quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O lobo da estepe

Hesse, Herman. O lobo da estepe. Record; Rio de Janeiro / RJ; 2013; 135 páginas.

Breve relato do autor:

Herman Hesse foi um escritor alemão, que em 1923 naturalizou-se suíço. Em 1946 recebeu o Prêmio Goethe e, passados alguns meses, o Nobel de Literatura.

Dados da obra:

Publicado em 1927, O lobo da estepe é considerado o melhor dos livros de Hesse, e um dos romances mais representativos do século XX. No Brasil foi traduzido por Ivo Barroso e publicado pela Editora Record em 1993. Conta a história de Harry Haller, um outsider de 50 anos, alcoólatra e intelectualizado, autodenominando-se de “lobo da estepe”. Mas alguns incidentes inesperados e fantásticos e o encontro com Hermínia, Maria e o músico Pablo o conduzem ao despertar de seu longo sono.

Passagens:

Sou, na verdade, o Lobo da Estepe, como me digo tantas vezes – aquele animal extraviado que não encontra abrigo nem ar nem alimento num mundo que lhe é estranho e incompreensível.

A cada um levava-o até ali uma nostalgia, uma decepção, a necessidade de um substitutivo: o casão buscava a atmosfera de seu tempo de solteiro, o velho funcionário ia lembrar-se de seu tempo de estudante. Todos estavam silenciosos e eram pessoas que, como eu, estavam melhor sentadas diante de um vinho da Alsácia do que diante de uma orquestra feminina. Ali permaneceria ancorado, ali haveria de ficar por uma hora ou duas. Mal bebi o primeiro gole de vinho, lembrei-me de que não havia comido nada o dia inteiro após o café da manhã.

Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos. Era fria, oh! Sim!, mas também era silenciosa e grande como o frio espaço silente em que giram as estrelas.

Só e livre, decidia sobre seus atos e omissões. Pois todo homem forte alcança indefectivelmente o que um verdadeiro impulso lhe ordena buscar. Mas em meio à liberdade alcançada. Harry compreendia de súbito que essa liberdade era a morte, que estava só, que o mundo o deixara em paz de uma inquietante maneira, que ninguém mais se importava com ele nem ele próprio, e que se afogava aos poucos numa atmosfera cada vez mais tênue de falta de relações e isolamento. Havia chegado o momento em que a solidão e a independência já não eram seu objetivo e seu anseio, antes sua condenação e sentença. O maravilhoso desejo fora realizado e já não era possível voltar atrás e de nada valia agora abrir os braços cheio de boa vontade e nostalgia, disposto à fraternidade e à vida social.

O burguês é, pois, segundo sua natureza, uma criatura de impulsos vitais muito débeis e angustiosos, temerosa de qualquer entrega de si mesma, fácil de governar. Por isso colocou em lugar do poder a maioria, em lugar da autoridade a lei, em lugar da responsabilidade as eleições.

Também o lobo tem duas e mais de duas almas dentro do peito, e quem deseja ser um lobo incorre na mesma ignorância do homem da canção: “Feliz quem voltasse a ser criança!” O homem simpático mas sentimental que entoa a canção do menino ditoso, desejaria voltar à Natureza, à inocência, ao princípio, mas esqueceu que nem mesmo as crianças são felizes, e sim suscetíveis de muitos conflitos, de muitas desarmonias, de todos os sofrimentos.

“Só para os raros!” “Só para os loucos!” Louco eu devia ser e sem dúvida era um dos “raros”, senão aquela vez não me teria alcançado, senão aquele mundo não me teria alcançado, senão aquele mundo não me teria o que dizer.

Oh!, que bobão você! Fica olhando em torno para ver se estão observando você comer do meu garfo! Não ligue para isso, filho pródigo, não farei escândalo. Mas pobre daquele que não pode se dar a um prazer sem pedir antes a permissão dos outros.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Rumor Branco

Faria, Almeida. Rumor Branco. Difel, Lisboa / Portugal, 124 páginas.

Breve relato do autor:

Almeida Faria é um escritor português que, aos 19 anos, publicou seu primeiro e premiado romance, Rumor branco. Além de romancista, é autor de ensaios, contos e teatro. Ao conjunto de sua obra foi atribuído o prêmio Vergílio Ferreira da Universidade de Évora e o prêmio Universidade de Coimbra.

Dados da obra:

Rumor Branco é uma representação do mundo português de 1962 enquanto náusea. A linguagem é fragmentada, quase sem pontuação, sintaxe ousada, neologismos, provérbios em demasia. Não tem uma história em si, mas recortes da vida de Daniel João, uma voz dissonante.

Passagens:

... nitidamente a viste em breve entrando em casa atrave3ssando o mudo átrio àquela hora vazio logo a seguir a morte o irmão correndo ao seu encontro com lágrimas nos olhos ela abraçando-o muito: por que choras se a mãe agora já não sofre? Por que choras então senão por ti? Por egoísmo choras...

... estavam diante do cinema num segundo, saltaram correndo pra entrada apinhada da gente não só que ia entrar mas que da chuva se abrigava ou que apenas olhava as pessoas que entravam ou ainda que olhava as pessoas que olhavam as pessoas que entravam.

Ao intervalo quase nem falaste com Regina e Pedro que deixaste no bar tomando dois cafés enquanto divagavas pelo átrio e sacada, no flagrante em que estavas ao alto das escadas Pedro e Regina vieram ter contigo e tu os vias em picada de cima com olhos de cinema primeiro em plano-geral ainda no meio da assistência depois plano-de-conjunto grande e logo de-meio-conjunto plano em seguida de-pé depois americano cortados pelos joelhos depois plano-de-peito aproximado seguidamente plano-vasto até que as caras se chegaram num grande plano ao nível das gargantas e finalmente inesperadamente filmaste em plano-de-detalhe os lábios de Regina que fechavam-abriam sem que entendesse bem o que diziam.

... e falam faladram falam até à fadiga contra a vida que os faz assim falar para ocultar o nada...

... é a hora em que, neste lugar, eu sei que não sou eu, sou sempre nós e sei que nunca serei só porque somos um corpo que tudo une e ama unindo no amor dando e recebendo e aumentando o dom por dom da doação sei que qualquer coisa se abre à evidência de que fomos criados para que nos criássemos, que para nos fazermos fomos feitos e que os homens não nascem mas se fazem, a cadainstante se fazem e nisso está a liberdade deles, não em fazer o que se quer, mas o que quer o ser, o que cada um é e não sabemos o que é mas sabemos que é...

Anders relata: raramente o raro rato ruivo rói a roupa remendada do rapaz romano que ruidoso rema rindo no rio de Roma...

... que mensagem me trazem dela não sabemos quem é só sabemos que é ela nada nihil nichts niente nothing nada é o que sou nada exprime aquilo que sou nada me exprime do que é nada me é como posso esperar se nada me diz o que espero com desesperada esperança mas espero com esperança ou sem ela espero pela esperança espero por ela anônimo...