sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O Castelo


Kafka, Franz. O Castelo. Livros do Brasil. Castelo Branco / Portugal; 1946; 406 páginas.

Breve relato do autor:

Franz Kafka foi um dos maiores escritores de ficção do século XX. De origem judaica, ele nasceu em Praga, Áustria-Hungria (atual República Checa), e escrevia em língua alemã. O conjunto de seus textos— na maioria incompletos e publicados postumamente — situa-se entre os mais influentes da literatura ocidental.

Dados da obra:

Escrito durante cerca de seis meses em 1922, O Castelo foi lançado somente depois da morte de Kafka. O livro consiste na história de um agrimensor chamado K. que é chamado por um conde de um local não especificado para prestar seus serviços. Contudo, por mais que tente, não consegue entrar no castelo, ficando na vila de fora do castelo ao longo da narração. Os monólogos do livro são vários (o livro possui mais de 400 páginas) e as personagens muitas vezes desmentem-se ou mostram variadas interpretações de um mesmo fato, o que provoca um clima de confusão ou simples falta de informação. As interpretações do livro são muitas, desde simplesmente uma crítica à burocracia estatal até uma visão religiosa, mais especificamente judaica. Há também uma visão psicológica dizendo que o castelo seria o inconsciente de K. e a vila sua consciência.

Passagens:

... E agora o senhor: quem é o senhor, junto de quem tão humildemente lutamos por conseguir a anuência a um pedido de casamento? O senhor não é do Castelo, o senhor não é da aldeia, o senhor não é nada! Mas, infelizmente, o senhor é alguma coisa: um estrangeiro; alguém que está a mais; um empecilho a estorvar todos os caminhos: alguém que está sempre a causar-me maçadas e nos obriga a desalojar as crianças; alguém que veio seduzir a nossa pequena Frieda muito amada e a quem agora, infelizmente, nós a temos de dar em casamento.

– Minha senhora – disse K. –, não entendo porque é que a senhor se humilha, e só por uma coisa destas, ao ponto de me dirigir rogos. Se, como diz, é de todo em todo impossível eu falar com Klamm, então não o conseguirei mesmo, quer me dirijam rogos quer não. Mas dado o caso de ser possível eu falar com ele: porque o não hei-de fazer? Tanto mais que, firmada nesse caso a sua principal objeção, todos os seus outros receios se tornam duvidosos. Concedo que sou ignorante, é uma verdade que, em todo o caso, permanece válida, o que já jê bem triste para mim; mas também tem uma vantagem: quem ignora ousa mais – e por isso estou disposto a suportar de bom grado por mais algum tempo, até onde as forças me chegarem, o fardo da minha ignorância com todo o rol das suas consequências, bem más por certo.

 – O senhor é rigoroso – disse o regedor. – Mas multiplique por mil o seu rigor e o resultado ainda não será nada em comparação com o rigor que as autoridades se impõem a si mesmas. Só um estrangeiro como o senhor pode fazer uma pergunta dessas. Se existem órgãos de fiscalização? Mas se só existem órgãos de fiscalização! A sua finalidade, porém, não é descobrir erros no sentido grosseiro da palavra, pois erros é algo que não ocorre nunca, e mesmo quando ocorre, como no seu caso, quem é que se pode arrogar o direito de afirmar em definitivo que se trata, realmente de um erro?

Ainda não teria dado dois passos na estrada quando viu duas luzinhas vacilarem ao longe; trouxe-lhe alegria aquele sinal de vida, e ele foi ao encontro delas, assim como elas, por sua vez, vinham flutuando ao encontro dele. Não soube explicar o seu desapontamento ao reconhecer os ajudantes. Pois não vinham eles ao seu encontro, enviados provavelmente, por Frieda? E não eram dele aquelas lanternas que o vinham salvar da escuridão agressivamente ululante à sua volta? Apesar disso, ficara decepcionado: esperara estranhos, sim, não aqueles seus velhos conhecidos que lhe eram um fardo. Mas não eram só os ajudantes: de entre eles, da escuridão, surgiu Barnabás.

... o fato de ela ter perguntado por K. não significava que fosse uma exceção à regra: pelo contrário, justamente ao mencioná-lo, tivera ela oportunidade de exprimir o desejo de o ver; não o fizera, porém, e dera assim a entender claramente a sua vontade. Ela queria apenas ouvir falar dele, não falar com ele.

... Barnabás é recebido normalmente numa grande sala de chancelaria; mas não é a chancelaria de Klamm, nem é sequer a chancelaria de um só funcionário. Acha-se dividida em duas partes, a todo o comprimento, por uma estante de uma só peça, que vai de parede a parede: numa parte estreita em que duas pessoas mal podem passar uma pela outra, é o espaço reservado aos funcionários, e numa outra larga, é o espaço destinado às partes em litígio, aos espectadores, aos criados, aos mensageiros. Sobre essa estante há grandes livros aberto, um a seguir ao outro, e diante da maior parte deles estão postados funcionários e leem. Mas não ficam sempre diante do mesmo livro, mudam, porém, não os livros mas os lugares, e é esta mudança de lugares o que mais espanta Barnabás, eles apertam-se então muito ao passarem uns pelos outros, justamente por causa da estreiteza do espaço. À frente, rente à estante, há mesinhas baixas, sentados a elas estão escrivães que escrevem o que os funcionários lhes ditam quando estes assim o desejam.

... Sem dúvida, este estar parado inutilmente, este esperar inutilmente, dia após dia, e o eterno recomeçar, sem nunca ver esboçar-se uma mudança, isto arrasa os nervos, torna as pessoas céticas e incapazes, por fim.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Malagueta, Perus e Bacanaço

Antonio, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. Cosac Naify. São Paulo / SP; 2004; 222 páginas.
 
Breve relato do autor:
 
João Antonio foi um jornalista e escritor paulistano, criador do conto-reportagem no jornalismo brasileiro, que se tornou conhecido por retratar os proletários e marginais que habitam as periferias das grandes cidades.
 
Dados da obra:
 
Publicado em 1963, o livro atingiu imediatamente sucesso de público e crítica. Recebeu inúmeros prêmios, entre eles o Prêmio Jabuti, nas categorias "Revelação" e "Melhor livro de contos", e o Prêmio Fabio Prado. É o primeiro livro do autor e trata de um conto longo, dividido em seis partes que recebem os nomes dos locais por onde passam os personagens: Lapa, Água Branca, Barra Funda, Cidade, Pinheiros e, por último, e de novo, Lapa. A narrativa transcorre em uma única noite, num bar, no velho salão de sinuca onde se encontram os três parceiros.
 
Passagens:
 
Andando tão devagar. Procurava alguma coisa na tarde. O vento esfriou. Não sabia bem o que, era um vazio tremendo. Mas estava procurando. Os ônibus passavam carregando gente que volta do cinema. Para essa gente de subúrbio mesquinho, semana brava suada nas filas, nas conduções cheias, difíceis, cinema à tarde, pelo domingo, me grande coisa. Viaja-se encolhido, apertado. Os ônibus se enchem.
 
... Parece-me que procurava conversa, por causa dum Huxley que viu repousando nos meus joelhos. Eu, Huxley e tampinhas somos coincidências. Que se encontraram e que se dão bem. Perguntou o que eu fazia na vida. A pergunta veio com jeito, boas palavras, delicada, talvez não querendo ofender o silêncio em que eu me fechava. Quase respondi...
– Olhe: sou um cara que trabalho muito mal. Assobia sambas de Noel com alguma bossa. Agora, minha especialidade, meu gosto, meu jeito mesmo, é chutar tampinhas de rua. Não conheço chutador mais fino.
 
Quem poderia entender aquele homem?
Agora a caminho da subsistência. À Lapa, buscar pão e carne na subsistência, viagem de todas as manhãs. Eu gostava do volante, adorava o volante. E mais, gostava daquelas idas à Lapa, porque me deixavam sozinho, atravessando a cidade toda, todinha. E bairros, e bairro, lá ia eu, Santa Cecília, Perdizes, Pompéia, ia tão contente no caminhão, que o caminhão parecia meu.
 
Quis seguir estrada, o atalho me surpreendeu. Uns dez minutos e estaria na vila. Sapos nas pocinhas das beirada do campo de futebol. Até há pouco, aquilo era do futebol da molecada. Indústrias querem surgir acompanhando a estrada de ferro, acompanhando tudo, provavelmente serão usinas de concreto. Várzea escura, breu. Meu pai disse-me que, quando menino na Europa, transpunha vales escuros, para pastoreio, onde lobos uivavam. Aqui há mosquitos e fartum do curtume próximo. Luzes ao longe, luzes da serraria. Posso caminhar olhando-as. Ás vezes, faço de conta que são guias, que eu sigo para alcançar a vila. Pena não encontrar Carlinhos, não estaria tateando este breu.
 
Ó Deus, como... por que é que certos tipos se metiam a jogar o joguinho? Meus olhos se entristeciam, meus olhos gozavam. Mas havendo entusiasmo, minha vida ferveu. Conheci vadios e vadias. Dei-me com toda a canalha. Aos catorze, num cortiço da Lapa-de-baixo conheci a primeira mina. Mulatinha, empregadinha, quente. Ela gostava da minha charla, a gente se entendia. Eu me lembro muito bem. Ás quintas-feiras, quatro pancadas secas na porta. Duas a duas.
 
Estavam os três quebrados, quebradinhos. Mas imaginavam marotagens, concluios, façanhas, brigas, fugas, prisões – retratos no jornal e todo o resto –, safadezas, tramoias; arregos bem arrumados com caguetes, trampolinagens, armações de jogos que lhes dariam um tufo de dinheiro; patrões caros aos quais fariam marmelo, traição; imaginavam jogos longínquos, lá pelos longes dos subúrbios, naquelas bocas do inferno nem sabidas pela polícia; principalmente imaginavam jogos caros, parceirinhos fáceis, que deixariam falidos, de pernas para o ar. E em pensamento funcionavam. E os três comendo as bolas, fintando, ganhando, beliscando, furtando, quebrando, entortando, mordendo, estraçalando...
 
O Mova para Cornélio e uma quina para Bacanaço. E os três iriam firmes, à grande e de enfiada, afiados como piranhas. Bacanaço chefiando. Vasculhariam todos os muquinfos, rodariam Água Branca, Pompeia, Pinheiros, Mooca, Penha, Limão, Tucuruvi, Osasco... Rodariam e se atirariam e iriam lá. Três tacos, direitinhos como relógios, levantariam no fogo do jogo um tufo de dinheiro, Ti8nham a noite e a madrugada. Virariam São Paulo de pernas para o ar.
 
Cada um tem a sua bola numerada e que não pode ser embocada. Cada um defende a sua e atira na do outro. Aquele se defende e atira na do outro. Assim, assim, vão os homens nas bolas. Forma-se a roda com cinco, seis, sete e até oito homens. O bolo. Cada homem tem uma bola que em duas vidas. Se a bola cai o homem perde uma vida. Se perder as duas vidas poderá recomeçar com o dobro da casada. Mas ganha uma vida só...
Fervia no Joana d´Arc o jogo triste da vida.