terça-feira, 29 de outubro de 2013

Notícia de um sequestro

Marquez, Gabriel García. Notícia de um sequestro. Record. Rio de Janeiro / RJ; 1996; 318 páginas.

Breve relato do autor:

É um escritor, jornalista, editor, ativista e político colombiano. Recebeu o Nobel de Literatura em 1982 pelo conjunto de sua obra, que entre outros livros inclui o aclamado Cem Anos de Solidão. Responsável por criar o realismo mágico na literatura latino-americana.

Dados da obra:

Livro-reportagem em Marquez relata o drama de sequestros ocorridos na Colômbia em 1990, por meio de depoimentos de dezenas de pessoas envolvidas. Mesclando histórias reais com ficção, o livro tem o objetivo de mostrar as diversas facetas da dramática situação vivida na Colômbia, especificamente a guerra do tráfico de drogas.

Passagens:

Maruja abriu os olhos e lembrou um velho ditado espanhol: “Que Deus nos dê o que somos capazes de suportar.” Haviam transcorrido dez dias desde o sequestro, e tanto Beatriz como ela começavam a se acostumar a uma rotina que na primeira noite parecia inconcebível. Os sequestradores haviam repetido com frequência que aquela era uma operação militar, mas o regime de cativeiro era pior que o carcerário. Só podiam falar para questões urgentes e sempre em sussurros. Não podiam levantar do colchão que servia de cama comum, e tudo o que necessitassem devia ser pedido aos dois vigias que não as perdiam de vista nem quando estavam dormindo: licença para se sentar, para esticar as pernas, para falar com Marina, para fumar. Maruja tinha que tapar a boca com um travesseiro para amortecer os ruídos da tosse.

Diana Turbay Quintero tinha, como seu pai, um sentido intenso e apaixonado do poder e uma vocação de liderança que determinaram sua vida. Cresceu entre os grandes nomes da política, e era difícil que a partir de então não fosse essa a sua perspectiva do mundo. “Diana era um homem de Estado – disse uma amiga que a compreendeu e amou. – E a maior preocupação de sua vida era uma obstinada vontade de serviço ao país.” Mas o poder – como o amor – tem dois gumes: exercemos e padecemos. Ao mesmo tempo que gera um estado de levitação pura, gera também seu avesso: a busca de uma felicidade irresistível e fugidia, só comparável à busca de um amor idealizado, que se anseia mas se teme, se persegue mas não se alcança. Diana sofria isso com uma voracidade insaciável de saber tudo, de estar a par de tudo, de descobrir o por quê e o como das coisas e a razão de sua vida. Alguns que conviveram com ela e a amaram de perto perceberam isso nas incertezas de seu coração, e pensam que muito poucas vezes ela foi feliz.

 – Você não imagina como foi triste ver aquela senhora jogada no capim, coitada – disse a florista. – Precisava só ver a sua roupa íntima, seu jeito de grande dama, seu cabelo branco, as mãos tão finas e com as unhas tão bem cuidadas.

A distribuidora, alarmada pela sua prostração, deu a ela um analgésico para a dor de cabeça, aconselhou-a a não pensar em coisas tristes e, sobretudo, a não sofrer por problemas alheios. Nem uma nem outra perceberiam até uma semana mais tarde que haviam vivido um episódio inverossímil. Pois a distribuidora era Marta de Pérez, a esposa de Luis Guilhermo Pérez, filho de Marina.

Uma droga mais daninha que as mal chamadas em espanhol de heroicas se introduziu na cultura nacional: o dinheiro fácil. Prosperou a ideia de que a lei é o maior obstáculo para a felicidade, que aprender a ler e a escrever não serve para nada, que se vive melhor e com mais segurança como delinquente do que como pessoa de bem. Em síntese: o estado de perversão social próprio de toda guerra incipiente e intermitente.

Com a fortuna e a clandestinidade, Escobar tornou-se dono do território e se transformou numa lenda que, das sombras, dominava tudo. Seus comunicados de estilo exemplar e cautelas perfeitas chegaram a se parecer tanto com a verdade que se confundiam com ela. No auge de seu esplendor foram erguidos altares com seu retrato e lhe dedicaram círios nas comunidades de Medellín. Chegou-se a dizer que fazia milagres. Nenhum colombiano em toda a história havia tido e exercido um talento como o dele para condicionar a opinião pública. Nenhum outro teve maior poder de corrupção. A condição mais inquietante e devastadora de sua personalidade era que carecia por completo da indulgência para distinguir entre o bem e o mal.

A imagem de Marina caminhando às cegas com o capuz ao contrário para um sítio imaginário ia perseguir Maruja por muitas noites de insônia. Mais do que a própria morte, o que ela temia era a lucidez do momento final. A única coisa que lhe dava algum consolo foi a caixa de comprimidos soníferos que tinha economizado como se fossem pérolas preciosas, para engolir um punhado antes de se deixar arrastar ao matadouro.

Pela primeira vez desde o sequestro Villamizar foi a uma festa de amigos, e ninguém entendeu que estivesse tão contente com alguma coisa que afinal não passava de uma promessa vaga como tantas outras de Pablo Escobar. Àquelas horas o padre García Herreros tinha dado a volta completa por todos os noticiários do país – vistos, ouvidos ou escritos. Pediu que fossem tolerantes com Escobar. “Se não o frustrarmos, ele se tornará um grande construtor da paz”, dizia. E acrescentava, sem citar Rousseau: “Os homens em sua intimidade são todos bons, embora algumas circunstâncias os tornem malignos.” E no meio de um emaranhado de microfones, disse sem maiores reservas:
– Escobar é um homem bom.

... Quando o helicóptero pousou no prado intacto, destacaram-se do grupo uns quinze seguranças que caminharam ansiosos até o helicóptero, ao redor de um homem que não podia passar despercebido. Tinha o cabelo comprido até os ombros, uma barba muito negra, espessa e áspera, que chegava até o peito, e a pele parda e curtida por um sol de páramo. Era rechonchudo, usava tênis e uma jaqueta azul-claro de algodão ordinário, e se movia com uma andadura fácil e uma tranquilidade arrepiante. Villamizar reconheceu-o à primeira vista só porque era diferente de todos os homens que havia visto na vida.

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