sexta-feira, 20 de junho de 2014

O amante

Duras, Marguerite. O amante. O Globo – Folha de S. Paulo. São Paulo / SP; 2003; 95 páginas.

Breve relato do autor:

Marguerite Duras, de origem vietnamita, é uma das escritoras mais fascinantes da literatura contemporânea francesa e internacional. Quase todas as suas obras são autobiográficas, transpondo para a ficção a experiência pessoal, triste e, não raras vezes, trágica, mas que atingem o esplendor artístico, através de um estilo seguro e inconfundível.

Dados da obra:

Considerado o livro mais autobiográfico da escritora, O amante foi escrito em 1984. Recebeu o Prêmio Goncourt, o mais importante da literatura francesa e se consagrou como sua obra mais célebre. O romance narra um episódio da adolescência de Duras: sua iniciação sexual, aos 15 anos e meio, com um chinês rico de Saigon. A vida da família contrapõe amor e ódio, miséria material e riqueza afetiva. A presença da mãe, sua desgraça financeira e moral, do irmão mais velho, drogado, cruel e venal, e do irmão mais novo, frágil e oprimido, constituem uma existência predominantemente triste.

Passagens:

Certo dia, já na minha velhice, um homem se aproximou de mim no saguão de um lugar público. Apresentou-se e disse: “Eu a conheço há muito, muito tempo. Todos dizem que era bela quando jovem, vim dizer-lhe que para mim é mais bela hoje do que em sua juventude, que eu gostava menos de seu rosto de moça do que desse de hoje, devastado.”

... Como explicar essa compra? Nenhuma mulher, nenhuma moça usava chapéu de feltro masculino, na colônia, naquela época. Nem mesmo as nativas. Eis o que deve ter acontecido: experimentei o chapéu de feltro, por brincadeira apenas, olhei-me no espelho da loja e vi: sob o chapéu de homem, a magreza ingrata do corpo, aquele defeito da infância, parecia outra coisa. Deixou de ser um elemento brutal, fatal, da natureza. Transformou-se em algo oposto, uma escolha que contrariava a outra, uma escolha intencional. Subitamente é algo desejado. Subitamente vejo-me como outra, como outra será vista, lá fora, à disposição de todos, à disposição de todos os olhares, lançada na circulação das cidades, das estradas, do desejo. Seguro o chapéu, não me separo mais dele, é meu, aquele chapéu que me possui inteira, não o largo mais.

Nunca mais eu viajaria num ônibus de nativos. Teria agora uma limusine para levar-me ao liceu e trazer-me de volta ao pensionato. Jantaria nos lugares mais elegantes da cidade. E para sempre teria saudades de tudo o que fiz então, de tudo o que abandonei, de tudo o que aceitei, o bom e o mau, o ônibus, o motorista que me fazia rir, as velhas mascadoras de bétel dos lugares mais atrasados, as crianças em cima do porta-bagagem, a família de Sadec, o horror da família de Sadec, seu silêncio genial.

A pele é de uma doçura suntuosa. O corpo. O corpo é magro, sem força, sem músculos, podia ser o corpo de um doente, de um convalescente, ele é imberbe, sua única virilidade é a do sexo, é muito fraco, parece estar à mercê de um insulto, parece sofrer. Ela não olha para o rosto. Não olha. Só o toca. Toca a doçura do sexo, da pele, acaricia a cor dourada, a novidade desconhecida. Ele geme, chora. Dormindo por um amor abominável.
E chorando ela realiza o ato. A princípio, a dor. E depois a dor se transforma, é arrancada lentamente, transportada para o prazer, abraçada ao prazer. O mar, sem forma, simplesmente incomparável.


Na rua, a multidão movimenta-se em todas as direções, lenta ou rápida, abrindo caminho, sarnenta como os cães abandonados, cega como os mendigos, uma multidão da China, vejo-a ainda nas imagens da prosperidade de hoje, no modo como caminham todos juntos sem jamais demonstrar impaciência, aquele modo de estar só no meio da multidão, sem alegria, pode-se dizer, sem tristeza, sem curiosidade, caminhando sem parecer ir a lugar algum, sem intenção de ir, mas apenas avançando, mudando de lugar, isolados e no meio do povo, jamais sozinhos de verdade, sempre sozinhos no meio da multidão.

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