segunda-feira, 23 de junho de 2014

Meus desacontecimentos

Brum, Eliane. Meus desacontecimentos; Leya Editora; São Paulo / SP; 2014; 144 páginas.

Breve relato do autor:

Eliane Brum é uma jornalista, escritora e documentarista brasileira. Formou-se pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) em 1988 e ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem.

Dados da obra:

Neste livro, Eliane Brum revela suas mais profundas memórias de infância De quantos nascimentos e mortes se constitui uma vida? De quantos partos uma pessoa precisa para nascer? Com quantas palavras se faz um corpo? A menina que flertava com a morte conta como foi salva pela palavra escrita. Em cada página, personagens fantasticamente reais incorporam-se: a irmã morta, que era a mais viva entre todos; a avó, comedida em tudo, menos na imaginação; a família que precisou de uma perna fantasma para andar no novo mundo; as tias que viravam flores para não murchar.

Passagens:

Desde o início o mundo doeu em mim. Dentro, mas também fora. Alguns creem que as memórias da primeira infância ou são boas ou não existem, temerosos de que te o mito da infância feliz lhes escape. São os que preferem não lembrar. Eu lembro muito, sempre lembrei. E ainda hoje há noites, muitas noites, em que acordo com o coração descompassado. Sempre vou temer o retorno da escuridão, que para mim é o mundo sem palavras.

... Minha mãe procurava algo que combinasse com Cristina, porque Cristina era uma tia muito querida que cuidou do meu pai quando ele se descobriu órfão. Assim que encontrou uma combinação que lhe pareceu harmoniosa, uma nova novela de rádio foi ao ar e a heroína era justamente Isabel Cristina. Minha mãe desistiu do nome, temerosa de que nascessem Isabéis Cristinas demais no mundo, o que demonstrava uma tentativa amorosa de me destacar na multidão. Mas eu não entendi dessa maneira. Para mim, minha mãe me negara um nome de heroína. Das mães, como se sabe, é preciso arrancar-se. Um parto só não basta, poderia dizer Laura, a personagem de meu primeiro romance.

... Desde pequena, sou capaz de permanecer horas só escutando, sem a necessidade de falar de mim mesma. Pelas fábulas de família minha avó resgatava um pretérito que nunca teve. Se não era possível alcançar um amanhecer mais próximo de seus suspiros, ela compensava alinhavando seu antes com linhas bem coloridas, às vezes extravagantes. Minha avó sabia que, para algumas vidas, é mais fácil mudar o passado que o futuro.

Herdei essa lucidez ou essa loucura, para mim tanto faz, e proseio com a minha avó nas tardes em que o sol entra pela janela e penso vê-la já desencurvada de suas dores terrenas. Quando comprei um apartamento em São Paulo, carreguei o maior número de móveis e objetos dela que consegui resgatar para que ela pudesse se sentir em casa. Entre eles sua cristaleira, onde acomodo as recordações de viagem, assim como os presentes das travessias de outros. É minha tentativa de fazer com que a alma da minha avó, que tanto ansiou por aventuras romanescas, possa dar a volta ao mundo.

Da infância somos todos sobreviventes.

É o contrário do que parece ser. Antes de nos assombrar, os monstros eram humanos. Eles nos assustam pela lembrança de sua humanidade. A monstruosidade é o que nos ajuda a suportá-los.

Desde pequena eu tenho muita raiva – e quase nenhuma resignação. A reportagem me deu a chance de causar incêndios sem fogo e espernear contra as injustiças do mundo sem ir para a cadeia. Escrevo para não morrer, mas escrevo também para não matar.
  
... Lembro-me ali de quem escolhi ser. E Luzia sussurra: ser é perder-se.

Entender rápido demais pode ser um perigo, já que todo pode significar – ou não significar coisa alguma. O passado só existe a partir de um narrador no presente que é tanto um decifrador quanto um criador de sentidos.

O lugar da realidade se inverteu. A paisagem dos livros era a real. A da vida concreta era sonho. Eu me movia por ela e fazia o que esperavam que fizesse, mas eu não estava ali. Estava lá. Era jovem, era velha, heroína, aventureira, princesa, fada, bicho, planta, sereia, monstro, deus. Estava nas terras altas da Escócia, no centro da Terra, em bosques povoados por bruxas e duendes, no sítio do Pica-Pau Amarelo, em Valhala. Eu podia escolher quem ser e onde estar. Em algumas semanas, parte das paredes da minha nova casa velha e de Ijuí para o mundo. Em seguida, também para outros planetas e outras dimensões. Me entreguei à experiência. Com o coração e também com as tripas, como faria tudo na vida.

Ser contadora de histórias reais e acolher a vida para transformá-la em narrativa da vida. É só como história contada que podemos existir. Por isso escolhi buscar os invisíveis, os sem-voz, os esquecidos, os proscritos, os não contados, àqueles à margem da narrativa. Em cada um deles resgatava a mim mesma – me salvava da morte simbólica de uma vida não escrita.

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