sexta-feira, 27 de março de 2015

Morangos Mofados

Abreu, Caio Fernando. Morangos Mofados. Editora Brasiliense; São Paulo / SP; 1982; 153 páginas.

Breve relato do autor:

Caio Fernando Abreu foi um jornalista, dramaturgo e escritor brasileiro. Sua obra, escrita num estilo econômico e bem pessoal, fala de sexo, de medo, de morte e, principalmente, de angustiante solidão. Apresenta uma visão dramática do mundo moderno e é considerado um "fotógrafo da fragmentação contemporânea".

Dados da obra:

Em Morangos Mofados, o autor apresenta contos que mostram a fé fundamental que iluminou o projeto libertário da contracultura. É o quarto livro de contos do escritor, sendo considerado sua obra-prima pela crítica literária. Foi escrito em 1982 e aclamado como o melhor livro daquele ano pela revista Isto É.

Passagens:

Diálogo
A – Você é meu companheiro.
B – Hein?
A – Você é meu companheiro, eu disse.
B – O quê?
A – Eu disse que você é meu companheiro.
B – O que é que você quer dizer com isso?
A – Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.
B – Tem alguma coisa atrás, eu sinto.

... não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais destrutiva que insistir sem fé nenhuma?

... a verdade é que chega-se sempre longe demais quando não se quer Ir Direto Aos Fatos, mas o problema de Ir Direto Aos Fatos é que não há cir-cun-ló-qui-os então, e a maioria das vezes a graça está justamente nesses Vazios Volteios Virtuosos, digamos assim? Que não haja beleza nos fatos desde que se vá direto a eles? Ou que não haja mistério, que seja insuportavelmente dispensável gostar dos cir-cun-ló-qui-os. Ultrapasse-os. Acontece que. Nada acontece...
(Os companheiros)

... O quê? – perguntei. Você é gostoso, ele disse.
Não parecia bicha nem nada: só um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o meu, que por acaso era de homem também. Eu estendi a mão aberta, passei no rosto dele falei, qualquer coisa. O quê? - perguntou. Você é gostoso, eu disse. Eu era só um corpo que por acaso era de homem gostando de outro corpo, o dele, que por acaso era de homem também.
(Terça-feira gorda)

... Você vai pegar um resfriado, ele falou com a mão no meu ombro. Acho que foi aí que percebi que não usávamos máscara. Lembrei que tinha lido em algum lugar que a dor é a única emoção que não usa máscara. Não tínhamos dor, mas aquela coisa daquela hora que a gente estava sentindo, e eu nem sei se era alegria, também não usava máscara. Então pensei devagar que era proibido ou perigoso não usar máscara.
(Terça-feira gorda)

Preciso de algo que me tire desta janela e logo após, ainda, do depois. Querer um sentido me leva a querer um depois, os dois vêm juntos, se é que você me entende.
(Luz e sombra)

... e logo lembrei daquele inábil escoteiro que em tempos imemoriais, inconfessáveis sob pena de revelar um coração já marcado pelas intempéries da existência, deixei que ensaiasse em minha exuberante geografia seus hesitantes primeiros passos, e após trinta e seis meses de proveitosa aprendizagem permiti que partisse, disseminando por outras paragens toda a sabedoria que, com trágica paciência e dilacerada alegria, concedi que extirpasse de mim, pois sempre soube ser eu, loura febril, nada mais que a primeira, jamais a derradeira, jamais a única, jamais a para-sempre, a escolhida de seus esplêndidos ventre juvenil.
(Fotografias)

Não ofereço perigo algum: sou quieta como folha de outono esquecida entre as páginas de um livro, sou definida e clara como o jarro com a bacia de ágata no canto do quarto se tomada com cuidado, verto água limpa sobre as mãos para que se possa refrescar o rosto mas, se tocada por dedos bruscos, num segundo me estilhaço em cacos, me esfarelo em poeira dourada.
(Fotografias)

 – Cecília Meireles, era Cecília Meireles, era um poema assim que eu dizia: Levai-me por onde quiserdes / aprendi com as primaveras a deixar-me cortar / e a voltar sempre inteira.
(Caixinha de música)

Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra – talvez por isso, quem sabe?
Mas nenhum se perguntou.
(Aqueles dois)

quinta-feira, 5 de março de 2015

O livro das crueldades

Highsmith, Patricia. O Livro das Crueldades. Companhia das Letrinhas; São Paulo / SP; 1989; 181 páginas.

Breve relato do autor:

Patricia Highsmith foi uma escritora famosa pelos seus thrillers criminais psicológicos. Iniciou a carreira na década de 1940, escrevendo roteiros para histórias quadrinhos para editora Nedor, sobretudo as do super-herói Black Terror. Tornou-se mundialmente famosa por Strangers on a Train, que teve já várias adaptações para cinema, e pela série Ripliad com a personagem Thomas Ripley. Escreveu também muitas histórias curtas.

Dados da obra:

São 13 contos, nos quais Patricia Highsmith coloca à solta os animais, que podem ter uma pacífica aparência doméstica, mas que matam quando necessário. Tal como os humanos. Na ficção da escritora matar é apenas uma questão de necessidade e oportunidade.

Passagens:

Ele é alto e jovem e tem o cabelo ruivo. Gosta de se exibir estalando um longo chicote em minha direção. Acha que pode me obrigar a fazer coisas com cutucões e ordens. Seu bastão tem uma ponta afiada de metal que é irritante, embora não me penetre a pele. Steve aproximou-se de mim como uma criatura aproxima-se de outra, travando relações comigo e sem supor que eu viesse a ser o que ele esperava. Foi por isso que nos demos bem. Cliff, no fundo, não gosta de mim. Entre outras coisas não faz nada para me proteger das moscas, no verão.
(O Finalíssimo Espetáculo da Corista)

Mahmet arrancou a túnica. Arrancou o turbante também. Atirou as duas coisas em Djemal.
Surpreso, Djemal mordeu a roupa malcheirosas balançando a cabeça como se tivesse os dentes cravados no pescoço de Mahmet, sacudindo-o até matá-lo. Rosnava e atacava o turbante, agora desfeito num longo pano sujo. Comeu parte do turbante e com uma das grandes patas dianteiras pisoteou o resto.
Mahmet, atrás da árvore, começou a respirar melhor. Sabia que os camelos podem desabafar a ira na roupa do homem a quem odeiam e que depois se acalmam. Esperava que fosse assim, desta vez. Não gostava de ideia de voltar a pé para Khassa. Queria ir até Elu-Bana, que considerava “sua casa”.
(A Vingança de Djemal)

Gostava mesmo era de se deitar ao sol com a dona numa das espreguiçadeiras de lona que havia no terraço de casa. Mas não gostava das pessoas que ela às vezes convidava, dezenas de pessoas que passavam a noite, que ficavam acordadas até tarde, comendo e bebendo, ouvindo discos ou tocando piano – pessoas que o separavam de Elaine. Pessoas que lhe pisavam nas patas; pessoas que, às vezes, o pegavam por trás, desprevenido, e ele tinha de lutar para se soltar; pessoas que lhe passavam a mão com rudeza; pessoas que às vezes fechavam alguma porta, deixando-o trancadi. Gente! Ming detestava gente. No mundo inteiro, só gostava de Elaine. Ela o amava e compreendia.
(A Maior Presa de Ming)

– Neste rato – começou Alden, também baixinho.
Mas parou para pegar, com dedos levemente trêmulos, a ponta de uma saborosa salsicha do pãozinho com manteiga a sua frente. Jogou-a para o rato, que recuou um pouco, depois disparou para a salsicha, pegou-a e mastigou-a, segurando-a com o toco de pata.
– Este rato tem força – disse, afinal – Imagine tudo o que ele passou. E nem por isso ele desistiu, não foi?
(O Rato mais Corajosos de Veneza)

... Das criaturas de duas pernas não vinha nada de confiável e abundante, talvez uma tigela de leite e pão, mas não todo dia, nada que se pudesse contar. Mas no grande cavalo avermelhado, tão pesado e lento, a gatinha cinzenta passava a reconhecer um amigo confiável. Vira cavalos antes, mas nenhum tão grande quanto aquele. Nunca chegara perto de um cavalo, nunca tocara nenhum. Achava isso divertido e perigoso...
(Cavalo-motor)

Os outros gatos deviam estar caçando. Bess procurou até no estábulo, mas não encontrou o gatinho. Então olhando de relance para Fanny no campo, de cabeça baixa a mastigar trevos, deu com o gatinho, a fazer cabriolas e correr ao sol em torno dos cascos da água, como uma baforada de fumaça soprada de uma lado para o outro. A leveza e a energia do gatinho fascinaram Bess por alguns momentos. Que contraste, notou, com seu peso terrível, sua lentidão, sua idade! Seguiu sorrindo, na direção do portão. O gatinho ia gostar do osso.
(Cavalo-motor)