terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Os livros que devoraram meu pai

Cruz, Afonso. Os livros que devoraram meu pai. Leya; São Paulo / SP; 2011; 112 páginas.

Breve relato do autor:

Afonso Cruz é um escritor premiado, realizador de filmes de animação, ilustrador e músico português.

Dados da obra:

Vivaldo Bonfim é um escriturário entediado que, escondido de seu chefe, lê romances e clássicos da literatura durante o expediente, na repartição de finanças onde está empregado. Um dia, enquanto finge trabalhar, perde-se nas páginas de um livro e desaparece deste mundo. Esta é sua verdadeira história - contada em primeira pessoa por Elias Bonfim, seu filho, que recebe como herança a biblioteca de Vivaldo e, então, inicia uma aventura pelos grandes clássicos em busca de seu pai, percorrendo obras repletas de assassinos, paixões devastadoras, feras e outros perigos feitos de letras.

Passagens:

Soube pela minha avó que um tal Orígenes, por exemplo, dizia existir uma primeira leitura superficial, e outras mais profundas, alegóricas. Não vou me alongar nesse tema, basta saber que um bom livro deve ter mais do que uma camada, deve ser um prédio de vários andares. O rés do chão não serve à literatura. É adequado para a construção civil, é cômodo para quem não gosta de subir escadas, útil para quem não pode subir escadas, mas, para a literatura, tão necessários andares empilhados uns sobre os outros. Escadas e escadarias, letras abaixo, letras acima.

Sr. Prendick ladrou uns insultos, e Sr. Hyde mostrou sua bengala nervosa. Ficaram os dois ali, tensos, um olhando para o outro, sem saberem muito bem quem era animal e quem era homem. Julgo que a conclusão de um livro chamado A Revolução dos Bichos, de um tal Orwell, se adapta perfeitamente àquela situação: eles se olhavam e havia pouca diferença entre o animal e o homem. Acabei com aquela cena que se preparava para ser bastante violenta.

Não voltei a visitar Sr. Hyde e sua bengala nervosa. Agora o desafio era outro: precisava encontrar Raskolnikov. Procurei-o entre as obras de outros russos e, por mera sorte, acabei por encontrá-lo no segundo livro que tirei da estante, logo a seguir ao A Mãe, de Gorki. O livro chamava-se Crime e Castigo. Tinha uma lombada grossa, e eu o abri com cuidado, por causa daquela obesidade toda que se manifestava em largas centenas de páginas. Era pesado como um feijoada, e a encadernação parecia a de uma Bíblia. O título esparramava-se em letras douradas, muito brilhantes. Por baixo dele, lia-se o nome do autor: Fiódor Dostoiévski.

Para uns, a raiz é a parte invisível que permite à árvore crescer. Para mim, raiz é a parte invisível que a impede de voar como os pássaros. Na verdade, uma árvore é um pássaro defeituoso.

– Os livros encostados uns aos outros, em uma prateleira, são universos paralelos! – gritei para a sala, mas não obtive resposta.

– Exatamente, Sr. Bonfim. Quando vemos uma bela flor num deserto, a admiramos, mas quando passamos a vida rodeados de belas flores, não reparamos nelas. Perdem todo o significado da individualidade, de ser único. É o preço da quantidade e, se quer saber, caro Bonfim, é o mal dos tempos. Tudo é muito, vivemos nesse reino de quantidades, rodeados de coisas para que nos esqueçamos de nós mesmos e do que se passa aqui dentro.

– Nada mais certo. Todavia, de uns anos para cá tem acontecido algo que certamente não era esperado. Os livros começaram ser modificados. As pessoas que os decoram não resistem a alterar uma ou outra situação. Depois ensinam com os maneirismos as suas modificações, e, aos poucos, as histórias vão se alterando radicalmente. O que fazer? O ser humano não prescinde de colocar sua assinatura na casca das árvores, nas pedras, nos banheiros. Muitas vezes, só para dizer que está ali, presente.

– Nossas memórias nunca são verdadeiras ou absolutamente verdadeiras são apenas uma interpretação. Existem outras, e, ao longo dos anos começamos a ver o passado com uma luz diferente. Nossas memórias passam a ser vistas de diferentes perspectivas, conforme aquilo que aprendemos e de acordo com aquilo que sentimos no instante em que relembramos.

... Continuei a ler compulsivamente, e julgo que acabei por encontrar meu pai. Não por ter lido um sótão inteiro (e mais, muito mais), mas por ter me tornado pai eu próprio. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.