quarta-feira, 23 de outubro de 2013

A menina que roubava livros

Zusak, Markus. A menina que roubava livros. Intrínseca. Rio de Janeiro / RJ; 2010; 478 páginas.
 
Breve relato do autor:

Markus Zusak é um jovem escritor australiano.

Dados da obra:

 A história se passa entre 1939 a 1943 e é narrada pela morte. A menina é Liesel, enviada pela mãe, junto com o irmão, para uma cidade alemã, onde um casal se dispõe a adotá-los por dinheiro. O garoto morre no trajeto e é enterrado por um coveiro que deixa cair um livro na neve. É o primeiro de uma série que a menina vai roubar ao longo dos anos. Assombrada por pesadelos, ela compensa o medo e a solidão das noites com a conivência do pai adotivo, um pintor de parede bonachão que lhe dá lições de leitura. Em tempos de livros incendiados, ela os furta, ou os lê na biblioteca do prefeito da cidade. A vida ao redor é a pseudo-realidade criada em torno do culto a Hitler na Segunda Guerra. Faz amizade com um garoto obrigado a integrar a Juventude Hitlerista. E ajuda o pai a esconder no porão um judeu que escreve livros artesanais para contar a sua parte naquela História.

Passagens:
 
Quando viesse a escrever sua história, ela se perguntaria exatamente quando os livros e as palavras haviam começado a significar não apenas alguma coisa, mas tudo. Teria sido ao pôr os olhos pela primeira vez na sala com estantes e mais estantes deles? Ou quando Max Vandenburg chegara à Rua Himmel, carregando as mãos cheias de sofrimento e o Mein Kampf de Hitler? Teria sido durante a leitura nos abrigos? Na última parada para Dachau? Teria sido A Sacudidora de Palavras? Talvez nunca houve uma resposta exata sobre onde e quando isso havia ocorrido...
 
O som do acordeão, na verdade, era também o anúncio da segurança. Do dia. Durante o dia, era impossível ela sonhar com o irmão. Liesel sentia sua falta e, muitas vezes, chorava no banheiro minúsculo, o mais baixo possível, mas também ficava contente por estar acordada. Na primeira noite com os Hubermann, ela havia escondido seu último vínculo com o irmão – O Manual do Coveiro – embaixo do colchão, e vez por outra o tirava de lá e o segurava. Fitando as letras da capa e tocando o texto impresso na parte interna, ela não fazia a menor ideia do que o livro dizia. A questão é que o assunto do livro não tinha mesmo importância. O mais importante era o que ele significava.
 
... Segundo ela sentia um orgulho evidente do papel de Hans Hubermann em sua educação. Talvez você não imagine, escreveu, mas não foi tanto a escola que me ajudou a ler. Foi papai. As pessoas acham que ele não é inteligente, e é verdade que ele não lê muito depressa, mas eu não tardaria a saber que as palavras e a escrita tinham salvado sua vida, uma vez. Ou, pelo menos, as palavras e um homem que lhe ensinara o acordeão...

Não é hora de atenção parcial, nem de virar as cosas e ir dar uma olhada no fogão – porque, quando a menina que roubava livros roubou seu segundo livro, não só houve muitos fatores implicados em sua ânsia de fazê-lo, como o ato de furtá-lo desencadeou o ponto crucial do que estava por vir. Isso lhe proporcionaria uma abertura para o roubo contínuo de livros. Inspiraria Hans Hubermann a conceber um plano para ajudar o lutador judeu. E mostraria a mim, mais uma vez, que uma oportunidade conduz diretamente a outra, assim como o risco leva a mais risco, a vida, a mais vida, e a morte, a mais morte.
 
A sala foi encolhendo sem parar, até que a menina que roubava livros pôde tocar nas estantes, a poucos passinhos de distância. Correu o dorso da mão pela primeira prateleira, ouvindo o arrastar de suas unhas deslizar pela espinha dorsal de cada livro. Soava como um instrumento, ou como as notas de pés em correria. Ela usou as duas mãos. Passou-as correndo. Uma estante encostada em outra. E riu. Sua voz se espalhava, aguçada na garganta, e quando ela enfim parou e ficou postada no meio do cômodo, passou vários minutos olhando das estantes para os dedos, e de novo para as prateleiras.
Em quantos livros tinha tocado?
Quantos havia sentido?

A mulher do prefeito, depois de deixar a menina entrar pela quarta vez, sentou-se à escrivaninha, simplesmente olhando para os livros. Na segunda visita, dera permissão para que Liesel tirasse um deles da estante e o folheasse, o que levara a outro e mais outros, até que havia uma dúzia de livros grudados nela, ou presos embaixo de um braço, ou na pilha que subia cada vez mais na mão restante.

Por algum tempo, ela vagou para dentro e para fora do sono, já não sabendo ao certo se havia sonhado com a entrada de Max.
De manhã, ao acordar e ser virar na cama, viu as páginas descansando no chão. Estendeu a mão e pegou-as, escutando o papel encrespar-se em suas mãos de manhãzinha.
Toda a minha vida, tive medo de homens velando sobre mim...
Ao virá-las, as páginas eram barulhentas, feito estática em volta da história escrita.
Três dias, disseram-me... E o que encontrei ao acordar?
Lá estavam as páginas apagadas de Mein Kampf, amordaçadas, sufocando sob a tinta enquanto eram viradas.
Isso me fez compreender que o melhor vigiador que eu conheci...

Antes que entrassem em suas respectivas casas, Rudy parou por um instante e disse:
Até logo, Saumensch – e riu. – Boa noite, roubadora de livros.
Era a primeira vez que Liesel se via marcada por seu título, e não pôde esconder que isso lhe agradou muito. Como nós dois sabemos, ela já tinha furtado livros, mas, no fim de outubro de 1941, a coisa se tornou oficial. Nessa noite, Liesel Meminger transformou-se verdadeiramente na menina que roubava livros.
 
Digo o nome d´Ele na vão tentativa de compreender. “Mas não é sua função compreender.” Essa sou eu respondendo. Deus nunca diz nada. Você acha que é a única pessoa a quem Ele nunca responde? “Sua tarefa é...” E eu paro de me escutar, porque para dizê-lo curto e grosso, eu canso a mim mesma. Quando começo a pensar desse jeito, fico inteiramente exausta e não tenho o luxo de me entregar à fadiga. Sou obrigada a continuar, porque, embora isso não se aplique a todas as pessoas da Terra, é verdade para a vasta maioria: a morte não espera por ninguém – e, quando espera, em geral não é por muito tempo.
 
Rosa soltou-a e, para se reconfortar, para isolar a algazarra do porão, Liesel abriu um de seus livros e começou a ler. O livro no topo d pilha era O Assobiador, e ela falou em voz alta, para ajudar sua própria concentração. O parágrafo inicial entorpeceu-se em seus ouvidos.
– O que você disse? – rugiu a mãe, mas Liesel a ignorou. Continuou concentrada na primeira página.
Quando ela virou a página dois, foi Rudy quem notou. Atentou diretamente para o que Liesel estava lendo e deu um tapinha no irmão e nas irmãs, dizendo-lhes para fazerem o mesmo. Hans Hubermann aproximou-se e convocou a todos e, em pouco tempo, uma quietude começou a escoar pelo porão apinhado. Na página três, todos estavam calados, menos Liesel.
A menina não se atreveu a levantar os olhos, mas sentiu os olhares assustados prenderem-se a ela, enquanto ia puxando as palavras e exalando-as. Uma voz tocava as notas dentro dela. Este é o seu acordeão, dizia.

O som da página virada cortou-os ao meio.
Liesel continuou a ler.
Arrancou uma página do livro e a rasgou ao meio.
Depois, um capítulo.
Em pouco tempo, não restava nada senão tiras de palavras, derramadas feito lixo entre suas pernas e em toda a sua volta. As palavras. Por que tinham que existir? Sem elas, não haveria nada disso. Sem as palavras, o Fuhrer não era nada. Não haveria prisioneiros, claudicantes, nem necessidade de consolo ou de truques mundanos para fazer com que nos sentíssemos melhor.
De que adiantavam as palavras?
Dessa vez ela o disse em voz alta, para a sala iluminada de laranja.
- De que servem as palavras?
 
ÚMA ÚLTIMA NOTA DE SUA NARRADORA
Os seres humanos me assombram.

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