escritores que plantaram uma semente em seu espírito que, com o passar do tempo e apesar das limitadas regas e cuidados que pôde lhe proporcionar, terminaria germinando.
 
Merreick era o tipo de leitor que conseguia esquecer com uma terrível facilidade que existe uma mão puxando os fios dos personagens que dançam nesses teatrinhos que são os romances. Na infância, ele também tinha sido um leitor assim. Mas um dia decidiu ser escritor, e desse momento em diante foi impossível mergulhar nas histórias dos livros com o mesmo abandono inocente: tinha compreendido que os atos e impressões dos personagens não pertencem a eles. Todos os seus pensamentos e ações obedecem na verdade ao ditame de um quarto, manipula as peças que havia disposto sobre o tabuleiro, geralmente com uma enorme frieza que não corresponde às emoções que pretende provocar nos leitores.
 
Depois de dizer isso, lembrou-se do que Luciano de Samósata afirma em Uma história verídica:  “Escreve sobre o que não vi, nem constatei, nem soube por outros, e também sobre o que não existe nem tem fundamento para existir”, uma frase que lhe ficou na memória porque resumia perfeitamente sua ideia de literatura. De fato, como disse o anfitrião, ele só se interessava em escrever sobre assuntos impossíveis. Para os outros já havia Dickens, quis acrescentar, mas não o fez. Treves lhe dissera que Merck era um grande leitor. Não queria ofendê-lo caso Dickens fosse um de seus autores preferidos.
 
... Os senhores já se perguntaram o que torna os homens responsáveis? Eu lhes direi: o fato de terem uma única oportunidade de fazer cada coisa. Se existissem máquinas que nos permitissem corrigir até nossos erros mais estúpidos, viveríamos em um mundo cheio de irresponsáveis...
 
... Quando criança, o pai a levara para ver o Escrivão, um dos autômatos criados pelo célebre relojoeiro suíço Pierre Jaquet Droz. Claire ainda se lembrava daquele menino de rosto bochechudo e compungido elegantemente vestido, que, sentado diante de uma carteira, molhava a pena no tinteiro e a fazia correr sobre o papel. O boneco forjava cada letra com a inquietante parcimônia de quem vive fora do tempo e, volta e meia, até fazia uma parada na escritura e olhava ensimesmado para o vazio, como se aguardasse uma nova lufada de inspiração. O olhar absorto do boneco abalou a pequena Claire para o resto da vida, ao imaginar os monstruosos pensamentos que aquele estranho ser poderia abrigar...
 
... Lembrava perfeitamente do semblante pálido, as feições um tanto ariscas, os lábios brilhantes e bem-desenhados, o cabelo azeviche, o porte garbosamente frágil, a voz. E se lembrava do olhar. Lembrava-se, sobretudo, da maneira como o olhara, com uma espécie de entusiasmo. Nenhuma mulher jamais olhara assim para ele. Nunca.
 
... Por mais que a vida de meu pai parecesse invejável vista de longe, eu sabia que não havia sido plena, e que a minha não teria melhor sorte. Estava convencido de que também acabaria morrendo com a mesma expressão de insatisfação nos lábios. Imagino que foi por isso que me refugiei na leitura, para fugir daquela existência monótona e previsível que se desdobrava diante de mim. Todos chegam à leitura por algum motivo, não acha? Como foi em seu caso, senhor Wells?
– Fraturei a tíbia aos oito anos – disse o escritor com visível apatia.
 
... E se os viajantes mergulhassem no futuro o suficiente para encontrar a extremidade, o fim do barbante branco. Ou talvez sim. E se os viajantes mergulhassem no futuro o suficiente para encontrar a extremidade, o fim do barbante como o inventor de seu romance havia tentado fazer? Mas existiria tal coisa? O tempo terminaria em algum ponto ou continuaria eternamente? Neste caso, o final devia localizar-se no instante em que o homem se extinguisse e não restasse nenhuma  outra espécie no planeta, pois o que era o tempo sem ninguém para medi-lo, sem nada que o acusasse sua passagem? O tempo só se revelava nas folhas secas, nas feridas que cicatrizavam, no caruncho que devorava, na ferrugem que se espalhava, nos corações que se cansavam. Se não houvesse ninguém para mareá-lo, o tempo não era nada, absolutamente nada.
 
... Definitivamente, se queria ser um escritor brilhante, e não apenas um narrador competente e engenhoso,  precisava exigir de si mesmo esforços maiores que aquelas fabulazinhas que executava em quatro dias. Sim, a literatura era mais, muito mais. A verdadeira literatura precisava mexer com o leitor, alterá-lo, mudar sua percepção das coisas, empurrá-lo pelas escarpas da clarividência.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Carta a D.

Gorz, André. Carta a D. Cosac Naify. São Paulo / SP; 2008; 80 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
André Gorz foi um filósofo austro-francês, também conhecido pelo pseudônimo Michel Bosquet.
 
Dados da obra:
 
Carta a D. é o último livro de Gorz, escrito para homenagear sua mulher, Dorine, com quem partilhou a vida por quase 60 anos. O casal cometeu suicídio em 22 de setembro de 2007; os corpos foram encontrados um ao lado do outro, e um cartaz, na porta de sua casa, pedindo que a polícia fosse avisada.
 
Passagens:
 
Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.
 
Não tínhamos pressa. Eu despia o seu corpo com cautela. Descobri, miraculosa coincidência do real com o imaginário, a Vênus de Milo tornada carne. O brilho nacarado do pescoço iluminava o seu rosto. Mudo, contemplei longamente esse milagre de vigor e de doçura. Compreendi com você que o prazer não é algo que se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e de pedir ao outro a doação de si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro.
 
Nós não suspeitávamos que eu ainda precisaria de mais seis anos para terminar o Essai. Teria eu perseverado se soubesse disso? “Sem dúvida”, você sempre me disse. O principal objetivo do escritor não é o que ele escreve. Sua necessidade primeira é escrever. Escrever, isto é, ausentar-se do mundo e de si mesmo para, eventualmente, fazer disso a matéria de elaborações literárias. É apenas num segundo momento que se põe a questão do “tema” a ser tratado. O tema é a condição necessária, necessariamente contingente da produção de escritos. Não importa qual tema é o melhor desde que ele permita escrever. Durante seis anos, até 1946, eu mantive um diário. Escrevia para conjurar a angústia. Não importava o quê; eu era um escrevedor. O escrevedor só se tornará um escritor quando a sua necessidade de escrever for sustentada por um tema que permita e exija que essa necessidade se organize num projeto. Somos milhões a passar a vida escrevendo, sem nunca terminar nem publicar nada...
 
Tinha algo de você em tudo o que fazia. A penúria lhe dava asas. A mim, ela me deprimia.
 
Eu necessitava de teoria para estruturar meu pensamento, e argumentava com você que um pensamento não estruturado sempre ameaça naufragar no empirismo e na insignificância. Você respondia que a teoria sempre ameaça se tornar um constrangimento que nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade.
 
... a vontade de não ser Nada se confunde com a de ser Tudo. No fim do Vieillissement se encontra esta autoexortação: “É preciso aceitar ser finito: estar aqui e em nenhum outro lugar, fazer isto e não outra coisa, agora e não sempre ou nunca [...]; ter apenas esta vida.
 
... Estava consciente de que, “quando tudo tiver sido dito, tudo ainda ficará por dizer” – em outras palavras, é o dizer que importa, não o dito –, isso que eu tinha escrito me interessava menos do que aquilo que eu poderia vir a escrever em seguida. Acho que isso é verdade para todo escrevedor / escritor.
 
... Inscrevi o seu nome na pedra com um buril. Aquela casa era mágica. Todos os espaços tinham uma forma trapezoidal. As janelas do quarto davam para a copa das árvores. Na primeira noite nós não dormimos. Um escutava a respiração do outro. Depois um rouxinol se pôs a cantar, e um segundo, mais longe, a lhe responder. Nós nos falamos muito pouco. Passei aquele dia cavando e, de tempos em tempos, levantava os olhos para a janela do quarto. Você ficava ali, imóvel, o olhar fixo ao longe. Tenho certeza de que você trabalhava para domesticar a morte, para combatê-la sem medo. Estava tão bela e resoluta em seu silêncio que eu não seria capaz de imaginar que você pudesse renunciar à vida.
 
... Eu havia chegado à idade em que a gente se pergunta o que fez da própria vida, o que queria ter feito dela. Tinha impressão de não ter vivido a minha vida, de tê-la sempre observado à distância, de só ter desenvolvido um lado de mim mesmo, e de ser pobre como pessoa. Você era e sempre tinha sido mais rica que eu. Você se desenvolvia em todas as suas dimensões. Estava firme em sua vida, enquanto eu sempre me apressara a passar à tarefa seguinte, como se a nossa vida só fosse começar mais tarde.
 
À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que esse carro leva. Não quero assistir à sua cremação; nem quero receber a urna com as suas cinzas. Ouço a voz de Kathleen Ferrier cantando: “Die Welt ist leer, Ich will nicht leben mehr”*, e desperto. Eu vigio a sua respiração, minha mão toca você. Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos.
*Em alemão, “O mundo está vazio, não quero mais viver”.