segunda-feira, 31 de março de 2014

A máquina de Joseph Walser

Tavares, Gonçalo. A máquina de Joseph Walser. Companhia das Letras. São Paulo / SP; 2010; 163 páginas. 
 
Breve relato do autor:
 
Gonçalo M. Tavares é um escritor e professor universitário português, cuja primeira obra foi publicada em 2001.
 
Dados da obra:
 
É o segundo romance da série O Reino. O pacato funcionário Joseph Walser leva uma vida previsível, enquadrada pelos movimentos repetitivos da máquina industrial que opera. Entretanto, Walser tem uma paixão secreta - a enorme coleção que mantém fechada à chave, protegida até mesmo dos olhares de Margha, sua calada mulher.
 
Passagens:
 
A felicidade foi já reduzida a um sistema que as máquinas entendem, e no qual podem participar e intervir. Já nenhuma felicidade individual é independente da tecnologia, amigo Walser. Se quiser números podemos brincar aos números: a felicidade individual de um dia depende, vá lá, 70% da eficácia material das máquinas. Que a felicidade invisível esteja submetida a uma felicidade concreta, a uma felicidade de materiais em diálogo, de peças metálicas que encaixam um nas outras e resolvem problemas fazendo determinadas tarefas; pode parecer estranho, mas é o século.
Ser feliz já não depende de coisas que vulgarmente associamos a palavra Espírito. Depende de matérias concretas. A felicidade humana é um mecanismo.
 
Atenção exacta resuma assim o que era necessário para o ofício de Joseph Walser: ser um animal perfeito, um animal não animalesco, não imprevisível, um organismo sem flutuações, um organismo que conseguisse manter-se idêntico, imitável, durante todo o tempo em que estivesse defronte da máquina. Porque aquela máquina exigia a cada um dos funcionários um conjunto de gestos determinados, repetidos, e de sequência constante. Qualquer desvio ao gesto exacto, ao gesto decorrente da atenção exacta exigida, qualquer desvio teria como consequência uma perturbação na eficácia d máquina e portanto uma menor uma menor produção, ou mesmo uma avaria.
 
Joseph Walser sentia-se de facto, observado por ela, pela “sua” máquina. Eram para ele claras as hierarquias das duas existências: a maquina era uma hierarquia superior: poderia salvá-lo ou destruí-lo; poderia fazer a sua vida repetir-se, quase infinitamente, ou poderia, pelo contrário, de um momento para o outro, provocar uma alteração súbita nos seus dias. Joseph Walser nunca percebia melhor o seu papel de empregado, a sua existência subserviente em relação ao exterior do que em frente à máquina, em plena execução do seu ofício. A subserviência que se poderia notar nele face ao encarregado Klober era perfeitamente insignificante quando comparada com a que exibia no seu trabalho, encostado à máquina, abraçando-a ou combatendo-a (de acordo com o ponto de vista). Nunca o exterior o dominava tanto, nunca a sua energia se dirigia para fora como nessa situação.
 
Não era da guerra, há muito havia decidido manter-se neutro. O exército já entrara na cidade, mas tal não era um assunto seu. Via a guerra como uma ciência que não dominava: não percebia o que era, não entendia os métodos, as estratégias, as formas de calcular. Não devo falar do que não entendo, dizia a si próprio Walser, muito menos devo agir sob re o que não entendo. Deve assistir-se aquilo que não se entende. Apenas.
 
A maldade é uma categoria do raciocínio. Não é uma invenção sobrenatural, nem cresce a partir de substâncias inscritas nos vegetais comestíveis. A maldade é uma categoria do instinto sim, mas também do raciocínio, da inteligência. Como se fosse uma etapa do percurso que o cérebro matemático faz quando pretende resolver problemas numéricos. Dedução, indução e maldade.
 
... Enquanto a sombra repetir no chão o teu corpo inteiro eis que te encontras vivo e completo.
 
Joseph Walser envelhece, mas mantém a adoração pela “sua” máquina de trabalho e por todos os mecanismos. Em diversos momentos o som do motor e o seu trepidar confundem-se com o bater cardíaco, pois ambos os “órgãos” estão em pleno funcionamento, em plena excitação e encostados um ao outro misturam-se, provocando em Walser, por vezes, sobressaltos ridículos quando, a horas certas, às horas exactamente planeadas, o motor da máquina subitamente cessa. É aí que Walser percebe a ligação que existe entre o seu corpo e a máquina. O cessar repentino provoca na sua pele um frio instantâneo, uma sensação rápida e tão desagradável que o faz, por exemplo, procurar em livros científicos a descrição pormenorizada do que sentem alguém quando o coração falha. Walser tenta perceber se a separação brutal entre o funcionamento do motor da máquina não é algo semelhante à separação entre o coração de um homem e esse mesmo homem. Tinha lido que um ataque cardíaco não mortífero era relatado assim: o órgão afasta-se de nós, a grande velocidade... mas depois regressa.
 
O coração afasta-se do resto do corpo. Afasta-se, esta palavra era o fundamental. Havia uma distância percorrida nos acidentes cardíacos, uma distância percorrida internamente: um dos órgãos essenciais afastava-se, caminhava no sentido oposto ao resto do corpo. E era isso que Walser sentia quando estava excitado e engolido pelo funcionamento da sua máquina e esta parava de repente; e parava não por uma razão obscura, não por algo que merecesse raciocínio para ser compreendido, parava simplesmente porque eram doze horas, e às dozes horas o motor de cada máquina era desligado na central da fábrica.
 
A coleção tornara-se uma obsessão tal que, mal Walser via uma peça metálica com as condições exigidas, não desligava a sua atenção, que se poderia designar como predadora (atenção predadora, de caça). Não a desligava até conseguir um momento de desatenção dos outros que lhe permitisse pegar na peça ou roubá-la (poderá utilizar-se esta palavra, pois era isso que sucedia).
 
Cada acontecimento individual poderia assim ser, não reduzido mas assemelhado – era o sinal de igual, de idêntico, e não um diminuição, não um roubo, poderia ser assemelhado então a um somatório de gestos, tal como uma máquina, por mais complexa que fosse, e por mais espantosas que fossem as suas ações, não deixava de ser um somatório de peças que sob determinadas circunstâncias agiam. Ele não considerava justo que o Homem, apenas por conseguir reflectir sobre o mecanismo da sua existência, pudesse orgulhar-se de uma diferença absoluta em relação as máquinas. Conseguir distanciar-se do mecanismo que o constitui não faz o mecanismo deixar de existir. Uma existência humana era, assim, para Walser, um somatório simples. Era o sinal mais que predominava em qualquer ser vivo, e a morte era espantosamente assustadora precisamente porque representava a interrupção abrupta de um somatório que, a certa altura, todos eram levados a pensar ser interminável. Como se cada um, a dado momento, considerasse o seu corpo, por outras palavras: um somatório imortal de comportamentos. Ninguém, neste século, depois de sucessivas gerações terem desaparecido – e mesmo em plena guerra, onde a morte era mais visível que nunca –, deixava ainda de ser surpreendido (estava disso convencido Walser) pela sua própria morte. Somos sempre surpreendidos! Como se nos considerássemos no direito, depois de tantos dias de existência, de não sermos interrompidos; no direito, no fundo, de pertencermos a uma outra espécie, à tal espécie interminável. Mas de uma eternidade individual, aqui se trata, de uma eternidade com o nosso nome, que se fixa na nossa existência.
 
Agir com um sentido importante era a normalidade do tempo de guerra e a preguiça era o seu oposto. Ver alguém a não fazer nada e não querer fazer nada causaria tanta estranheza e, provavelmente, tanto repúdio como ver em pleno jardim, na Primavera, um louco a repetir movimentos bruscos e acelerados: arrancando flores com violência, pisando canteiros, abrindo buracos na terra com os dedos. Em tempos de grande intensidade alguém que não soubesse para onde caminhava ou para que fazia aquilo que fazia, estaria louco pois estaria abstraído dos acontecimentos. Afundar-se no mundo abstracto em períodos de guerra – momento absoluto do concreto, da matéria e das forças que chocam e combatem – era o mais violento dos actos. Talvez mesmo o mais imoral.
 
... E, meu amigo, não poderia ter existido maior exactidão na sua máquina: em plena guerra, o que é que ela lhe fez, a sua máquina? Apenas isto: levou-lhe o dedo mais útil, o que dispara, o dedo que faz a última contracção antes de alguém à sua frente desaparecer. Troçaram de si, meu caro. Devemos recear as máquinas, já lhe tinha falado isto. Elas são demasiado exactas na maldade. Nunca conseguiremos fazer igual.