quarta-feira, 24 de setembro de 2014

K

Kucinski, Bernardo. K. Expressão Popular, São Paulo / SP, 2011; 177 páginas.

Breve relato do autor:

Bernardo Kucinski é um jornalista e cientista político brasileiro, e professor da Universidade de São Paulo (USP). Ministra a cátedra de Jornalismo Internacional, entre outras.

Dados da obra:

O romance narra a história de um pai em busca da filha que desapareceu, como tantos outros, durante a ditadura no Brasil. A narrativa a um tempo enxuta e sensível de Kucinski é feita de capítulos quase independentes, apresentando vários ângulos de uma mesma história – a história da ausência e da impunidade.

Passagens:

K. tudo ouvia, espantado. Até os nazistas, que reduziam suas vítimas a cinzas, registravam os mortos. Cada um tinha um número, tatuado no braço. A cada morte, davam baixa num livro. É verdade que nos primeiros dias da invasão houve chacinas e depois também. Enfileiravam todos os judeus de uma aldeia ao lado de uma vala, fuzilavam, jogavam cal em cima, depois terra e pronto. Mas os goim de cada lugar sabiam que os seus judeus estavam enterrados naquele buraco, sabiam quantos eram e quem era cada um. Não havia a agonia da incerteza. Eram execuções em massa, não era sumidouro de pessoas.

A imagem repentina de Guita puxou a do delegado que o expulsava do topo da escadaria de Varsóvia aos gritos de que sua irmã nunca fora presa, de que teria fugido para Berlim, isso sim, com algum amante.
Ainda pensava em Guita quando chegou ao general, que o recebeu com maus modos. Mandou-o sentar com rispidez. Reclamou que ele estava espalhando na comunidade judaica acusações pesadas e sem fundamento contra os militares. E se sua filha fugiu com algum amante para Buenos Aires? O senhor já pensou nisso?
Mas nada disso explica eles se casarem às escondidas, voltava ele a raciocinar. Casamento oculto é uma contradição, um paradoxo, pois a função do casamento é justamente dar publicidade à formação de uma nova família à mudança no estatuto de dois jovens. Por isso os casórios são espalhafatosos. Se não é para proclamar, não é preciso o casamento, basta viverem juntos. Mistério.

Fiquei imaginando que tipo de situação inspirou o Buñnel, se foi o franquismo, se foi o catolicismo, se foi alguma coisa da vida dele, pessoal. Seja o que for é um belo estudo sobre o que leva as pessoas a fazer o que faze, a caminhar numa direção sem saída e não ter forças para mudar.

Antes ele insinuou que ela não era puta, agora fala em suicídio. O que sabe ele? Não sabe de nada. Ou ele quer dizer que ela não era uma boa judia, uma mulher justa, porque o marido era gói? Com esse tipo de argumento negaram às polacas o direito ao sepultamento no cemitério da Vila Mariana; elas que não eram bandidas, apenas judias pobres enganadas pela máfia – uma história dolorosa por todos escondida –, tiveram que criar seu próprio cemitério, lá no Chora Menino. As polacas de Santos também.

Ao deparar na vitrine da grande avenida sua própria imagem refletida, um velho entre outros velhos e velhas, empunhando como um estandarte a fotografia ampliada da filha, dá-se conta estupefato, da sua transformação. Ele não é mais ele, o escritor, o poeta, o professor de iídiche, não é mais um indivíduo, virou um símbolo, o ícone do pai de uma desaparecida política.

Alguns anos mais e a vida retomará uma normalidade da qual para a maioria, nunca se desviou. Velhos morrem, crianças nascem. O pai que procurava a filha desaparecida já nada procura, vencido pela exaustão e pela indiferença. Já não empunha o mastro com a fotografia. Deixa de ser um ícone. Já não é mais nada. É o tronco inútil de uma árvore seca.

E só agora percebe, naqueles recortes de tempo e espaço, como a filha fora um ser frágil. K. nunca imaginou que fotografias pudessem suscitar sentimentos assim fortes. Algumas até parecem querer contar uma história. Para ele, isso só conseguiam um Pushkin ou um Sholem Aleichem, com a força das palavras. Fotografias, ele antes pensava, eram apenas registro de um episódio, a prova de que aquilo aconteceu, ou retratos de pessoas, um documento. No entanto, ali estão fotografias da sua filha sugerindo delicadeza e sensibilidade. Parecem captar a alma da filha. Sentiu um quê de fantasmagoria nas fotografias da filha já morta, um estremecimento.

Seria uma limitação da língua iídiche? Será que esse povo tão maltratado não conseguia expressar sofrimento na sua própria língua? Não pode ser. Embora só nos últimos cem anos tenha surgido uma verdadeira literatura iídiche, a língua mesmo já tem mais de mil anos e, antes do holocausto, era falada por mais de dez milhões de pessoas.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A origem do mundo

Edwards, Jorge. A Origem do Mundo. Cosac Naify, São Paulo / SP, 2014; 160 páginas.

Breve relato do autor:

Jorge Edwards é uma das figuras de prosa da literatura chilena contemporânea. Escreveu poesia e romances. Como muitos escritores e poetas chilenos, enveredou pela carreira diplomática.

Dados da obra:

Na história, o casal de médicos Silvia e Patricio Illanes, exilados em Paris após o golpe de Pinochet, em 1973, convive com o amigo Felipe Diaz, um boêmio livre e sedutor, além de corajoso crítico dos velhos dogmas da esquerda. Com a morte do amigo, o que antes era apenas uma silenciosa desconfiança sobre os sentimentos de Silvia se fortalece e, tomado pelo ciúme juvenil aos 70 anos, Illanes começa uma patética investigação cuja principal pista é a reprodução de um célebre quadro de Gustave Courbet.

Passagens:

... O ciúme é uma paixão extremamente nociva, que nos faz ver fantasmas por todo o lado...

... Lênin, um pequeno-burguês, diferente de Bakunin, de Rosa de Luxemburgo, e que impôs, por isso, uma disciplina repressiva, com a ideia de que assim salvava a Revolução, quando na realidade a fodia para sempre, e depois de Lênin veio o camarada Stálin, o Paizinho dos Pobres, e aí sim que cagaram tudo, porque o Paizinho arrasou todos, castrou, encheu de cárceres mentais e outros.

Digo sempre que o golpe militar, de certa forma, nos abriu os olhos. Os homens nunca dizem essas coisas, e menos ainda quando são políticos ou politiqueiros, como são todos os chilenos, sem exceção, os que permanecem no país e os que partiram para o exílio, mas as mulheres, sim, podem dizer isso. O golpe nos fez conhecer o mundo à força. E não podemos mais voltar, nem a Iquire nem a parte alguma. Já nãohá volta; a volta, agora, é uma antecipação da morte.

... O doutor colocou os óculos de leitura, abriu o folheto e ficou sabendo que o quadro havia sido encomendado a Coubert por um bei da Turquia, membro do Jet set, pensou o doutor, da Paris de meados do século XIX e que a obra tinha permanecido em um aposento reservado, oculta por uma cortina verde e por uma portinhola onde um pintor de segunda linha havia pintado as ameias de um castelo e uma paisagem bucólica, percorrida por pastores, por riachinhos, por longínquos, rebanhos de ovelhas. Aprendeu também que, depois de algumas mudanças de proprietário, havia terminado na casa de campo de Jacques Lacan, cuja viúva era filha de Georges Bataille, o autor de Minha mãe e de História do olho.

... Porque sofrer, atormentar-se, é também uma forma – heroica – de resistir à velhice, de opor uma ilusão de vida ao implacável avanço da morte.

“São mais numerosas, Lucílio, as coisas que nos amedrontam do que aquelas que verdadeiramente nos fazem mal, e com mais frequência nos afligimos com o que supomos do que com os próprios fatos.” – Sêneca.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Terra Sonâmbula

Couto, Mia. Terra sonâmbula. Companhia das Letras, São Paulo / SP, 2007; 205 páginas.

Breve relato do autor:

Mia Couto nasceu em Moçambique. Estudou medicina antes de se formar em biologia. Atualmente dedica-se a estudos de impacto ambiental. Em 1999, recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto da obra; em 2007, o prêmio União Latina de Literatura Românicas.

Dados da obra:

Um ônibus incendiado em uma estrada poeirenta serve de abrigo ao velho Tuahir e ao menino Muidinga, em fuga da guerra civil que devastou Moçambique. O veículo está cheio de corpos carbonizados. Mas há outro corpo à beira da estrada, junto a uma mala que abriga os "cadernos de Kindzu", o longo diário do morto em questão. A partir daí, duas histórias são narradas paralelamente: a viagem de Tuahir e Muidinga, e, em flashback, o percurso de Kindzu em busca dos naparamas, guerreiros tradicionais, abençoados pelos feiticeiros, que são, aos olhos do garoto, a única esperança contra os senhores da guerra.

Passagens:

... A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos.

– Não gosto de pretos, Kindzu.
– Como? Então gosta de quem? Dos brancos?
– Também não.
– Já sei: gosta de indianos, gosta da sua raça.
– Não. Eu gosto de homens que não tem raça. É por isso que eu gosto de si, Kindzu.

Mais uma vez contempla a palavra escrita na estrada. Ao lado, volta a escrevinhar. Lhe vem uma outra palavra, sem cuidar na escolha: “LUZ”. Dá um passo atrás e examina a obra. Então, pensa: “a cor azul tem o nome certo. Porque tem as iguais letras da palavra ‘luz’, fosse o seu feminino às avessas”.

As ideias, todos sabemos não nascem na cabeça das pessoas. Começam num qualquer lado, são fumos soltos, tresvairados, rodando à procura de uma devida mente.

– Há mulheres que são chuva, outras cacimbo. Essa tal Farida deve ser uma que vale a pena a gente se despentear com ela.

– Por que me conta tudo isso, mamã Virgínia?
– Porque quero que me passes a escrever.
– Escrever?
Era. Farida deveria enviar-lhe cartas, falseando autorias, fingindo o longe. Foi o que passou a fazer, se entretendo a ser, de cada vez, um diferente familiar. Nunca pôde imaginar quanta bondade estava criando. Virgínia lia as cartas com aquele soluço que é o tropeço do choro. Farida escutava em tal embalo que se desconhecia autora da missiva. Ou era a velha que inventava, refazendo a irrealidade do escrito?

E afastou-se, suas costas mirrando no escuro. Naquele momento começava a segunda orfandade de Farida.
Por um tempo ela ficou na Missão, num pequeno quarto cheio de sossego. Estudava, lendo o mais que podia. Se fantasiava, enchendo o tempo. As lhe faltava o acontecer da vida, a quentura do mundo onde nascera. Aquele lugar lhe deixava um frio interior. Afinal, todos queremos no peito o nó de um outro peito, o devolver da metade que perdemos ao nascer.

– Não devias ter voltado, filha.
Que a gente da aldeia não haveria de a querer ali, ida e voltada, outrora menina da terra, hoje mulher de visita. Se saíra, cortara os laços, não devia mostrar o golpe da partida. Porque nela lhes doía o terem ficado. A formiga incomoda é dentro das roupagens.

– Nasci num barco, sou filho das águas, sorri Nhamataca a fechar a estória.
E adianta lição: nenhum rio separa, antes costura os destinos dos viventes. A prova era o seu nascimento. Agora, ao gerar um rio, Nhamataca paga uma dívida para com um tempo mais antigo que o passado. Talvez que um novo curso, nascido a golpes de sua vontade, traga de volta o sonho àquela terra mal amada.

O tempo vai esticando as pontas da corda, nos estancando pouco a pouco.

... E#u sei que em cada mulher a gente lembra outra, a que nem há. Mas Carolinda me entregava essa doce mentira, o impossível cálculo do amor: dois seres, um e um, somando o infinito. Se aproximou e me acariciou os braços, ali onde as cordas me doeram. A cintura de suas mãos me afagavam, em suave arrependimento. Aquele momento confirmava: o melhor da vida é o que não há-de-vir.

– Tio, eu me sinto tão pequeno...
– É que você está só. Foi o que fez essa guerra: agora todos estamos sozinhos, mortos e vivos. Agora já não há país.

– Pai, por que nunca me mostraste como eras, dentro de ti?
– Tinha medo, filho. Não podia mostrar esse defeito e dizer: olha este meu coração que nunca cresceu!

Os vizinhos não variavam: a velha durava mais que a validade de seu corpo. Deixassem seu sonho enlouquecer. E perguntavam, entre risos: o grilo, quando nasce, já tem a toca feita? É assim a velhice. Virginha que trocasse passado por futuro, sonhasse não com o fim da vida mas com as nascenças que lhe faltavam.

– O que andas a fazer com um caderno, escreves o quê?
– Nem sei, pai. Escrevo conforme vou sonhando.
– E alguém vai ler isso?
– Talvez.
– É bom assim: ensinar alguém a sonhar.
– Mas pai, o que passa com esta nossa terra?
– Você não sabe, filho. Mas enquanto os homens dormem, a terra anda procurar.
– A procurar o quê, pai?
– É que a vida não gosta sofrer: A terra anda procurar dentro de cada pessoa, anda juntar os sonhos. Sim, faz conta ela é uma costureira de sonhos.

... o barquinho balouça. Aos poucos se vai tornando leve como mulher ao sabor de carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável. Começa então a viagem de Tuahir para um mar cheio de infinitas fantasias. Nas ondas estão escritas mil estórias, dessas de embalar as crianças do inteiro mundo.

... A estrada me descaminhou. O destino o que é senão um embriagado conduzido por um cego?