segunda-feira, 26 de maio de 2014

Ratos e Homens

Steinbeck, John. Ratos e Homens. Editorial Bruguera; Rio de Janeiro / RJ; s.d; 206 páginas.

Breve relato do autor:

John Steinbeck oi um escritor estadunidense. As suas obras principais são A Leste do Paraíso (PT) ou A Leste do Éden (BR) (East of Eden, 1952) e As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath, 1939). Foi membro da Ordem DeMolay. Recebeu o Nobel de Literatura de 1962.

Dados da obra:

Ratos e Homens conta a história trágica de George e Lennie, dois trabalhadores rurais na Califórnia durante a Grande Depressão (1929-1939). A história se passa em um rancho a algumas milhas de Soledad no Salinas Valley.

Passagens:

– Os homens como nós que trabalham nas fazendas são os camaradas mais solitários do mundo. Não têm família. Não pertencem a nenhum lugar. Chegam a uma fazenda e trabalham até juntarem um pouco de dinheiro e depois vão à cidade e botam fora o dinheiro e então não tem outro remédio senão entrar sacudindo o rabo em outra fazenda. Não podem esperar nada do futuro.
Lennie estava encantado.
– É isso... é isso. Agora diz o que nós somos.
George prosseguiu:
– Conosco não acontece o mesmo. Temos um futuro. Temos alguém com quem falar, alguém quem pensa em nós. Não somos obrigados a ficar sentados num café, botando dinheiro fora só porque não há outro lugar aonde ir. Se esses outros sujeitos vão para a cadeia ficam lá apodrecendo e ninguém se importa. Mas conosco é diferente.
– Mas conosco é diferente! – interrompeu Lennie. – E por quê? Porque... porque eu tenho a ti pra cuidar de mim, e tu tens a mim pra cuidar de ti, por isso. – Soltou uma gargalhada de prazer...

– Fala da casa, George – pediu Lennie.
– Claro, vamos ter uma casinha, com um quarto pra nós. Um bom fogão de ferro e no inverno temos sempre o fogo aceso. A terra não é muito grande e assim a gente não precisa trabalhar muito. Talvez seis, sete horas por dia. Mas nada de carregar sacos de cevada onze horas por dia. E quando chegar a colheita, lá estamos nós para recolher ela. Assim vamos saber o resultado do que semeamos.
– E os coelhos – avançou Lennie, ansioso. – Eu cuido deles. Conta como vai ser, George.
– Claro, vais pra plantação de alfafa com um saco. Enches o saco e pões a alfafa nas coelheiras.
– E eles vão comer, comer, com aqueles dentinhos. Eu sei como eles fazem, eu vi...

– Conta como vai ser, George – pediu Lennie.
– Já te disse ontem como vai ser.
– Vamos... outra vez, George.
– Bom, só uns três acres. Vamos ter um moinho de vento, um galpãozinho e um galinheiro. Vamos ter cozinha, pomar, cerejas, maçãs, pêssegos, damascos e um pouco de morangos. Vamos ter um lugar pra plantar alfafa e bastante água pra o rego. E também um chiqueiro pros porcos...
– E coelhos, George.

 (Introdução)

“... Os projetos melhor elaborados, sejam de ratinhos ou sejam de homens, fracassam muitas vezes e nos fornecem só tristeza e sofrimento, em vez do prêmio prometido.”

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Beatriz

Tezza, Cristovão. Beatriz. Record; Rio de Janeiro / RJ; 2011; 141 páginas.

Breve relato do autor:

Cristovão Tezza é romancista e professor universitário. Nascido em Lages, Santa Catarina, ele mudou-se para Curitiba (PR) aos oito anos, sendo esta cidade palco de boa parte de sua literatura. É autor de “O Filho Eterno”, livrou que ganhou inúmeros prêmios, sendo, inclusive, eleito como o livro da década pela Revista Bravo.

Dados da obra:

Sete histórias longas e um prólogo revelador compõem Beatriz. Beatriz é a personagem do romance Um erro emocional, que acompanha agora o autor em situações originais. Em Beatriz, mergulhamos na ficção e, paralelamente, refletimos sobre as relações entre leitor e autor, leitura e livro, o escritor e a liturgia de seu trabalho.

Passagens:

(Prólogo)
Para não dizer que sou um escritor sem imaginação, o que seria um exagero mortificante, diria que sou um escritor de pouca imaginação fabular. Sempre morri de inveja dos autores de livros policiais, dos roteiristas de novelas, dos romancistas de aventuras, com suas sequências rocambolescas – enfim, de todos os grandes narradores que fazem da rede mortal da verossimilhança um discreto fio de aço que não se rompe nunca e vai nos levando naquela conversa absurda até a última página. Criança, comecei a escrever imitando-os, desesperado por fantasia, e fui sempre fragorosamente derrotado pelo impulso da realidade. Se dependesse da simulação desse fio verossímil, eu estaria morto. E há um outro ponto igualmente importante: onde a fábula é exuberante, há muitos personagens, que surgem aos borbotões, para meu desespero e meu ciúme mesquinho.

O problema é que escrever sempre tem consequências, você sai outra pessoa do outro lado da narrativa. Ao mexer com a linguagem, com os truques da sintaxe, com as relações de sentido, tudo aquilo que parece apenas um detalhe formal ou uma sacada de humor vai como que provocando um reajuste na percepção do mundo e seus valores, e você não consegue mais fingir que não tem nada a ver com isso. (Questão de ordem: quando digo “você”, refiro-me apenas a mim mesmo.)

Um pai entregaria a filha a um escritor, feliz da vida, sem saber o que a espera. Há os escritores gentis, os grotescos, as grandes promessas, os mal-educados, os sindicalistas, os ganhadores de concurso, os presidentes de associações, os pornógrafos, os perdedores de concurso, os francamente ruins, os autistas, os imitadores, os que mandam carta para a redação, os não escritores (que são diferentes dos maus escritores) e por aí vai.

... falar é entregar-se, escrever é ocultar-se...

“... Um apartamento, para quem sempre viveu numa casa, com seus telhados acolhedores e o céu bem à mão, é um espaço abstrato, frio, apenas uma ideia de moradia: habitamos um interior sem exterior, transformados em pensamentos que sobem elevadores e percorrem corredores, cavernas e grutas geométricas, túneis elevados onde vivem pessoas desconhecidas e de onde súbitas janelas derramam fachos artificiais de luz, e do alto vemos um cenário venusiano de prédios espetados...

É uma forma inadequada, ela tentou explicar enquanto tirava o relógio do pulso, deixando-o na mesinha, sobre o livro, ou antiquada, corrigiu-se. Sem marcar hora esta noite. Eu teria de estar de longo para que este relógio fizesse sentido, e ela foi de novo ao espelho do quarto, e pareceu-lhe agora que a cor vermelha do seu vestido era um pedido de socorro, o que a levou a rir – quase como alguém que vai contar essa piada a ele, só para quebrar o gelo. Gelo: o vestido verde era frio demais, distante demais; o branco, juvenil demais; o negro formal demais (se ainda tivesse outro desenho, essa manga tão... não sei; o bege, indiferente; o azul, muito... não sei, muito Cinderela.

Tenho problema com cachorros, pânico de infância, eu devia ter avisado antes, e parecia que a sua vida inteira era uma sequência de devias que, se realizados, fariam dela outra pessoa, outro ser, outra existência.

O princípio de organização dos livros é uma tarefa inesgotável e em última instância fracassada, porque por natureza eles refugam a ordem. Há um exagero de formas, livros de quatro centímetros de altura que pelo arbítrio da ordem alfabética teriam de ficar colados com livros de meio metro; há nomes que são sobrenomes, ou livros apenas com títulos; há gêneros inclassificáveis, autores que não sabem o que escrevem, edições sem ficha catalográfica, isso é serviço de especialista, e eu – e Beatriz quase desanimou.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Borges e os orangotangos eternos

Veríssimo, Luis Fernando. Borges e os Orangotangos Eternos. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2001; 133 páginas.

Breve relato do autor:

Luis Fernando Veríssimo é um escritor brasileiro,s conhecido por suas crônicas e textos de humor, mais precisamente de sátiras de costumes, publicados diariamente em vários jornais brasileiros. É também cartunista e tradutor, além de roteirista de televisão, autor de teatro e romancista bissexto. É filho do também escritor Érico Veríssimo.

Dados da obra:

Vogelstein é um cinquentão solitário que vive em Porto Alegre e passou uma vida entre livros. De repente, o destino sacode a mesmice de sua vidinha e leva-o a um congresso da Israfel Society, formada por especialistas em Edgar Allan Poe, em Buenos Aires. Ali ele terá a oportunidade de conhecer seu ídolo: Jorge Luis Borges. E, acabará no centro de um crime rocambolesco que envolve demônios arcanos e os mistérios da cabala. Muito divertido.

Passagens:

Tentarei ser os seus olhos, Jorge. Sigo mo conselho que você me deu, quando nos despedimos: “Escribe y recordarás”. Tentarei recordar, com exatidão desta vez. Para que você possa enxergar o que eu vi, desvendar o mistério e chegar a verdade. Sempre escrevemos para recordar a verdade. Quando inventamos, é para recordá-la mais exatamente.

Tenho cinquenta anos. Levei uma vida enclausurada, “sin aventuras ni asombro”, como no seu poema. Como você, mestre. Uma vida entre livros, protegida, em que raramente o inesperado entrou como um tigre. Mas não sou um ingênuo. Sou um cético, os livros me ensinaram todas as categorias de descrença e precaução contra o ilógico. Jamais poderia acreditar que o destino estava me chamando pelo nome, que tudo já estava decidido por mim e antes de mim por algum Borges oculto, que o meu papel estava me esperando como o vide papier de Mallarmé esperava seus poemas.

O congresso estava suspenso, a morte violenta de Joachim Rotkopf chocara a todos, inclusive você – mas você não conseguia esconder seu prazer. Não conseguia manter a boca numa posição correta de pesar e preocupação. Um congresso sobre Edgar Allan Poe interrompido por um assassinato num quarto fechado, como no conto do próprio Poe! Era lamentável, mas era fantástico. Várias vezes durante a nossa conversa, quando fomos visitá-lo naquela tarde depois do crime, uma expressão de felicidade correu pelo seu rosto como uma criança escapando ao controle de um pai severo, até ser dominado de novo. Eu sabia que você ia gostar, Jorge.

... Mas agora eu estava dentro da biblioteca de Jorge Luis Borges. Eu chegar ao centro do labirinto e o monstro me oferecera chá mate ou xerez. Eu estava no meio dos seus livros, sob as suas gravuras de Piranesi, bebendo seu chá certamente inglês, e você me ouvia, e desta vez não era um sonho...

– Viver significa deixar traços, não ruínas. Walter Benjamin.

... – Sir Thomas Browne tem um tratado sobre o X, que seria a representação da união do saber temporal e do saber mágico, a pirâmide para baixo e a pirâmide para cima – continuou você. – E também a duplicação do V, a letra romana com maior carga mística, pois representa os cinco sentidos humanos e é ao mesmo tempo forma, letra e número, ou geometria, escrita e matemática.

Lembro de tudo o que dissemos naquela noite. Exatamente.
Eu:
– O. A mãe das vogais. Símbolo de Deus. O que não tem começo nem fim.
Você:
– Uma serpente comendo o próprio rabo para sempre. Símbolo de Eternidade.

... As soluções estão sempre nas bibliotecas.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Quarto de Despejo

Jesus, Carolina Maria de. Quarto de Despejo. Ed. Ática; São Paulo / SP; 1993; 167 páginas.

Breve relato do autor:

Carolina Maria de Jesus foi uma escritora brasileira, nascida em Minas Gerais. Na adolescência veio para São Paulo trabalhar, onde teve vários envolvimentos amorosos, mas sempre se recusou a casar, por ter presenciado muitos casos de violência doméstica. Desses relacionamentos teve três filhos, e para sobreviver era catadora de papel. Começou a escrever um diário, contando o cotidiano dos moradores da favela Canindé, onde morava, além de fatos políticos e sociais da época. O diário transformou-se no livro Quarto de Despejo, atingindo grande repercussão e tornando-a conhecida mundialmente.

Dados da obra:

Em 1960, o jornalista Audálio Dantas fazia uma reportagem na favela Canindé, local onde vivia Carolina Maria de Jesus, e teria ficado encantado com o diário que ela escrevia. Depois da reportagem, Audálio se uniu ao pessoal da redação para publicar, em livro, o diário de Carolina, em que relata o seu dia a dia na favela e sua vida como catadora de papel. Seu texto é considerado um dos marcos da escrita feminina no Brasil e foi traduzido em mais de 13 de línguas. As narrativas do diário ficam entre o ano de 1955 e 1960.

Passagens:

15 de julho de 1955 – Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.

... Ablui as crianças, aleitei-as e ablui-me e aleitei-me...

17 de julho – Domingo. Um dia maravilhoso. O céu azul sem nuvem. P SPC está tépido. Deixei o leito às 6;30. Fui buscar água. Fiz café. Tendo só um pedaço de pão e 3 cruzeiros. Dei um pedaço a cada um puis feijão no fogo que ganhei ontem do Centro Espírita da Rua Vergueiro 103. Fui lavar minhas roupas. Quando retornei do rio o feijão estava cosido...

– Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente à favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos.
Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição da mulher sozinha sem um homem no lar. Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens (...) Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.

... Fui catar papel, mas estava indisposta. Vim embora porque o frio era demais. Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.

(1958)
10 de maio – Fui na delegacia e falei com o tenente. Que homem amável! Se eu soubesse que ele era tão amável, eu teria ido na delegacia na primeira intimação. (...) O tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades de delinqui do que tornar-se útil a pátria e ao país. Pensei: Se ele sabe disto, porque não faz um relatório e envia para os políticos? O senhor Janio Quadro, o Kubstchek e o Dr. Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou pobre lixeira. Não posso resolver nem minhas dificuldades.
... O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.
Quem passa fome aprende apensar no próximo, e nas crianças.

... E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!

... Eu classifico São Paulo assim: O Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos.

... O que o senhor Juscelino tem de aproveitável é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradável aos ouvidos. E agora o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Tem fome.

... Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na politica para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso vogo prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade.

... Quando cheguei ao palacio que é a cidade os meus filhos vieram dizer-me que havia encontrado macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco do macarrão com feijão. E o meu filho João José disse-me: – Pois é. A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo.
Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar. Eu disse:
– É que eu tinha fé no Kubstchek.
– A senhora tinha fé e agora não tem mais?
– Não, meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia.
... Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido.

Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado.

... Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a História do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só lia os nomes masculinos como defensor da pátria. Então eu dizia para a minha mãe:
– Porque a senhora não faz eu virar homem?
Ela dizia:
– Se você passar por debaixo do arco-íris você vira homem.
Quando o arco-iris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava sempre distanciando. Igual os políticos distante do povo. Eu cançava e sentava. Depois começava a chorar. Mas o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para a mamãe:
– O arco-iris foge de mim.
... Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são lugares do lixo e dos marginais. Gente de favela é considerado marginais. Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos.

Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas misérias que nos rodeia (...) Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades (...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela.
Fiz o café e fui carregar água. Olhei o céu, a estrela Dalva já estava no céu. Como é horrível pisar na lama.
As horas em que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginários.

O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém.

23 de junho... Passei no açougue para comprar meio quilo de carne para bife. Os preços era 24 e 28. Fiquei nervosa com a diferença dos preços. O açougueiro explicou-me que o filé é mais caro. Pensei na desventura da vaca, a escrava do homem. Que passa a existência no mato, se alimenta com vegetais, gosto de sal mas o homem não dá porque custa caro. Depois de morta é dividida. Tabelada e selecionada. E morre quando o homem quer. Em vida dá dinheiro ao homem. E morta enriquece o homem. Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações.

... Tem pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque não bebo pinga. Eu sou sozinha. Tenho três filhos. Se eu viciar no álcool os meus filhos não irá respeitar-me. Escrevendo isto estou cometendo uma tolice. Eu não tenho que dar satisfações a ninguém. Para concluir, eu não bebo porque não gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no álcool. Se você achar que eu estou agindo acertadamente, peço-te para dizer:
– Muito bem, Carolina!

Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver o aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas úlceras. As favelas.

... Eu dormi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vestido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las. Conversar com as estrelas. Elas organisaram um espetáculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso.
Quando despertei pensei: eu sou tão pobre. Não posso ir num espetáculo por isso. Deus envia-me estes sonhos deslumbrantes para minh´alma dolorida. Ao Deus que me proteje, envio os meu agradecimentos.

 ... O povo não sabe revoltar-se. Deviam ir no Palacio do Ibirapuera e na Assembleia e dar uma surra nestes políticos alinhavados que não sabem administrar o pais.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Modotti

De la Calle, Ángel. Modotti, uma mulher do século XX. Conrad; São Paulo / SP; 2005; 270 páginas.

Breve relato do autor:

Ángel de la Calle é um ilustrador, autor e crítico de quadrinhos espanhol. Também ajuda a organizar a Semana Negra de Gijón e Avilés Conferência Comic.

Dados da obra:

Em Modotti: Uma Mulher do Século XX, Ángel de la Calle tenta desvendar o mistérios da vida e da morte de Tina Modotti, fotógrafa e revolucionária de todas as vanguardas de seu tempo, artísticas e políticas. A HQ refaz os passos da revolucionária, desde sua infância em uma pobre cidade italiana, sua passagem pelo cinema, sua vida escandalosa no México, até sua vida de espiã, sua luta na Guerra Civil Espanhola e sua morte ainda sem explicação.

Passagens:

Há um café onde se misturam políticos, pistoleiros, criminosos comuns, toureiros, putas e atrizes de terceira. A personagem mais fascinante de todas é uma fotógrafa e modelo, além de prostituta de muita classe e Mata Hari do Comintern, chama-se Tina Modotti... – Kenneth Rexroth.

O que amas de verdade permanece o resto é escória.
O que amas de verdade não será arrancado de ti.
O que amas de verdade é tua verdadeira herança.
Mundo de quem, meu ou deles ou de ninguém?
Primeiro veio o visível, depois o palpável Elysium, ainda que fosse nas câmaras do inferno.
O que amas de verdade é tua verdadeira herança.
(Canto LXXXI. Ezra Pound)

O edifício mais lindo do século XX...
... coroado por uma inverossímil art –decô...
... um atracadouro para zepelins que nunca recebeu nenhum aparelho...
... criado unicamente para que, em nome de todos, um gorila gigante o escalasse com a mulher que amava nos braços...
O final da aventura do rei Símio ilustra nossa recorrente e secular derrota...
Contemplar o Empire, suas milhares de lajotas brancas de indiana, é o mais eficaz antídoto quando a melancolia nos prende...
Olhar esse longo poema em pedra corta a tristeza como o despertar corta os maus sonhos... assim era aquele dia de 1995 no qual Paco Taibo e eu chegamos a Nova York.
Um quente mês de julho...

Está vendo, Luz, me colocam para fazer fotos e traduções para El Machete... eu não entrei no ... partido para isto! Quero ajudar na rua!
Todo dia chegam meninos famintos e mulheres espancadas... quero participar de tudo isso!

Não, Luz, quero aprender a ser uma boa comunista... me esforçarei como pede Xavier... minha postura é individualista... mas vou mudar.
Tina, você é importante para as mulheres deste país... você foi a primeira a usar blue jeans! Não ria!
... seu estilo de vida, seus nus, seu trabalho... foram transcendentes para algumas de nós... e incomodam as burguesas e católicas mais que dez manifestações com foices e martelos.

Conhecemos as datas e acontecimentos daqueles meses de imersão de Tina na disciplina e prática comunista. Mas não captamos o essencial...
Como ela viveu aquele tempo? O que sentia? Mudou sua maneira colorida de se vestir pelos ocres e cinzas monásticos. Prendeu seus negríssimos e brilhantes cabelos. Foi abandonando as amizades que não participavam das causas que agora abraçava...
deu outra leitura fotográfica à miséria do México, que até então tinha entendido como forma de paisagem. Mas que sabemos de seu eu profundo?... Sentia relâmpagos de rancor? Como adormeciam os antigos desejos de uma conversa vivendo com um dogmático? Nas noites sem sono, quais estrelas ela olhava? Como se desenhavam seus medos, se os tinha?

Como se diz, o incidente está resolvido. A barca amorosa encalhou na mediocridade. Estou em paz com a vida. Não precisam enumerar dores, desgraças, ofensas mútuas.
Vladimir Maiakóvski – Continuem feliz – 12/4/30.

De todas as versões sobre o abandono definitivo da fotografia por Tina, fico com a de Pablo Neruda.
O poeta conta em suas memórias que uma noite sob o espesso céu moscovita, Tina caminhou até a beira do Rio Moskova... E depositou sua câmera, a amada Graflex, na corrente gelada. Não parece realista que isso tenha acontecido assim... mas que bonito teria sido!

A opinião de Tina em relação a Eisenstein era – não havia como não ser – ambivalente. Como não simpatizar com o homem que escreveu aquela carta a Goebbels?...
... como o intelectual culto que teorizava, que desenhava, que filmava a revolução. – Toio! Goebbels disse que o nacional-socialismo necessita de filmes com o Encouraçado Potemkin, mas fascistas! E Sergei respondeu... Eu gostaria de adaptar o Ulisses. Admiro a objetividade de Joyce. Fico Feliz que entenda sua grandeza, Tina.
Se não tivesse sido por Leonardo, Lênin, Freud e o cinema, eu seria mais um Oscar Wilde...

Entre os amigos de Tina em Moscou estavam Olga Benário e o brasileiro Luis Carlos Prestes. Olga judia e alemã, morreria na câmera de gás de um campo de extermínio nazista.
Luís Carlos Prestes, o cavaleiro da esperança, como é chamado pelo escritor Jorge
Amado em uma biografia precoce... do líder comunista no Brasil.

Imagino aquelas primaveras em Paris... e sonho com Tina presa pela nostalgia... dirigindo seus melancólicos passos pela margem esquerda do Sena... Visitando, como uma voyeur invisível, a acolhedora Livraria de Adrienne Monnier... cruzando com Walter Benjamin, o exilado interior. O único que parecia se dar conta de que a fotografia mudou a percepção da arte para sempre...
O que terão dito uma ao outro, a fotógrafa que já não fotografava, e o lúcido pensador assustado e suicida?
E uns metros adiante, a Livraria de Silvia Beach. Providencial ilha para vagabundos e náufragos da língua inglesa.

Quando, em 1991, se leilou Rosas, a foto de Tina, a empresário Susie Tomkins pagou 165.000 dólares por ela... Valia tanto porque, além de arte, era a obra de uma mulher comunista, e feita em um país exótico... tudo muito chique, muito anos 90!
Tina era artista engajada, vivia em terras distantes e... era mulher. Tinha se tornado glamorosa! 40 anos antes, seu trabalho incomodava tanto que era preciso escondê-lo dentro de um envelope barato de papel marrom.

Tina Modotti, irmã, você não dorme, não, não dormes. Talvez o seu coração ouça crescer a rosa de ontem, a última rosa de ontem, a nova rosa. Descanse docemente, irmã.
... (Neruda)

Quando quero me lembrar de Tina Modotti devo fazer um esforço, como se se tratasse de recolher um punhado de névoa. Frágil, quase invisível. Eu a conheci ou não a conheci? (Neruda)