sexta-feira, 25 de julho de 2014

Passaporte para a China

Telles, Lygia Fagundes. Passaporte para a China. Companhia das Letras, São Paulo / SP, 2011; 89 páginas.

Breve relato do autor:

Lygia Fagundes Telles é uma escritora brasileira, que recebeu o Prémio Camões em 2005. É membro da Academia Paulista de Letras desde 1982, da Academia Brasileira de Letras desde 1985 e da Academia das Ciências de Lisboa desde 1987.

Dados da obra:

Em 1960, delegações de todo o mundo participaram da festa do 11o. aniversário do socialismo chinês. Embora não se considerasse comunista, Lygia Fagundes Telles foi incluída no grupo brasileiro e resolveu enfrentar o pânico dos “aviões a jato”. Antes de embarcar, ela recebeu outra proposta: enviar relatos da viagem para o jornal Última Hora. Daí surgiram 29 crônicas, que formam um instrutivo, comovente e divertido diário de bordo, ambientado em várias cidades. O livro conta ainda com um pequeno caderno de fotos tiradas durante a viagem.

Passagens:

A voz anuncia em francês o retorno ao avião. Sigo pelo aeroporto no passo do constrangimento, ah! Seria bom ficar mais tempo em Dacar mas é preciso prosseguir e ser amável com o comissário de bordo, um jovem sorridente que nos deseja uma boa viagem! Abro um sorriso amarelo e penso no poema de Carlos Drummond de Andrade, Cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte, / depois morreremos de medo / e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Outono e a folhagem das árvores com um tom de ouro antigo. Um frio suave corre na brisa. Acendem-se as primeiras luzes. Vou lendo nas tabuletas os nomes das praças, das ruas e muitas são minhas conhecidas pois por elas passaram tantas personagens de livros que li desde a adolescência. A emoção me enternece, inútil pensar na literatura porque mais bela que a palavra escrita é aquele chafariz no meio da praça. E a dignidade dos prédios que sabem que não vão ser demolidos porque foram feitos para permanecer. Não, não é como no Brasil onde prédios de dez anos são considerados velharias. Depressa! É preciso demolir para reconstruir que para isso foram feitas as picaretas. Tínhamos algumas belas construções, mas somos agitados demais para pensarmos em tradição.

Nas ruas, as vitrinas acesas e tanto movimento e tantas luzes, ah! Que delícia ir assim livre na noite cálida. Escreveu Erico Veríssimo que as cidades são masculinas e femininas como os seres humanos. Quanto a Paris, ele achava que era uma cidade hermafrodita por reunir os caracteres dos dois sexos. Não concordo com o nosso romancista: Paris é do sexo feminino, creio que não existe cidade mais feminina do que Paris, mulher vaidosa e assim felina feito uma gata sensual que se oferece ao turista deslumbrado mas esconde a face verdadeira, a face profunda que fica oculta e que só obedece à voz do donos e esse dono é francês.

Fecho os olhos e vou lembrando tudo o que sei sobre Praga: a capital da Boêmia e banhada pelo Rio Moldava. Cidade fértil, romanticamente plantada sobre sete colunas. Especialidades da terra? Os famosos cristais da Boêmia, a cerveja que eu tinha acabado de beber e os objetios de arte com destaque para as joias, a bela granada que tem o mesmo vermelho profundo do rubi. Muitos instrumentos musicais e metalúrgicos. O escritor Franz Kafka, um dos maiores do mundo e o patrono da cidade é São Nepomuceno, o bravo mártir que por ordem do reio Wenceslau foi atirado ao rio, isso por ter se recusado a revelar certa confissão que lhe fizera a rainha.

Praga também é uma cidade do sexo feminino mas sem o decote e sem os olhos pintados. Tem a fisionomia tranquila de uma balzaquiana de cara lavada, mãos limpas e afeitas às tarefas de lidar com a casa e com as flores.

Quando cheguei até a pequena praça pensava em Franz Kafka, escritor da minha paixão e que dizia que um livro deve ser assim como um machado para quebrar o nosso congelado mar interior. Morreu jovem e brigado com o pai e com o mundo. Onde está você nesta noite?! Eu perguntei e fiquei olhando para a mais cintilante das estrelas.

Nas pequenas lojas da sala de espera, as especialidades da terra: joias de âmbar e granada, gorros de pele, muita cerâmica popular, bonecos com os trajes típicos... No bar os deliciosos sanduíches de caviar e salmão. O café fraco mas a vodca fortíssima, pensei ao tomar o primeiro gole. E eis que de repente todo o sangue do mundo subiu-me ao rosto, estou na Rússia!

Quando vi o quarto sem banheiro fiquei deprimida, ah! Tanta vontade de me estender na cama e ali ficar até o dia seguinte e mais algumas horas. O brasileiro pode passar sem café e sem jogo do bicho, mas sem banho ele não fica não. E lembrei-me de uma arrumadeira num hotel de Paris me perguntando, entre intrigada e receosa se por acaso, par hasard os brasileiros não tinham alguma doença de pele, ah! Essa mania dos banhos diários!... Já estava na hora do jantar, mas antes da sopa – um banho quente com uma toalha bem felpuda, ai! os pequenos prazeres.

Sempre achei o russo assim parecido com brasileiro, com o nosso caboclo – e agora não me refiro ao frágil Jeca Tatu de Monteiro Lobato, mas ao bravo sertanejo de Euclides da Cunha, um home do sertão, rude, meio selvagem... e ao mesmo tempo, sentimental. Gosta de cantar, dançar e beber com o mesmo ardor com que se empenha numa luta. E alguns gostam também de exibir os tais dentes dourado.

[...] A Sibéria de Dostoiévski, dolorosamente, terrivelmente retratada nas Recordações da Casa dos Mortos. Foi num soturno presídio atrás de uma muralha e no extremo de uma pequena cidade siberiana (seria Omsk?) que Dostoiévski esteve encarcerado quatro anos como prisioneiro militar. Lá ele se inspirou para escrever as deslumbrantes recordações do personagem Aleksander Petrovitch. Enfim, mas esse tempo já ia longe embora ainda fosse o mesmo esse vento que soprava e igual a desolada paisagem dos pinheirais cor de ferrugem.

Muita gente chegando. Não vi soldados fardados mas com o traje do país, o blusão com as calças de brim azul e alpargatas pretas, enfim, no clássico estilo oriental. Os homens com o cabelo cortado rente e as jovens de cabelo curto, caindo retos ou presos em graciosas trancinhas, uma de cada lado do rosto. As idosas, essas com o coque enrodilhado na nuca e as caras lavadas sem nenhum sinal de pintura.

Os maiores entendidos de culinária já propagaram que há de fato apenas duas cozinhas no mundo: a chinesa e a francesa. O resto é o shakesperiano silêncio.

[...] O padre dizia a missa em latim, os devotos rezavam em chinês e Helena Silveira e eu em português, perfeito o entendimento entre todos na única linguagem da fé.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Verão

Coetzee, J.M. Verão. Companhia das Letras; São Paulo / SP; 2010; 275 páginas.

Breve relato do autor:

J. M. Coetzee nasceu na Cidade do Cabo, na África do Sul. É um dos principais escritores contemporâneos da língua inglesa, e já recebeu diversos prêmios por sua obra, entre eles o Nobel, em 2003, e – caso único – dois Booker Prize, em 1983, por Vida e época de Michael K, e em 1999, por Desonra.

Dados da obra:

Verão é o terceiro livro da trilogia Cenas da vida na província, composta também por Infância e Juventude. Coetzee lança mão de artifícios narrativos refinados para compor um relato de ficção autobiográfica, construído de maneira múltipla e indireta. A história é contada pelo pesquisador inglês Vincent, interessado na vida de John Coetzee, autor que já morreu. Para escrever a biografia do escritor, Vincent recorre a outras fontes: os Cadernos do autor, com anotações autobiográficas, e entrevistas com pessoas que o conheceram, concentrando-se nos anos 1970, período que precede o reconhecimento literário de Coetzee.

Passagens:

Pode existir uma laje bem assentada cujo bom assentamento é evidente para todo mundo. As lajes que está assentando durarão mais até que sua estada na terra; e nesse caso ele terá, em certo sentido, enganado a morte. Uma pessoa pode passar o resto da vida cimentando lajes e todo noite cair no mais profundo sono, cansada com a dor do esforço honesto.

Tenho plena consciência do quanto eu estava me portando como um personagem de livro – como uma daquelas mulheres idealistas em Henry James, digamos decididas, apesar do que lhes diz o instinto, a fazer a coisa moderna, difícil. Principalmente quando as minhas colegas, as esposas dos colegas de Mark na firma, procuravam orientação não em Henry James nem George Eliot, mas na Vogue, na Marie Claire ou na Fair Lady. Mas também, para que servem os livros senão para mudar a nossa vida? O senhor viria até Kingston para ouvir o que eu tenho a dizer sobre o John, se não acreditasse que os livros são importantes?

“Você acredita mesmo nisso?”, ele perguntou. “Que livros dão sentodo às nossas vidas?”
“Acredito”, eu respondi. “Um livro deve ser um machado para abrir o mar congelado dentro de nós”. O que mais ele seria?
“Um gesto de recusa diante da época. Uma aposta na imortalidade.”

Pragmatismo sempre ganha de princípios, é assim que as coisas são.

“Tudo que você tem no coração... O que isso tem a ver com Eugene Marais?”
“Simplesmente que eu entendo o que o velho babuíno macho estava pensando enquanto olhava o sol se pôr, o líder do bando, aquele de quem Marais era mais próximo. Nunca mais, ele pensava: só uma vida e nunca mais. Nunca, nunca, nunca. É isso que o Karoo faz comigo também. Me enche de melancolia. Me estraga para a vida inteira.”

Ela morde a língua. Esqueceu-se: não se pede a um homem que mostre seus poemas, não na África do Sul, não sem garantir a ele previamente que ETA tudo bem, que ninguém vai caçoar dele. Que país, em que a poesia não é atividade varonil, mas território de crianças oujongnooiens [solteironas] – oujongnooiens de ambos os sexos! Como foi que Totuis ou Louis Leipoldt conseguiram, ela não consegue imaginar.

Ela gostaria de oferece a eles dois um café na lanchonete, gostaria de sentar com eles de um jeito amigo, normal, mas claro que não se podia fazer isso sem provocar uma confusão. Que chegue logo o tempo, ó Senhor, ela reza para si mesma em que toda essa besteira do apartheid esteja enterrada e esquecida.

Mas não é assim que se dança! Não é assim que se dança! Dança é encarnação. Na dança não é o mestre titereiro na cabeça que comanda e o corpo acompanha, é o corpo sozinho que comanda, o corpo com sua alma, o corpo-alma. Porque o corpo sabe! Sabe! Quando o corpo sente o ritmo por dentro, ele não precisa pensar. É assim que nós somos se somos humanos. Por isso é que títeres de madeira não podem dançar. A madeira não tem alma. A madeira não sente o ritmo.

Ele prossegue: “Esse é o jeito britânico: atirar os concorrentes na arena e esperar para ver o que acontece”. Ele vai ter de se acostumar de novo com o jeito britânico de fazer as coisas, em toda a sua brutalidade. Um naviozinho apertado, a Grã-Bretanha, lotado até as amuradas. Cão devora cão. Cães rosnando e avançando uns nos outros, cada um guardando seu pequeno território. O jeito norte-americano, em comparação, decoroso, gentil até. Mas também, há mais espaço nos Estados Unidos, mais espaço para urbanidade.

As fileiras da profissão de professor são como o senhor deve saber, cheias de refugiados e desajustados.

Aos olhos de Coetzee, nós, seres humanos, nunca abandonaremos a política porque a política é muito conveniente e muito atraente como palco onde expressar nossas emoções mais baixas. Por emoções baixas quero dizer ódio, rancor, desprezo, ciúme, sede de sangue e assim por diante. Em outras palavras, a política é um sintoma de nosso estado decaído e expressa esse estado decaído.
Mesmo a política da libertação?
Se o senhor se refere à política da luta de libertação sul-africana, a resposta é sim. Se libertação significava libertação nacional, a libertação da nação negra da África do Sul. John não tinha nenhum interesse nela.

Nós era principalmente a gente de cor. É um termo que eu só uso com relutância, para abreviar. Ele – Coetzee – evitava esse termo o quanto podia. Eu mencionei o utopismo dele. Evitar esse termo era outro aspecto desse utopismo. Ele ansiava por um dia em que todo mundo na África do Sul não se chamasse de nada, nem de africano, nem de europeu, nem de branco, nem de negro, nem de nada, em que as histórias familiares estivessem tão emaranhadas e misturadas que as pessoas fossem etnicamente indistinguíveis, ou seja – pronuncio de novo essa palavra maldita – de cor. Ele chamava isso de futuro brasileiro. Ele aprovava o Brasil e os brasileiros. Claro que nunca tinha estado no Brasil.

Não me lembro de todos. Depois de Desonra eu perdi o interesse. No geral, eu diria que o trabalho dele é desprovido de ambição. O controle dos elementos é muito estrito. Em nenhum ponto você tem a sensação de um escritor que deforma sua mídia a fim de dizer o que nunca foi dito, o que, para mim, é a marca da grande literatura. Muito impassível, muito organizado, eu diria. Muito fácil. Muito desprovido de paixão. Isso é tudo.