sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Morte em Veneza

Mann, Thomas. Morte em Veneza. Folha de S. Paulo; São Paulo / SP; 2003; 94 páginas.

Breve relato do autor:

Thomas Mann é um escritor alemão que recebeu o Nobel de Literatura de 1929. É considerado um dos maiores romancistas do século XX .

Dados da obra:

Publicado em 1912, Morte em Veneza é uma escrita complexa e profunda, na qual quase cada parágrafo pode ter várias leituras. O enredo é praticamente inexistente: um homem de meia-idade viaja até Veneza, apaixona-se platonicamente por um jovem rapaz polaco extremamente atraente. Mas o importante na obra é a discussão da arte, do belo e do ideal da beleza.

Passagens:

... Mesmo sob o prisma pessoal, a arte é uma vida elevada. Ela traz uma felicidade mais profunda e um desgaste mais acelerado. Grava no rosto de seu servidor os traços de aventuras imaginárias e espirituais, e com o tempo, mesmo no caso de uma vida exterior de uma placidez monástica, provoca uma perversão, um refinamento, um cansaço e uma excitação dos nervos, que mesmo uma vida cheia de paixões e prazeres desvairados dificilmente poderia produzir.

As observações e as vivências do solitário calado são ao mesmo tempo mais difusas e intensas do que as dos seres sociáveis, seus pensamentos, mais graves, mais fantasiosos e sempre marcados por um laivo de tristeza. Imagens e impressões que facilmente seriam esquecidas com um olhar, um sorriso, uma troca de opiniões ocupam-no mais do que o devido, aprofundam-se no silêncio, ganham significado, transformam-se em vivência, aventura, sentimento. A solidão engedra o original, o belo ousado e surpreendente, o poema. Mas engedra também o inverso, o desmedido, o absurdo e o ilícito.

O deus do Amor, na verdade, age como os matemáticos que mostram às crianças imagens concretas das formas puras que estão além de seu alcance; assim também o deus para nos tornar visível o imaterial, gosta de utilizar da forma e cor de um jovem corpo humano, que ela adorna com todo o reflexo da beleza, para fazer dele um instrumento da recordação, levando-nos assim, ao vê-lo a nos inflamarmos em dor e esperança.

... Pois a beleza, meu caro Fedro, e apenas ela, é simultaneamente visível e enlevadora. Ela é – nota bem – a única forma ideal que percebemos por meio dos sentidos e que nossos sentidos podem suportar. Ou o que seria de nós se acaso o Divino, a Razão, a Virtude e a Verdade se dispusessem a aparecer aos nossos sentidos? Não iríamos sucumbir consumidos pela chama do amor, qual Sêmede outrora diante de Zeus? Assim, a beleza é o caminho que conduz ao espírito o homem sensível – apenas o caminho, um meio apenas, pequeno Fedro...

Não há nada maios estranho e melindroso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de vista, que se encontram e se observam diariamente, ou mesmo a toda hora sem um cumprimento, sem uma palavra, forçadas a manter uma aparente indiferença de desconhecidos, por imposição dos costumes, ou por capricho pessoal. Há entre elas inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria de uma necessidade insatisfeita, artificialmente reprimida, de travar conhecimento e comunicar-se, e também, sobretudo, uma espécie de respeito carregado de tensão. Pois o ser humano ama e respeita seu semelhante enquanto não tem condições de julgá-lo, e o desejo é produto de um conhecimento imperfeito.

... Era mais belo do que se poderia dizer, e Aschenbach sentiu dolorosamente, como já o sentira tantas vezes, que, se a palavra mal pode enaltecer a beleza sensível, é inteiramente incapaz de reproduzi-la.

... Alegria, surpresa, deslumbramento deviam sem dúvida estampar-se abertamente em sua fisionomia, quando seu olhar encontrou o do desaparecido – e nesse segundo aconteceu que Tadzio sorriu: sorriu para ele, um sorriso apreensivo, confiado, sedutor e franco, com lábios que só lentamente se abriam ao sorrir. Era o sorriso de Narciso debruçado sobre o espelho d´água, aquele sorriso profundo, enfeitiçado, prolongado, com que estende os braços ao reflexo da própria beleza – um sorriso com um leve toque de contrariedade, pela vanidade de sua ambição de beijar os graciosos lábios de sua sombra, um sorriso coquete, curioso, ligeiramente atormentado, fascinado e fascinante.

Aquele que recebeu esse sorriso fugiu dali, carregando-o consigo como uma dádiva fatídica. Estava tão abalado que se viu forçado a fugir da luz do terraço e do jardim da frente, buscando com passos precipitados a escuridão do porque dos fundos. Admoestações singularmente indignadas e ternas escapavam-lhe: “Não deves sorrir assim! Estás ouvindo? Não se deve sorrir assim para ninguém!” Atirou-se num banco, fora de si inalando o perfume noturno das plantas. E reclinado, os braços pendentes, subjugado e sacudido a eterna fórmula do desejo – impossível, neste caso, absurda, abjeta, ridícula, mas ainda assim sagrada, mesmo neste caso, digna: “Eu te amo!”

... “É preciso manter silêncio!”. Mas ao mesmo tempo seu coração se enchia de satisfação pela aventura em que o mundo exterior ameaçava a envolver-se. Pois a paixão, tal como o crime, não se adapta à ordem estabelecida, ao bem-estar da marcha do cotidiano, e qualquer desarranjo da estrutura burguesa, qualquer perturbação e tribulação do mundo têm de lhe ser bem-vindos, pois ela pode alimentar a vaga esperança de encontrar aí algum proveito.

... Seus nervos absorviam avidamente os sons lamuriosos das melodias vulgares e lânguidas, pois a paixão paralisa o senso crítico e se envolve a sério em encantos, que a sobriedade aceitaria apenas humoristicamente, ou rejeitaria com irritação.

... para quem está fora de si nada parece mais detestável do que retornar a si mesmo.

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