quarta-feira, 30 de abril de 2014

Províncias – Crônicas da Alma Interiorana

Canellas, Marcelo. Províncias – Crônicas da Alma Interiorana. Editora Globo. São Paulo / SP; 2013; 224 páginas.

Breve relato do autor:

Marcelo Canellas é um jornalista brasileiro que iniciou sua carreira profissional como repórter de polícia, no jornal A Razão. Pouco tempo depois, fez um teste e foi contratado pela afiliada da Rede Brasil Sul de Comunicação (RBS) de Santa Maria. No telejornal local, trabalhou na criação de pautas, na produção e na edição.

Dados da obra:

Com uma trajetória de mais de 25 anos como repórter, rodando pelo mundo, Marcelo Canellas testemunhou diversos fatos da nossa história, mas carregando sempre consigo aquela alma interiorana do Rio Grande do Sul. No livro ele reúne 70 crônicas curtas em que a cidade transparece nos mais inusitados lugares em que esteve fazendo reportagens.

Passagens:

Tudo era mais demorado, mais difícil, mais trabalhoso. Então por que mal engolimos o almoço? Então por que estamos sempre atrasados? Então por que ninguém mais bota cadeiras na calçada? Alguém pode me explicar onde foi parar o tempo que ganhamos?

Só consigo me orientar caminhando. Cidades são decifradas a pé. Zanzo a esmo quando quero entendê-las ou, ao menos, fazer o meu próprio retrato de um recanto urbano. E sou detalhista, me embrenho nos becos, subo ladeiras, corto terrenos baldios, sigo gatos e cães vadios, meus guias involuntários nas trilhas aleatórias que desenho.

Livre, o guri faminto se aproxima. Preso, o elefante saciado espera. Então, o moleque estica o braço, tromba de menino. O bicho estende a tromba, braço de elefante. Os dois se tocam com curiosidade e ternura mútua. O guri pensa ouvir uns muxoxos muito humanos do hálito irracional que emana da jaula. Afinidade inexplicável. Espiritual?

Mas, quando nos aproximamos, serpenteando em volta do morro, a casa vai assumir seu tamanho real. Ou talvez seja mesmo ínfima, já que as crianças aumentam tudo. Partimos. O motorista zanzou serra acima, serra abaixo. Varri o olhar pelo morro inteiro. A casinha estava mais escondida do que nunca. Ou será que foi demolida? Ou será que nunca existiu? Só então fui tomado pelo assombro de uma súbita revelação: cheguei atrasado. Olhei pelo retrovisor o reflexo da placa indicando o impossível caminho: CASINHA ESCONDIDA: ENTRAR TRINTA ANOS ATRÁS.

De cabeça quente, fui tentar dormir, mas não consegui. Fiquei pensando em gatinhos com frio e com fome. Levantei, peguei o conta-gotas e fui ao galinheiro. Entre ninhos e poleiros e com os bichinhos no colo, achei que ovo demais pode aumentar a minha taxa de colesterol. O que é que têm os gatos que nos humaniza tanto?

Olhar as placas é uma diversão. Saio da BR-232 e entro em Vitória do Santo Antão. No entroncamento, encontro a indicação para Paudalho. Mais adiante, as setas para Chã de Alegria, Carpina, Lagoa de Itaenga e Glória do Goitá. Paudalho é a compactação de pau-d´alho, imagino, árvore comum na zona da mata pernambucana. Chã é palavra que não se usa mais, sinônimo para planície ou platô, e que torno a ver em outra placa grafada como Chan, de um português arcaico teimosamente vivo também no falar dos lavradores. Quando pergunto como chego a Glória do Goitá, uma senhora de mil anos, curvada ao peso de uma enxada de mil quilos, aponta para a subida íngreme de chã batido.
– Mecê arribe acolá.

Guardo comigo, dentro de um livro, a foto do homem da floresta. Sempre que acho que a cidade me oprime, que a humanidade está desamparada, que os justos estão perdendo a guerra pela decência e pela equidade, abro o livro e vejo a face borrada do homem da floresta olhando para cima, intuindo todos os tormentos dos quais está livre na prisão verde de sua solidão.

Foi num bistrô de esquina. Comida boa. Depois do jantar, eu pedi um pudim de pão. Não sabia o porquê. Adoro pudim de pão, mas tem que ser de leite, maciço e cremoso. Areado, nunca. Então o que me atraiu na sobremesa esdrúxula do cardápio? A primeira colherada aclarou tudo: aquele era o pudim do trem Húngaro. No meio do restaurante, ouvi o apito, aspirei o cheiro de fumaça, senti o reclinar da poltrona acolchoada. Em meu devaneio, vi o tapete do restaurante virar trilho e dormente. O garçom já era o bilheteiro. No quepe achatado, a sigla: RFFSA.

O mar de Pernambuco, cálido e translúcido, é o mar de um outro mundo, cuja perfeição de cor e temperatura sempre foi o contraponto irreal do mar feioso e barrento de minha infância, o mar gelado do Rio Grande do Sul, sem baías nem enseadas, litoral rabiscado em linha reta num cochilo de Deus, que tanto se esmerara em esculpir reentrâncias do Pará a Santa Catarina, mas que optara pela monotonia da costa gaúcha, para, não sei por que castigo, só voltar à graça das curvas em território cisplatino.

Prosear à toa é uma instituição brasileira. A deliciosa expressão “jogar conversa fora” presume um traço cultural de nosso povo, mas, ao contrário do caráter descartável que ela exprime, bate-papos despretensiosos costumam sanear grandes pendências pessoais e coletivas. Cadeiras na calçada são como divãs interioranos. Fala-se de tudo, e para tudo há remédio, seja em caso de dor de amor seja de pedra nos rins.

Meu objeto de desejo pôde, enfim, encontrar sossego, escorando um Simões Lopes Neto na prateleira dos meus autores prediletos, o que, aliás, acabou dando razão à Maria. A chaleira é velha o suficiente para ter aquentado a água do chimarrão do vaqueano Blau Nunes. Antes que o leitor reclame de mais uma de minha bobagem, eu peço a condescendência de uma licença poética: todos os personagens inventados pelos gênios da literatura são reais. E se Blau toma chimarrão, é numa chaleira igual à minha.

Quando estou numa cidade estranha, gosto de caminhar a esmo. O acaso é um cicerone engenhoso. De vez em quando, ele me leva a uma praça, belo presente fortuito. Praças dizem muito sobre uma cidade. Se estão limpas, com um jardinzinho florido, então se vê que a vizinhança é saudável, que as pessoas não perderam o viço da convivência.

A província tem cheiro de carne de panela, de café feito no bule, de bolinho frito na banha. A província é feita de gentilezas, cumprimentos e afeições, por desconhecidos que se tornam íntimos de tanto se cruzar na rua a caminho do trabalho. Aqui o medo não invade a minha casa como um trem de passageiros desgovernado. Trem? Mas que tolice a minha, as cidades cresceram e acabaram com os seus trens de passageiros. Não na minha crônica provinciana. Aqui, ainda estou na gare da vila, à espera da locomotiva. 

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