sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Carta a D.

Gorz, André. Carta a D. Cosac Naify. São Paulo / SP; 2008; 80 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
André Gorz foi um filósofo austro-francês, também conhecido pelo pseudônimo Michel Bosquet.
 
Dados da obra:
 
Carta a D. é o último livro de Gorz, escrito para homenagear sua mulher, Dorine, com quem partilhou a vida por quase 60 anos. O casal cometeu suicídio em 22 de setembro de 2007; os corpos foram encontrados um ao lado do outro, e um cartaz, na porta de sua casa, pedindo que a polícia fosse avisada.
 
Passagens:
 
Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher.
 
Não tínhamos pressa. Eu despia o seu corpo com cautela. Descobri, miraculosa coincidência do real com o imaginário, a Vênus de Milo tornada carne. O brilho nacarado do pescoço iluminava o seu rosto. Mudo, contemplei longamente esse milagre de vigor e de doçura. Compreendi com você que o prazer não é algo que se tome ou que se dê. Ele é um jeito de dar-se e de pedir ao outro a doação de si. Nós nos doamos inteiramente um ao outro.
 
Nós não suspeitávamos que eu ainda precisaria de mais seis anos para terminar o Essai. Teria eu perseverado se soubesse disso? “Sem dúvida”, você sempre me disse. O principal objetivo do escritor não é o que ele escreve. Sua necessidade primeira é escrever. Escrever, isto é, ausentar-se do mundo e de si mesmo para, eventualmente, fazer disso a matéria de elaborações literárias. É apenas num segundo momento que se põe a questão do “tema” a ser tratado. O tema é a condição necessária, necessariamente contingente da produção de escritos. Não importa qual tema é o melhor desde que ele permita escrever. Durante seis anos, até 1946, eu mantive um diário. Escrevia para conjurar a angústia. Não importava o quê; eu era um escrevedor. O escrevedor só se tornará um escritor quando a sua necessidade de escrever for sustentada por um tema que permita e exija que essa necessidade se organize num projeto. Somos milhões a passar a vida escrevendo, sem nunca terminar nem publicar nada...
 
Tinha algo de você em tudo o que fazia. A penúria lhe dava asas. A mim, ela me deprimia.
 
Eu necessitava de teoria para estruturar meu pensamento, e argumentava com você que um pensamento não estruturado sempre ameaça naufragar no empirismo e na insignificância. Você respondia que a teoria sempre ameaça se tornar um constrangimento que nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade.
 
... a vontade de não ser Nada se confunde com a de ser Tudo. No fim do Vieillissement se encontra esta autoexortação: “É preciso aceitar ser finito: estar aqui e em nenhum outro lugar, fazer isto e não outra coisa, agora e não sempre ou nunca [...]; ter apenas esta vida.
 
... Estava consciente de que, “quando tudo tiver sido dito, tudo ainda ficará por dizer” – em outras palavras, é o dizer que importa, não o dito –, isso que eu tinha escrito me interessava menos do que aquilo que eu poderia vir a escrever em seguida. Acho que isso é verdade para todo escrevedor / escritor.
 
... Inscrevi o seu nome na pedra com um buril. Aquela casa era mágica. Todos os espaços tinham uma forma trapezoidal. As janelas do quarto davam para a copa das árvores. Na primeira noite nós não dormimos. Um escutava a respiração do outro. Depois um rouxinol se pôs a cantar, e um segundo, mais longe, a lhe responder. Nós nos falamos muito pouco. Passei aquele dia cavando e, de tempos em tempos, levantava os olhos para a janela do quarto. Você ficava ali, imóvel, o olhar fixo ao longe. Tenho certeza de que você trabalhava para domesticar a morte, para combatê-la sem medo. Estava tão bela e resoluta em seu silêncio que eu não seria capaz de imaginar que você pudesse renunciar à vida.
 
... Eu havia chegado à idade em que a gente se pergunta o que fez da própria vida, o que queria ter feito dela. Tinha impressão de não ter vivido a minha vida, de tê-la sempre observado à distância, de só ter desenvolvido um lado de mim mesmo, e de ser pobre como pessoa. Você era e sempre tinha sido mais rica que eu. Você se desenvolvia em todas as suas dimensões. Estava firme em sua vida, enquanto eu sempre me apressara a passar à tarefa seguinte, como se a nossa vida só fosse começar mais tarde.
 
À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que esse carro leva. Não quero assistir à sua cremação; nem quero receber a urna com as suas cinzas. Ouço a voz de Kathleen Ferrier cantando: “Die Welt ist leer, Ich will nicht leben mehr”*, e desperto. Eu vigio a sua respiração, minha mão toca você. Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos.
*Em alemão, “O mundo está vazio, não quero mais viver”.

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