terça-feira, 17 de junho de 2014

Nenhum Olhar

Peixoto, José Luis. Nenhum Olhar. Agir Editora. Rio de Janeiro / RJ; 2005; 192 páginas.

Breve relato do autor:

Escritor português, José Luis Peixoto estudou línguas e literaturas modernas (inglês e alemão) na Universidade Nova de Lisboa. Em 2001, recebeu o Prêmio José Saramago com o romance Nenhum olhar. Seus livros foram traduzidos para cerca de 20 idiomas.

Dados da obra:

Publicado em 2000, Nenhum Olhar é a mais traduzida das suas novelas. Recebeu o Premio José Saramago em 2001 e descreve um universo em que a paisagem rural alentejana se mistura com elementos do fantástico. Na novela quase não há diálogos, o autor usa a técnica do corrente da consciência.

Passagens:

... Essa voz abafada falava solene como se estivesse a ler uma epopeia de um livro, disse: talvez os homens existam e sejam, e talvez para isso não haja qualquer explicação; talvez os homens sejam pedaços de caos sobre a desordem que encerram, e talvez seja isso que os explique.

Penso: talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima dos outros. Não a dor, não as pernas trôpegas de nódoas negras, não as costelas partidas a colar entre o sangue pisado, não a cabeça a rachar-se em tentáculos como raios, não a pele das paixões acabadas a partir de rasgões fundos na carne com vergastadas de uma importância absoluta; mas o sofrimento, permanente e constante, como todos os ossos expostos a furar os músculos e a pele. Dói-me o corpo e é sem o sentir que sofro...

Foi num sábado de julho. José vestiu o único fato que tinha, um fato preto que pertencera ao doutor Mateus e que lhe ficava largo nas mangas e enfolado na cintura, um fato preto que usou no funeral da mãe e no casamento da irmã. A sua mulher levou um vestido branco, que tinha pertencido à senhora e que ela tinha recuperado de um esfregão. Foram casados pelo demônio, pois era ele que casava as pessoas na vila. Os padrinhos foram o Moisés e o Elias, e as madrinhas foram a cozinheira e a louca da rua da palha, porque ia a passar à porta da capela e a puxaram para dentro. Os convidados eram o velho Gabriel, o pai de José, a irmã, o cunhado ferrador e o sobrinho de sete meses.

Penso: talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima de outros. Ainda que o peso do meu peito seja custoso, qual é o peso de um abismo?, ainda que me sinta um cego a crescer sem olhos para um precipício, tenho de me levantar desta cama. Tenho de levantar estes braços que não são meus, tenho de levantar estas pernas que não são minhas, mas de um rochedo, e ir tratar das ovelhas. A minha cadela. O campo. O sobreiro grande. Que sombra estará agora debaixo do sobreiro grande? Ainda que caminha pela noite ao meio da tarde, ainda que no pico do sol seja o mais negro da noite e dentro da noite seja noite também, por tudo ser noite aos meus olhos, tenho de me levantar desta cama. Mesmo que seja para sofrer sofrer, tenho de ir de encontro àquilo que serei, por ter sido isto e não poder fugir, não poder fugir de me tornar alguma coisa.

... E, sem falar, pois as palavras são a pior forma de dizer, olhei o pai do José, sabendo que ele não me podia escutar, e disse o teu filho está muito mal, o teu filho sofre. E não disse mais. Não que se esgotasse o que havia para dizer, mas porque não há forma de dizê-lo, nem mesmo sem palavras. Não já forma de explicar tudo o que se diz quando se diz sofrer.

Os homens são uma parte pequena do mundo, e eu não compreendo os homens. Sei o que fazem e as razões imediatas do que fazem, mas saber isso é saber o que está à vista, é não saber nada. Penso: talvez os homens existam e sejam, e talvez para isso não haja qualquer explicação; talvez os homens sejam pedaços de caos sobre a desordem que encerram, e talvez seja isso que os explique...

... Hoje, deixar-te-ei, sabendo que sempre tive amor por sempre estares comigo. E não tenho mais vergonha dessa palavra que nunca dissemos: amor: essa palavra: amor: que nunca chegamos a dizer e que hoje preciso de dizer. Sincero, verdadeiro, irmão. Irei sentir a tua falta. Sem o poder explicar a ninguém por não existir ninguém ao meu lado, irei sentir a tua falta. E, por mais negra que seja a planície por onde vaguearei a eternidade, será sempre a recordação dolorosa de um sol-pôr, será sempre a mago de só te poder lembrar.

... Este sol é a canção cantada pela nossa mãe para nos adormecer, e que nos desperta na escuridão, insuportável de já não termos mãe e de ficarmos nesta solidão tórrida e sem esperança. Para quem sabe conhecer, este verão é negro. Para quem sabe conhecer, este calor é soturno.

... Penso: talvez a dor exista para nos avisar de um sofrimento ainda maior.

... A noite é como a conheço: negra e profunda, a isolar-me dentro de si e a dizer-me que também eu sou a noite que a noite é. Não ponho as mãos nos bolsos, deixo-as e deixo os braços. Levanto a cabeça e olho a noite no céu, não as estrelas, mas o espaço que as separar.

... Mãe, como gostava de ter-te sentido dentro dos meus braços, como gostava de ter estado dentro dês teus. Mãe, para ti a morte não é cruel, pois há muito morreste para todos, pois há muito escolhestes existir apenas para me lembrares o amor é, agora que nada em mim tem regresso e sou definitivamente uma vertigem, acabou o teu caminho e podes descansar. Adeus, mãe. Obrigada, silêncio.

... Tenho pressa. Tudo me espera onde não existo. Nada existe onde não estou e não estou em nenhum lado. Tudo me espera para me destruir mais ainda. Tenho pressa de resolver-me. Tenho pressa de desaparecer. Tenho pressa.

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